Wednesday, November 25, 2015

O LADO A E O LADO B DE "DURVAL DISCOS" (Cineclube Pagu Quarta 19 horas)

por Lucas Rodrigues Pires
para DIGESTIVO CULTURAL


O slogan de publicidade do filme Durval Discos afirma que "tudo na vida tem um lado A e um lado B". O filme de Anna Muylaert, já em exibição nos cinemas, é exatamente assim: tem um lado A que caminha muito bem, mas o lado B deixa um pouco a desejar.

Lado A

Para começar, Durval Discos tem uma das aberturas mais criativas e fantásticas do cinema brasileiro contemporâneo. A câmera flutua pelas ruas de Pinheiros, bairro da cidade de São Paulo, e em sua paisagem natural inclui os créditos do filme, ora mergulhando em lanchonetes, chaveiros, casa de jogos e mesmo nos transeuntes do momento. É uma seqüência longa, de uns quatro minutos, sem cortes, que lembra muito a célebre cena inicial de A Marca da Maldade, de Orson Welles. Depois disso, entram em cena os personagens. Durval é um quarentão dono de uma loja de discos de vinil - que não aderiu ao CD e nem pretende - que mora com a mãe num dos sobrados de Pinheiros. Solteiro, ele segue sua vidinha sem graça com a sempre constante presença castradora da mãe, numa atuação excepcional de Etty Fraser. Tudo muda quando decidem contratar uma empregada para ajudar nos afazeres domésticos. Eis que surge Célia, amável e que inexplicavelmente aceitou um salário de 100 reais. Dois dias depois ela some e deixa uma garota de 5 anos, Kiki, e um bilhete, onde pede que cuidem da menina enquanto estiver fora. A partir daí, o roteiro, escrito pela própria diretora, dá uma reviravolta non-sense, deixando o espectador deslocado na trama, perdido entre o suspense e o surrealismo da situação. Não revelarei o que acontece para não estragar a história de quem ainda não viu o filme.

Lado B

Dada a linha narrativa da história, é preciso ressaltar alguns pontos cruciais na produção. Uma delas é a trilha sonora. Houve um apreço muito grande por parte da equipe em conseguir algumas canções para o filme. Há desde Tim Maia a Novos Baianos, passando por Jorge Ben Jor, Elis Regina e Toquinho e Vinicius. Tais músicas estão inseridas no ambiente do filme, tocadas na vitrola antiga de Durval. E exatamente por isso que em muitas passagens o som da música atrapalha a compreensão dos diálogos. Num dos primeiros papos de Durval com Elizabeth (Marisa Orth) é quase impossível entender o que dizem.

Lado A

Em compensação, Durval Discos é aula de cinema a quem gosta da arte. Se disse acima que a abertura era digna de Orson Welles, reforço afirmando que todo o filme tem elementos do cinema do gênio que filmou Cidadão Kane. Muitos elementos, inclusive deste, como os ângulos inusitados de câmera, o aprofundamento de campo e o enquadramento que rebaixa o teto da casa, o que cria um aspecto de achatamento e deformação dos objetos em cena. Tudo isso foi visto em Cidadão Kane e parece que Anna Muylaert incorporou a seu trabalho.

O trabalho de fotografia e câmera lembra, trazendo a comparação ao campo presente, o cinema de M. Night Shyamalan, em especialCorpo Fechado. Poucas vezes a câmera fica estática. O movimento suave de aproximação e recuo, além do artifício de dar o olhar subjetivo do protagonista (quando a câmera segue o olho do personagem), dão ao filme um respiro de criatividade e diferencial no meio do cinema chapa branca que se vê atualmente no mundo hollywoodiano.

Se Durval Discos não traz uma estética moderna para o cinema brasileiro, como fizeram O Invasor, Cidade de Deus e Abril Despedaçado, viaja no tempo e recria o cinema clássico alternativo americano, no qual Orson Welles se inclui como seu maior expoente. Bebendo nessa fonte, aliada à trilha sonora escolhida a dedo, a diretora construiu um filme repleto de cenas marcantes que vão ficar marcado na história do cinema brasileiro da Retomada. É exatamente esse aspecto que explica os sete prêmios recebidos pelo filme no último festival de Gramado, onde concorreu com o excelente Dois Perdidos numa Noite Suja, que entra em cartaz dia 4 de abril. Como exemplo de cenas memoráveis, que ficam na mente do espectador ao final da sessão, incluo a já citada abertura; a corrida de Kiki de bicicleta pela casa; a dança de Durval e Kiki em volta do balcão de discos ao som de "Mestre Jonas"; e a mais surreal das cenas, digna de um quadro de Dali - a composição de um cavalo montado por uma garota vestida de bailarina pintando a parede com uma vassoura embebida em sangue, um cadáver deitado na cama, uma senhora a arrumar o guarda-roupa, e tudo isso dentro de um quarto de um sobrado!!! Não posso esquecer de inserir outra cena magistral nesse rol de preciosidades - a volta de charrete pelo asfalto de São Paulo ao som de "Besta É Tu" com os Novos Baianos. Mais um momento magistral que há em Durval Discos.

Pesando positivamente também está o elenco. Ary França, com seu cabelo enorme e cara de bobo inocente, passa toda a desilusão de um solteirão preso à mãe. Etty Fraser está sublime como essa mãe que, viúva, só teve como pedir socorro ao filho e nele se apoiar. Com a chegada da menina, o objeto de devoção da mãe passa a ser a pequena, a quem até um cavalo de verdade é dado e levado pra dentro de casa. Essa ligação, de um simples gostar torna-se obsessão e culmina com a loucura plena. Foi esse sentimento de transformação, de evolução da insanidade - muito bem caracterizado pela atriz - que fez com que o absurdo daquilo fosse realmente visto como absurdo.

Lado B 

Se for assim, esse absurdo acaba por explicar o non-sense pelo qual critiquei o filme anteriormente. Pensando bem, faz parte do contexto e da idéia de filme idealizada por Muylaert.


DURVAL DISCOS
(2003, 96 minutos)

Roteiro e Direção
Anna Muylaert

Produção
Sara Silveira

Fotografia
Jacob Solitrenick

Música
André Abujamra

Elenco
Ary França
Etty Fraser
Letícia Sabatella
Marisa Orth
Rita Lee
André Abujamra
Marcelo Mansfield
Théo Werneck
Ary França
Beto Mello
Bicudo Júnior
Chico Américo
Cláudia Juliana
Fábio Sleiman
Isabella Guasco
Kadu Torres
Ken Kaneko
Primo Preto
Regina Remencius
Tania Bondezan
Wilson Simpson



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