De todos os escritores australianos em atividade, Richard Flanagan é, certamente, o que obteve maior projeção pelo mundo afora. Nascido em Longford, na Tasmânia, em 1961, possui até agora seis romances publicados. Além disso, ostenta em seu currículum um longa-metragem que escreveu e dirigiu, mas que foi pouco visto: "The Sound Of One Hand Clapping". Ah, e também é co-responsável pelo roteiro de "Australia", épico grandiloquente do talentoso e habilidoso (mas duvidoso) Braz Luhmann.
Richard Flanagan ganhou o prestigiado Man Brooker Prize de 2014 por seu sexto e mais ambicioso romance, "O Caminho Estreito Para os Confins do Norte", que recebeu em meados de 2015 uma elogiada tradução para o português em uma bela edição da Biblioteca Azul, que não mediu esforços em tentar envolver em seu universo literário todos os que estiveram em Paraty em Julho conhecer o autor pessoalmente na última FLIP. Tanto que até relançou por aqui, em uma nova tradução, seu romance mais conhecido: "O Livro dos Peixes de William Gould - Um Romance em 12 Peixes", publicado originalmente pela Cia. das Letras em 2002.
"O Caminho Estreito Para os Confins do Norte" é inspirado na história do avô de Flanagan. Conta a trajetória de vida de Dorrigo Evans, um médico do exército australiano que foi feito prisioneiro de guerra pelo exército japonês na Segunda Guerra. Os japoneses colocaram todos os prisioneiros para trabalhar nas pedreiras e nas estradas, visando construir uma imensa ferrovia pelo Continente Asiático que parecia -- e era -- sem fim. Fracos, famintos e abandonados à própria sorte, esses homens viam no empenho de Dorrigo como médico ao cuidar deles uma razão para continuarem vivos.
Mas Dorrigo não via a si próprio com toda essa nobreza de caráter. Era casado com Ella, com quem mantinha uma relação meio distante. Mas era apaixonado por Amy, a esposa de um tio seu com quem teve um romance de alcova. Seu tio -- um homem importante e politicamente influente -- descobriu o romance e assim que soube que Dorrigo havia sido feito prosioneiro não mediu esforços para que sua liberdade não fosse negociada e ele permanecesse preso naquele Campo de Trabalhos Forçados.
Se Dorrigo tinha uma atitude magnânima naquele lugar, sob circunstâncias extremamente inóspitas, era porque via nessa atitude um caminho estranho entre a virtude e a vaidade, que talvez pudesse, de alguma maneira, redimí-lo das falhas de caráter e dos passos em falso cometidos quando era um homem livre. Dorrigo não acreditava em virtudes. Para ele, a virtude era apenas a vaidade bem vestida e esperando aplausos. Ele estava farto de dignidade e nobreza. Um prisioneiro de guerra vive à margem de todas as relações sociais possíveis. Se a guerra desumaniza o homem, o prisioneiro desta guerra acaba sendo uma espécie de morto ainda não sepultado. Alguém cujos direitos passam pela boa vontade e pela boa índole de sujeitos, quase sempre alheios às ordem de um estado. Era nisso que Dorrigo apostava enquanto tratava de sobreviver naquele lugar.
(aqui, um pequeno adendo histórico: a Ferrovia da Birmânia -- ou "Ferrovia da Morte", como ficou conhecida a obra de engenharia da qual os prisioneiros do romance de Richard Flanagan fazem parte -- era um projeto que os ingleses, que entendem de ferrovias como ninguém, afirmavam categoricamente ser impossível de realizar em menos de 15 anos. Mas o Império Japonês, que queria a todo custo ligar a Tailândia à Birmânia, para com isso dar suporte a suas tropas durante a Segunda Guerra Mundial, ignorou esse prognóstico e não hesitou em levar quase 300 mil prisioneiros para a selva asiática para tentar viabilizar a estrada de ferro o quanto antes. Conseguiram realizá-la em pouco mais de dois anos, ainda que com erros estruturais medonhos e mais de 90 mil trabalhadores braçais mortos durante a obra. Quem quiser saber mais sobre o assunto, a referência mais viva talvez seja 'A Ponte do Ri Kwai", grande filme de David Lean, de 1957, ano em que a estrada foi reativada depois de uma longa reforma)
Não espere de "O Caminho Estreito Para os Confins do Norte" um romance realista de guerra, como tantos outros. É, na verdade, uma aventura filosófica sobre a natureza humana em situações extremas. Dorrigo, à sua maneira, repete a Odisséia de Homero ao conseguir sobreviver a tudo o que passou voltar para Ella, tentando reconstruir sua vida interrompida e mantendo os horrores da guerra e do confinamento no espelho retrovisor.
"O Caminho Estreito Para os Confins do Norte" não teve um parto fácil. Exigiu muita pesquisa e levou 12 anos para ser escrito. Seu título vem de um poema do poeta Bashô, e aponta para alguns temas que sempre serão caros à humanidade: o amor, a esperança, a morte e, principalmente o ser humano. Do universo literário mágico e transformador de Richard Flanagan podemos concluir, sem a menor sombra de dúvida, que enquanto a literatura contemporânea seguir olhando para a literatura clássica em busca de novas perspectivas para os impasses literários modernos, ela sempre conseguirá encarar eventuais encruzilhadas artísticas como meros cruzamentos, e nada além disso.
Entenderam agora porque Richard Flanagan é o maior escritor australiano vivo?
O CAMINHO ESTREITO PARA OS CONFINS DO NORTE
(THE NARROW ROAD TO THE DEEP NORTH)
Um Romance de Richard Flanagan
(Biblioteca Azul, 2015, 432 páginas)
Tradução: Celso Mauro Paciornik e Augusto Pacheco Calil
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