Tuesday, November 10, 2015

NAVAL (uma crônica de Carlão Bittencourt)



Jogou a bola sete sem pressa, certo da tacada perfeita. Só não contava com a descaída da mesa. "Morfética”, rosnou, entre dentes. E lá se foi mais uma partida. Mais uma chance de empatar o jogo, duríssimo, uma pedreira que já se arrastava por mais de dez horas. Pelo jeito, isso aqui vai longe, matutou.

Naval pôs o taco sobre o feltro verde e disse ao adversário que ia ao banheiro. Pediu para ele arrumar as bolas, que voltaria logo. “Vou tirar a água do joelho”, disse, forçando um sorriso.

No sanitário, sua máscara caiu. Ao olhar para o espelho, quase não se reconheceu. “Quem é esse caco velho”, pensou. Cadê o Naval falado? Onde foi parar aquela cara de anjo, aquele sorriso maroto, que ajudavam a camuflar uma das piranhas de jogo mais vorazes de todos os tempos? 

Trinta anos de sinuca é demais. Até para um malandro. É muito tempo de mesa. Tempo demais. Mereceria duas aposentadorias. Ou três. Ou um plano de saúde de Primeiro Mundo, desses que têm cobertura até para hipocondria.



Naval sacou logo que, daquele jeito, não ia agüentar o tranco. Estava à beira do estaleiro. O corpo não era o mesmo. Pelo contrário. As costas e pernas já pesavam. Como a idade. A cabeça doía. Os olhos vermelhos, injetados. Não, não tinha escolha. Precisava voltar ao jogo e trancar as próximas duas partidas, enquanto ainda tinha forças. Caso contrário, ia ficar no prejuízo. E ele não podia mais se dar ao luxo de perder. Estava na pior, a perigo, matando barata com cuspe. Literalmente.

Enquanto lavava o rosto, lembrou de quando os patrões de jogo o disputavam como a uma vedete francesa. Aos tapas e gritos. Também pudera, pensou, naquela época, o Naval fazia pelo menos uma milha por noite. Fácil. 

Encarou o rosto molhado e viu, por trás daquela triste imagem escombrada refletida no espelho, alguns traços que revelavam certa familiaridade com uma figura conhecida. Como um pai admirando o próprio filho, reviu o marujo atrevido, bom de pernas e de copo, melhor ainda de taco. O soberano de todas as biroscas de sinuca onde entrasse. O preferido das marafonas dos muquifos de prostituição espalhados pelos portos de todas as cidades. O campeão da gloriosa marinha mercante brasileira. O jovem Naval.



Chega de sonhos, disse para a figura cansada e abatida que penteava os cabelos grisalhos, diante dele. É hora de voltar à mesa, encarar a barra e não dar vacilo. O jogo é jogado. E Naval foi para as cabeças. Como um velho e castigado saveiro que parte sem conhecer ao certo o seu destino. 

O grande relógio de parede agora marcava cinco horas. Da manhã. Naval e seu parceiro continuavam jogando. Sem descanso, sem trégua, sem piedade. Que guerra. Uma conta rápida e exata mostrava que aqueles dois já estavam duelando há, pelo menos, 24 horas. Um dia inteiro rodando em volta da mesa verde. 

Se você calcular que cada hora de jogo equivale há quase cinco quilômetros de caminhada, verá que aqueles dois já tinham completado duas maratonas. Inteiras. Isso se sinuca fosse esporte. Mas não é. Sinuca é jogo duro, portanto, não dá camisa a ninguém. Pelo contrário. 

O tempo passa. Naval lembrou disso na hora do almoço, enquanto tentava transformar um misto quente e uma cerveja preta em energias para continuar a batalha. 

"Bate uma Caracú com dois ovos, um para cada culhão!"  

A corriola que se formara em torna da mesa riu com a frase jocosa, malandra, cheia de baratino. Naval também riu. Só seu adversário não achou graça. Nenhuma graça. Ele que esteve sempre uma melhor de três à frente de Naval, agora via o jogo empatado. E seu adversário se sentindo bem, com mais confiança, o safado.

Esse marujo velho é o capeta, pensou. Há poucas horas atrás estava quase no chão, mais por baixo do que cu de cobra. Agora está aí, fazendo graça, até comendo o filho de uma égua está. Preciso firmar no jogo, acertar a mão, senão a maré vai mudar. E voltou à mesa com as piores intenções.


Naval não tomou nem conhecimento. Fosse pelo sanduíche, fosse pela cerveja preta, ou pelos dois ovos milagrosos, o fato é que seu jogo havia voltado. Sem dúvidas. Estava mais solto, as bolas voltaram a cair, tinha melhor domínio da branca, a batedeira e, principalmente, sentia que podia ganhar. 

Confiança é importante, ainda mais em jogo. Só não vale ter em excesso porque aí “vira o fio”, ou seja, o que é uma qualidade vira defeito. 

E muito taco bom foi dormir na rua porque levou fá demais no próprio taco. Tem que haver equilíbrio nesse acreditar. Harmonia. Senão a compreensão da realidade escapa e vai parar na caçapa. E o jogador vai junto com ela. Direto pro buraco. 

Naval olhou para a mesa e viu logo que não tinha saída. Estava numa sinuca brava. Ou jogava a bola sete, ou ia se abrir feito um pára-quedas.



A sua hora tinha chegado. Como sempre chega para quem vive de jogo. Tinha que arriscar a partida, jogando a preta no fundo. E de giro. Isto é, fazendo com que ela batesse em duas tabelas antes de ir para a caçapa cantada. Passou giz no taco, estudou o lance e bateu na branca. 

O mundo gira, a Luzitana roda. A batedeira saiu com a força certa e bateu na sete. Esta, por sua vez, deu numa tabela, correu para a outra, pegou efeito e seguiu seu caminho em direção à caçapa do fundo. Reta, determinada, inexorável, perfeita.

O adversário de Naval ficou de lado para a mesa, como que dizendo que aquela jogada era impossível e, portanto, não merecia atenção. Como se aquele lance não valesse o que valia, o jogo e todas as suas apostas. Como se aquela preta, ao cair, não estivesse trazendo de volta uma lenda da sinuca, o jovem e invencível Naval. Orgulhoso, altaneiro, majestoso como o Cisne Branco. 

O estalido seco, abafado, mortal, da bola ao cair no fundo da caçapa, avisou-o de que o cais do porto de Santos, ainda uma vez, estava em festa.







Carlão Bittencourt é redator publicitário e cronista, 
autor de "Pela Sete - Breves Histórias do Pano Verde" 
(2003, Editora Codex), 
um mergulho no universo dos salões de bilhar de São Paulo, 
e escreve todas as quartas-feiras em LEVA UM CASAQUINHO












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