publicado originalmente no Jornal do Brasil
Assim como tem sido um programa cultural obrigatório visitar em São Paulo a Mostra do Redescobrimento, também será indispensável ver, a partir de agora, Esplendores de Espanha – de El Greco a Velázquez –, a mais completa exposição internacional sobre o barroco já montada no Rio de Janeiro, talvez no Brasil. Se a tarefa não bastar pelo simples prazer visual, se não valer apenas pelo mero gozo estético, o que dificilmente deixará de acontecer, valerá ao menos pela curiosidade histórica de mergulhar num momento de opulência e glória do qual participamos, ainda que de lambuja e a distância, como sempre.
Foi quando a Espanha, depois de se apossar da Coroa vizinha, criou a União Ibérica e incorporou a seu imenso império colonial Portugal e, por extensão, o Brasil, que estava engatinhando.
O chamado Século de Ouro, que vai de fins do século XVI a fins do seguinte, é um dos momentos dourados e mais radiantes do barroco, um estilo artístico que é também uma expressão de vida, uma visão de mundo, uma maneira de sentir, de ver, de se vestir e até de ser. Por isso, volta e meia a gente recorre a esse movimento procurando decifrar o país: será o Brasil um país barroco e, portanto, meio difícil de entender?
Parece que sim. O Brasil não só nasceu culturalmente barroco, como o barroco é “a alma do Brasil”, para citar o livro de Affonso Romano de Sant’Anna sobre o tema. Graças ao estilo, o país foi capaz de criar esplendores como Ouro Preto, erguer obras-primas como algumas igrejas de Minas, Salvador, Recife e Olinda, e dar ao mundo um gênio como Aleijadinho. É por causa do barroco que o visitante sente aquela vertigem, um quase delírio, uma febre do ouro ao entrar na Igreja de São Francisco, em Salvador, e olhar para as paredes.
O barroco não foi. Ele ainda é, continua presente em quase todas as manifestações da cultura brasileira, da arquitetura à pintura, da comida à moda, passando pelo futebol e pelo corpo feminino. Nada mais barroco que os seios de Gisele Bündchen. O rosto, não, é romântico. O bumbum é clássico, as pernas até meio cubistas. Mas, os seios, esses não. Com eles o barroco Oscar Niemeyer teria feito – ah, se tivesse visto antes! – duas rimas ricas para as curvas do Museu de Arte Contemporânea de Niterói.
Barroca é a técnica de composição que Villa-Lobos usou para criar suas nove “Bachianas”. Barroco é o cinema de Glauber Rocha, é nossa exuberante natureza, é o futebol de Pelé e de todos os que, driblando a racionalidade burra dos técnicos, preferem a curva misteriosa de um chute ou o esplendor de uma finta. Afinal, o barroco é o estilo em que, ao contrário do renascentista, as regras e a premeditação importam menos que a improvisação. Quer coisa mais barroca que o Guga?
Há ainda certa resistência em aceitar o barroco como expressão de nossa alma. O presidente, por exemplo, não gosta. Já disse que é cartesiano, embora admitindo ter um pé na cozinha e no candomblé. Às vezes se toma depreciativamente o estilo por seus excessos – confusão, ênfase e paradoxos. Mas isso é barroquismo, não é barroco. A evolução etimológica ajuda a entender. Barroco, na origem, designa uma pérola grande e com defeito – assim como um país que a gente conhece.
Zuenir Ventura é carioca, escritor,
jornalista, figura humana fantástica,
e é um privilégio ser contemporâneo dele,
ainda que num Brasil tão triste
quanto esse em que vivemos hoje
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