Monday, September 28, 2015

COMEMORAMOS OS 80 ANOS DE PLÍNIO MARCOS RESGATANDO UMA ÓTIMA ENTREVISTA DE 1977

texto e entrevista por Walter Negrão
publicado na Revista Status nº33 (1977)


Quando conheci Plínio Marcos em 1967, ele ficava oito horas seguidas por dia diante de um televisor, de uma máquina de escrever e de um grande relógio, trancado num cubículo nos fundos dos corredores da TV Tupi. Anotava cada um dos comerciais levados ao ar para depois fazer o relatório. Seu maior sacrifício era justamente datilografar a identificação de um comercial nos quinze segundos que ele durava. Talvez venha daí sua aversão por máquinas de escrever. Até hoje, Plínio tem escrito toda a sua obra teatral, e mesmo os romances, a mão. Como diz ele, durante algum tempo nós nos desencontramos, nos perdemos nas quebradas do mundaréu.

Quando voltei a topar com Plínio, ele já era o mais discutido, o mais polêmico autor teatral brasileiro. O próprio Nelson Rodrigues já havia parado para dizer que, se merecia um seguidor, esse seguidor certamente só poderia ser Plínio Marcos. Dono de uma obra que explodiu com "Dois Perdidos Numa Noite Suja", e sem ver montado qualquer texto seu por determinação da censura desde 1972, Plínio continuou trabalhando em revistas e jornais. Criou seus filhos com dificuldades e com a ajuda do braço forte de sua mulher, a atriz Walderez de Barros, sem esmorecer. Sem se arreglar um instante sequer. Sem mudar de opinião. Sem permitir cortes nos seus escritos. 

Dos tempos em que era o Palhaço Frajola nos circos de Santos, ou o camelô que vendia canetas, ou o crítico de escolas de samba, ou o cronista de futebol, até ser o autor mais proibido do teatro brasileiro, Plínio Marcos continua a mesma pessoa. O mesmo teimoso que vai morrer lutando pela justiça social, pelas coisas que considera certas. Tudo isso sem vícios, sem beber, apenas fumando cigarros sem filtro, como nos velhos tempos de pivete bagunceiro no cais, nos cabarés de Santos, nas quebradas do mundaréu.


Pelo fato de você não usar seu sobrenome -- Barros -- algumas pessoas tem a impressão de que Plínio Marcos é filho de chocadeira. Você foi criado em orfanato?

Lá em Santos, onde nasci, eu vivia com a minha família. Tinha mãe, pai. Vários irmãos. Todos eles tinham emprego. Um é bancário, o outro administra uma firma, outro tem um escritório. E tenho uma irmã também. E no presente momento não tem ninguém com mais parentes do que eu. Em todo lugar que chego, um cara fala assim: conheço seu primo, seu irmão, conheço sua tia, seu tio, sou tio do seu tio, sou irmão do seu avô. Aparece de tudo. A família Barros cresceu de uns tempos pra cá. 

Você era favelado, como alguns de seus personagens?

Classe média. Vivíamos numa vila dos bancários, que seria hoje quase a casa do BNH. E quando mudamos para lá realmente dava para cantar esse hino que se canta hoje pro BNH: "Moro onde não mora ninguém". Era a nossa vila, o muro do campo do Jabaquara na frente e o resto tudo mato. A gente morava perto de vários cortiços, estava sempre ligado no povão. Mas a nossa vida era de classe média, vivendo de salário de bancário. Meu pai era bancário. Não era fácil. A gente vivia trepando em pé de vento.

Dessa época vem a sua experiência para escrever? Você escreve memórias?

Não, não escrevo memórias. Os casos estão aí. Você sabe ver. Qualquer escritor que leia o jornal tem uma porção de sugestões, se escrever nessa linha que eu escrevo e mesmo que não escreva. Agora, você precisa ter olhos de ver, né? Qualquer coisa dá um belo assunto. Às vezes aparecem cem pessoas dizendo: eu tenho uma história. Eu digo: me conta. O que não falta é história. Todo mundo tem mil histórias. A maneira de você desenvolver é que é o segredo. Vários escritores podem contar o mesmo tema, de forma diferente. E todos contarem bem.



Como é seu processo de trabalho?

Eu escrevo à mão. Não consigo raciocinar e bater à máquina. me corta. Mesmo pra jornal, escrevo a mão. Minha mulher, a Walderez, bate à máquina pra mim depois. Se for em último caso, mas em último caso mesmo, uma croniqueta pra jornal, ainda bato à máquina direto. Mas aí já não sai legal. Aí demora o dia inteiro. Porque eu não consigo pensar. Porque quando estou escrevendo o meu processo de trabalho é o seguinte: eu tenho uma idéia na cabeça. Aí eu penso, repenso, penso, repenso, mas não escrevo uma linha. Mas chega um momento em que começa a ficar penoso. Não cabe mais dentro de mim. É aí que eu sento e escrevo. Se quiser, sento e escrevo tudo de uma vez. Tudo direto, sem parar.

Teria uma ligação espiritual essa compulsão? Já pensou que você pode estar psicografanhdo a sua obra?

Não conheço o assunto. Mas todo escritor é meio intuitivo, né? Uns chamam isso de intuição, outros chamam isso de mediunidade, sei lá. Só sei que não boto os nomes dos meus guias. Vendo eu mesmo.

Você estudou, se exercitou para escrever, ou sempre foi fácil, quase um ato mecânico?

Não, eu me matei. Está aí a minha mulher de prova. Eu ficava todas as noites, da meia-noite às 6 da manhã, escrevendo coisas que não adiantavam pra nada, não serviam pra nada. Não conseguia colocar com clareza meus pensamentos no papel. Teve um conto que começava todas as noites e não conseguia passar da primeira linha. Zé Patinete, assim chamado... Aí errava. Começava de novo. Só disso. Tinha um baú cheio de Zé Patinete. Nunca terminei. Nem sei mais o que é que eu queria falar com o Zé Patinete. Custei muito para pegar uma forma de me exprimir. E tinha um detalhe gozado: às vezes eu escrevia uma peça, um conto, e quando contava para as pessoas elas se entusiasmavam. Quando eu dava pra ler, não tinha nem a metade do que eu falei. Porque eu contava com entusiasmo, com graça, no tempo certo, de ator, de humorista. E no papel não tinha nada disso. Então era uma decepção. Eu contava muito melhor do que escrevia. Foi muito duro eu conseguir esscrever algumas coisas do mesmo jeito que eu falo.



Você se considera um bom ator?

Nunca tive a oportunidade de ser realmente testado, de fazer um papel que não fosse pra mim. Fiz muito bem o Vittorio, da novela Beto Rockefeller. E acho que fiz muito bem o Paco Maluco, da minha peça "Dois Perdidos Numa Noite Suja". Agora, um trabalho mais profundo de ator, nunca foi necessário fazer. O que eu tenho é muita empatia com o público. Posso conduzir um show de anedotas durante duas horas. Isso eu faço há quatro anos no show "O Humor Grosso e Maldito das Quebradas do Mundaréu". Mas não quer dizer que eu não seja um bom ator. Não sou nenhum Juca de Oliveira, nenhum Lima Duarte, nenhum Walmor Chagas, nenhum Paulo Gracindo. Sou um cara que engana, né?

Antes mesmo de começar a escrever você já trabalhava como ator?

Trabalhava. Trabalhei uns cinco anos em circo. Comecei no Pavilhão Teatro Liberdade, trabalhei no Circo Rubi, no Circo Toledo, no Pavilhão Azul. Fui muito tempo palhaço.

Como era o nome do seu palhaço?

Frajola. Depois trabalhei em rádio. Na Rádio Atlântica, no programa "Na Onda do Riso". Depois passei a ser humorista na Rádio Cacique. Dei a sorte de escrever uma peça chamada "Barrela" e daí pra frente comecei.

"Barrela" foi a primeira?

Foi. Escrita ainda no tempo do teatro amador. 

Chegou a ser lançada profissionalmente?

Teve um sessão clandestina em Santos, na época da estreia. E depois de onze anos teve três sessões clandestinas no Rio de Janeiro, feitas com um time de qualidade: Joel Barcellos, Milton Gonçalves, Fábio Sabag, Ginaldo de Souza.

E hoje está proibida?

Continua proibida. Desde o dia da estreia até hoje. 

E você tem alguma peça que não esteja proibida?

Que eu saiba, não. Porque as que não estão proibidas, não tem alvará. E quando for tirar alvará, eles proíbem. Eu adotei um sistema agora de não cuidar mais da parte burocrática. Escrevo peças, dou pras pessoas montarem e eles cuidam da censura.

Por que? A sua assinatura no requerimento à censura prejudica o andamento do processo? O seu nome também é censurado?

Não, não é isso, não. O meu relacionamento pessoal com os censores atualmente até que é legal. É que eu realmente resolvi ser artista pra não cuidar da parte burocrática. Quero ser escritor, não quero ficar tirando documento, pô! Uma vez eu fui trabalhar numa boite, mas tinha tanto documento pra tirar que nós fizemos a temporada sem assinar o contrato. Então, pra ir na censura, discutir, corta, não corta... cortar eu não corto. Não aceito cortes. Então manda pra lá, eles proíbem, fica proibida, pronto. A gente denuncia o fato. Este ano, por exemplo, eu vendi os direitos da peça "Dois Perdidos Numa Noite Suja" pra França e os direitos de "Navalha na Carne" pra Espanha. Quer dizer: pode até na Espanha e não pode aqui.



Há quanto tempo não vê uma peça sua em cartaz?

Peça, peça, desde 1972, quando foi a "Bambina de Iansã". Mas este ano vai ser encenado um roteiro musical que eu fiz para o osmar Rodrigues Cruz, do SESI, sobre Noel Rosa. Quase equivale a uma peça.

Você já pensou em se arreglar, em escrever algumas coisas que não tivessem problemas com a censura?

Quando sento para escrever uma peça... que pode ser classificada como uma peça da minha obra -- se é que eu tenho uma obra -- essa peça não posso escrever com censura nem com autocensura. Escrevo porque a peça fica e os governos passam.

Você foi demitido da Revista VEJA. Como foi esse episódio?

Eu estava escrevendo sobre futebol na VEJA, com muita dificuldade. Toda hora a censura proibia as minhas crônicas. Aí o Mino Carta, que editava a revista, entrou em férias, e eles aproveitaram o embalo e mandaram me despedir. O Mino Carta disse que mesmo estando em férias não iria admitir isso, e pediu demissão junto.

Uma vez que vivem proibindo suas peças, tirando você de revistas, de jornais, uma vez que você é podado, censurado, como você sobrevive?

Eu tenho umas 36 profissões e engano em todas. Não sou bom em nenhuma. Sou jornalista, sou ator, autor teatral, romancista, camelô. Pego meus livros e saio vendendo. Nos bares, de noite. Dá até mais dinheiro que televisão. A gente se defende. Eu brinco nas 11. Até jogar bola no interior, num time chamado Sentimento, ao lado de alguns jogadores profissionais, eu joguei, pra ganhar uns cachês. Faço meu show de samba com o pessoal, me mexo em todas e no fim sempre dá. Não deu pra ficar rico, mas deu pra comer feijão com tranqueira todo dia.



Fala-se muito de sua infância e adolescência em Santos, que foi bandido, marginal... o que há de verdade nisso?

Olha, tem tanta lenda sobre a minha vida que não dá mais pra saber o que é verdade do que é cascata. Às vezes me contam uma história comigo dentro que fico até impressionado. Uma vez, um cara me contou que tinham contado pra ele uma história que eu bati no chefe da censura e depois no ministro.  Verdade ou mentira? E eu falei: Vai espalhando....

Muita gente imagina que o Querô, personagem principal e marginal do seu livro "Reportagem Maldita", é você mesmo, que aquela é a sua história da época em que foi bandido.

É mentira. Eu era chegado à boêmia. Jogava bola, andava misturado com a curriola. Parava em cabaré. Mas não era bandido. Muito pelo contrário. Eu queria ser artista, não queria ser bandido. Eu andava por lá, conhecia todo mundo, porque ficava no cais de Santos e os cabarés eram no cais. Mas eu não queria ser do cais, não queria trabalhar no pesado. No cais que tinha trabalho eu queria ser o malandro.

Que idade tinha então?

Quinze, dezesseis anos. Eu fazia essas coisas que são malandragem, mas nunca pegava nas armas. Era da curriola, era bem protegido, então conheço. 

Pode-se dizer que você levou uma vida difícil, sofrida?

Quanto a esse negócio eu queria deixar bem claro que o sofrimento é um estado de espírito. Eu não tinha consciência de que estava sofrendo, de que estava amargurado. Pelo contrário. Sempre fui um cara de tendência alegre. Então, nunca pesou muito isso. Quando ficava lá no cais com a marginália toda, da pesada, eu realmente gostava daquela vida, sabe? Era uma vida legal, de piquenique, de mulheres, de futebol na madrugada pela praia. De vez em quando, quando a barba crescia mesmo, aí sim arrumava uma senha e fazia uma fé na estiva.

O que significa fazer uma fé na estiva?

É você trabalhar um dia, dois dias, né? Até arrumar outra mulher que trabalhasse.

Foi sustentado por muitas mulheres?

Sempre fui um péssimo gigolô, porque eu era dos que se apaixonavam. E quando você se apaixona, você não toma, você dá. A única vez que consegui cafetinar eu era namorado de uma moça chamada Doca, muito bonita, que trabalhava num cabaré, pra ver se ninguém estava cantando a Doca. Eu era pivetão, dezessete anos, não dava pra encarar a malandragem, porque aí ia ter que tomar satisfação e não podia. Às vezes, quando saia com ela na rua e o pessoal mexia, a Doca é quem tinha que tomar satisfação.

Ela sustentava você?

Que sustentava que nada! Sempre dei um jeito de me defender. Eu era gamado nela. Mas o problema todo é que eu sempre fui contra a exploração do homem pelo homem, desde esse tempo. Não tinha jeito pra pegar dinheiro de mulher. Sempre tive muita piedade das pessoas que se danam, que ficam até nessa condição de pagar pelo amor.



Como foi a sua vinda para São Paulo?

Cheguei a São Paulo chamando urubu de meu louro. Pedia a bênção a mendigo. Então, fui trabalhar de camelô. Vendia aquelas canetas que tem uma mulher de bikini e quando você vira a caneta de cabeça pra baixo a mulher fica nua.

Morava onde nessa época?

Quando cheguei, fiquei morando na Estação Rodoviária mesmo. Depois mudei para a UEE (União Estadual dos Estudantes). Mais adiante, consegui mudar para um quarto de pensão. Foi quando comecei a trabalhar na Companhia Cacilda Becker, depois no Teatro de Arena, depois entrei na parte técnica da TV Tupi.

Dizem que as bichas viviam apanhando porque o atacavam muito, quando era mais jovem...

A bem da verdade, e pra meu desgosto, nunca ninguém quis dar pra mim. Eu sempre tive que pedir, pedir, pedir, pedir. Não pras bichas, é claro. Nem mulher, nem homem, nunca ninguém me atacou. Acho que é porque eu sou feioso. Mas aí eu era pidonho. Pedia, pedia, vencia pelo cansaço. Eu tinha aquela peça proibida, 'Barrela". Aí eu falava pras mulheres: dá pra mim que a censura proibiu minha peça.

Isso foi no tempo de solteiro. Mas, e agora? A Walderez não tem ciúme do charme que você exerce sobre as estudantes, especialmente?

A Walderez sabe viver. Sabe que é a minha Rainha Moma: primeira e única. E o pior é que as estudantes quando se aproximam, se aproximam em bolo. Elas vem em monte, nunca vem sozinhas. Em monte não dá pra fazer nada. A Walderez sabe disso. Que elas vem sempre com os barbudinhos. Os barbudinhos que te alugam. Elas vem logo em patota, de cinco, seis. Fica tudo em volta. Aí, tu fica só no meio da roda, dando risada.



Qual o critério de permitirem a publicação de uma peça e proibirem sua montagem no teatro?

A censura no teatro é prévia. A do livro é posterior. Então, a gente edita o livro, se eles proibirem, melhor, porque aí a gente vende até como livro de sacanagem. Eu não posso andar com o elenco embaixo do braço, mas com a mala de livros eu posso.

Acredita que 1978 vai ser mais fácil ou mais apertado em termos de censura?

Quanto mais crise econômica tivermos, mais censura. É diretamente ligado. Se está tudo bem socialmente, pode haver debate. Não pode haver debate justamente quando há a crise econômica, porque então começam a aparecer as contradições do sistema imposto, a inutilidade do sistema autoritário.


Quer dizer que a chance para o teatro político, o teatro de mensagem, está cada vez mais remota no Brasil?

Talvez o teatro político não tenha nem problemas. O que não permitem mesmo é o teatro social. Brecht, o pai do teatro político, dificilmente é proibido no Brasil. Acho que nunca foi. Agora, o teatro social, principalmente se ação se passar entre o Oiapoque e o Chuí, aí tu já viu, né? Você pode fazer no Brasil uma peça sobre o racismo na Africa do Sul, mas não pode fazer uma sobre preconceitos numa gafieira.

Quais os autores que você lê mais?

Não tenho autores favoritos, sabe? Lembro de uma época em que li muito teatro, naquela de procurar uma peça que tivesse um papel para mim. Depois li muitos romances, mas o meu processo de leitura é o seguinte: minha mulher lê muito e me diz "leia esse romance que é legal pra você". Ela faz uma prévia, uma seleção.

Por quê? Você não tem tempo de ler?

É. Quem faz livro não precisa comprar livro. Eu faço em casa, por que vou comprar dos outros?




     

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