Sunday, May 22, 2016

PALAVRAS (um conto mínimo de Márcio Calafiori)



Meu pai costuma usar palavras que ninguém usa. Uma delas é inapetente. Ouvi-a pela primeira vez na hora do almoço. Foi quando minha mãe ordenou que eu não saísse da mesa sem antes comer tudo.

“Se ele está inapetente, não o obrigue a comer!”, disse meu pai.

“Ele precisa se alimentar! Não gosta de nada.”

“O alimento só faz bem quando apetece”, ele insistiu.

“Nunca ouvi falar disso”, mamãe respondeu.

Prontamente, meu pai encerrou a questão:

“Abstenha-se!”

E logo em seguida, se dirigindo a mim:

“Podes se retirar. Mas não te ponhas qual um corcel fogoso.”

Gosto de ler em voz alta os comentários que ele faz quando a professora propõe o debate de algum tema. Certa vez o assunto foi: “Devemos ou não dar esmola?”. Levei-lhe a questão e meu pai ditou para que eu escrevesse no meu caderno: “O óbolo humilha quem recebe e avilta o caráter de quem dá”.

Ontem eu estava no banheiro. Minha mãe bateu na porta:

“Vais demorar muito, guri?”

“Não, tô acabando de defecar.”

“O quê?!”

“Tô acabando de defecar!”

Quando saí, ela me disse:

“Sempre que o teu pai não estiver em casa, fala como uma pessoa normal. Combinado?





Márcio Calafiori é jornalista. 
Nasceu em 1957 e se formou 
pela Facos em 1986. 
Exerceu quase todos os cargos 
em redações de jornais em Santos, 
Santo André, Campinas e São Paulo. 
Foi redator, repórter, revisor, editor, 
secretário de redação, 
chefe de reportagem e ombudsman. 
Aposentou-se em 2012 
como professor da Unisanta, 
depois de 29 anos 
de dedicação exclusiva 
ao Jornalismo Impresso.
Colabora regularmente com
LEVA UM CASAQUINHO.


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