Toda cidade que cultiva um sentimento bairrista -- Santos não é exceção -- costuma glorificar aspectos de seu dia a dia para forjar uma identidade local. É um processo que, mesmo quando fomentado por alguém diretamente interessado em promover uma determinada coisa, acaba ganhando vulto naturalmente, no boca a boca.
Na baixa gastronomia, sempre muito democrática e acessível a todos, essa tendência atinge um grau de convencimento muito alto e, com isso, jovens tradições acabam virando verdades absolutas entre a população, ainda que muitas vezes sem o devido merecimento.
No Rio de Janeiro, por exemplo, temos o caso dos Camarões Empanados da Confeitaria Colombo, que são vendidos como iguarias e custam os olhos da cara, quando, na verdade, são apenas camarões empanados comuns. Quem os promoveu a iguarias muitos anos atrás, com certeza exagerou. Mas, paciência: agora já foi.
Em São Paulo, outro exemplo: os Sanduíches de Pernil do Estadão. Existem pelo menos 50 bares na cidade que preparam sanduíches de pernil muito superiores ao servido lá. Eu, pessoalmente, acho o pernil do Estadão cítrico e perfumado demais, e apimentado de menos. Mas para o paulistano orgulhoso de sua cidade, comer o Sanduíche de Pernil do Estadão -- ou então aquela aberração daquele Sanduíche de Mortadela na chapa com Queijo Derretido que é servido no Mercado Municipal -- é, antes de mais nada, uma questão de honra e de reverência a São Paulo. Durma-se com um barulho desses....
Aqui em Santos, existem alguns casos semelhantes na Baixa Gastronomia local.
Escolhemos 3 deles para desmistificar aqui em Mangia Che Te Fa Bene! neste sábado.
Vamos a eles:
TORTA DE BANANA DO LANCHES SEVILHA
Eis aqui um caso típico, que já está na terceira ou na quarta geração de cultuadores. Para quem não sabe, nos Anos 70, a Torta de Banana do Sevilha tinha uma receita completamente diferente da atual. Era menos massuda, não levava leite condensado e era adoçada com xarope de groselha, tanto que tinha uma cor levemente avermelhada. Hoje não é mais assim. Parece um empadão de banana, e ficou doce demais. Estranho o culto a essa torta manter-se vivo depois dessa mudança drástica na receita. Vai entender...
PASTEL DE PALMITO DO CAFÉ CARIOCA
Um clássico da casa nos Anos 70 e 80. Era preparado a partir de um purê de cebola cozida com salmoura de palmito e maizena, acrescido de pedaços generosos de palmito e um camarão pequeno solitário em cada pastelzinho. Estranhamente, ainda tem seus cultuadores hoje. Apesar do purê de cebola batido com maizena agora ter apenas sabor de maizena. Apesar do camarãozinho solitário ter sido criminosamente eliminado da receita original. E apesar do palmito utilizado hoje ser o mais barato disponível no mercado -- aquele que já vem picado no pote.
BOLINHO DE BACALHAU DO BAR DO TONINHO
Era uma iguaria nos tempos em que o Bar do Toninho funcionava numa loja pequena na Av. Epitácio Pessoa, atrás da Igreja do Embaré. Um bolinho macio, molhadinho, com batata, farinha, bacalhau e temperos muito bem equacionados. A fritura era realizada da forma correta, primeiro passando os bolinhos por uma frigideira com óleo em fogo médio para depois serem finalizados numa frigideira com óleo em fogo alto, para formar a casquinha rapidamente sem ressecar o recheio. Quando mudou para a Rua Oswaldo Cochrane, a iguaria carro-chefe do Bar do Toninho teve sua receita original alterada. Virou um bolinho seco, massudo, com muita farinha, peixe salgado demais e quase nenhuma batata. O requinte que antes havia no ato de fritar deixou de existir, provavelmente por motivos econômicos. Estranhamente, o bolinho de bacalhau do Bar do Toninho continua sendo cultuado por alguns que provavelmente nunca provaram os bolinhos de bacalhau genuinamente portugueses servidos em casas como o Último Gole e o Bar Goiás.
Obrigada pelo artigo. Pensei que meu paladar é que tinha mudado com a idade. A torta de banana do Sevilha era uma das iguarias da minha infância. O pastel de palmito do Carioca (e também o de carne, com o recheio cremoso, farto, derramando pra fora da massa a cada mordida) foram iguarias da parte jovem da minha fase adulta. Na época, eu trabalhava na Câmara Municipal; primeiro mandato do PT na cidade, governo da Telma. Trabalhávamos feito loucos... o dia inteiro sem comer. Os pastéis do Carioca eram nosso momento de salvação e deleite.
ReplyDeleteQuanto aos bolinhos de bacalhau do Toninho... nunca provei. Minha avó (que nem era de origem portuguesa) sempre me alertou: "cuidado com os bolinhos de bacalhau aqui em Santos, eles colocam farinha no lugar da batata". Crime!
Obrigado, Denise. Desses todos mencionados, o pastel de carne e o pastel de queijo do Café carioca continuam impecáveis até hoje
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Este é o artigo que descreve com maestria a época em que eu trabalhei na agência central dos Correios de Santos e íamos ao final do expediente, ao bar do carioca para comer o pastel de palmito tão bem descrito por você. Maravilhosos eram os pastéis de carne e o famoso "sonho da ilha", um doce de massa levíssima e com recheio doce na medida e delicioso. A torta de bananas do sevilha era regada com groselha ou vinho e a massa mais fina, concordo, uma delícia! E o bolinho de bacalhau tinha a massa de batatas. Hoje, comi a torta do sevilha adulterada: no lugar da groselha temos um corante doce, a massa não é mais mesma, e ainda acrescentaram doce de leite ruim e artificial. Hoje, tudo é mal feito e artificial.Não dá gosto de comer!
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