Nos idos de 90, mais pro começo da década, eu era um livreiro ainda calouro, na lendária livraria Iporanga, no coração do Gonzaga, aqui em Santos.
Atendia muitos clientes e absorvia muita informação vinda deles, que sempre – e até os dias atuais – mais me ensinavam do que o contrário.
Um desses clientes era um cara discreto. Suas visitas frequentes não passavam despercebidas por causa do gosto literário. Eu sacava rápido quem tinha identidade como leitor. Esse é um gosto vivido por livreiros: a gente pratica um voyeurismo intelectual. Sabemos as suas leituras, suas ideologias, e em parte o que você pensa.
Esse cliente se virava bem. Um dia foi Elias Canetti, "O Todo-Ouvidos". Numa outra visita, Henry James. Mais adiante, "Crazy Cock", do Henry Miller.
Esta última leitura o pegou de jeito. O homem se alimenta do que lê, e essa dieta de ficção gerou um escritor dos bons, eu vim a saber.
Só descobri que aquele cliente tinha se tornado escritor quando, um dia, folheava uma Playboy, cuja capa não me lembro (o que é um mau sinal).
Mais para o fim da revista, havia um pingue-pongue de três perguntas com Marcelo Mirisola, descrito como revelação das letras, recém-chegado ao mercado editorial. Numa das respostas, ele falou algo sobre a imagem da Lygia Fagundes Telles, que parecia uma raposa com uma piteira, ou algo assim. Não me lembro bem. O que me chamou a atenção foi a mistura da imagem do Mirisola e a lembrança de seu nome nos cheques que ele deixava na livraria. Pronto, era ele mesmo. Aquele cliente tinha virado escritor resenhado e entrevistado na Playboy.
Só depois fui ler seus livros, que para minha surpresa são ficções biográficas, lembranças e andanças e observações, tanto em contos como em romances. Bons leitores podem ser bons escritores. Mirisola tem uma metralhadora apontada para o lugar comum, para as pessoas públicas sem eira nem beira. Adoro ler seus textos e compartilho de uma porrada de coisas que estão lá, impressas em 14 ou 15 livros.
Como os livros do autor têm algo de memórias, fui citado também, primeiro em "O Azul do Filho Morto", e depois em "Charque", como alguém que salvou a sua vida – culpa mais do Henry Miller, já que fui apenas o vendedor do livro.
Mirisola virou um bom amigo e retorna sempre à minha livraria atual, a Realejo Livros, como tem feito em quase todos os lançamentos de seus livros.
Falaremos sobre o aquário e suas focas tristes – uma delas, parecida com Noel Rosa, mandou lembranças ao autor.
José Luiz Tahan, 41, é livreiro e editor.
Dono da Realejo Livros e Edições em Santos, SP,
gosta de ser chamado de "livreiro",
pois acha mais específico do que
"empresário" ou "comerciante",
ainda mais porque gosta de pensar o livro
ao mesmo tempo como obra de arte e produto.
Nas horas vagas, transforma-se
no blues-shouter Big Joe Tahan.
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