por Carlos Cirne
para Colunas & Notas
Gostar de música não é o mesmo que conseguir fazê-la. Muito menos quando se vive na Paris dos anos 1920, e a música em questão é operística. Não basta gostar e conhecer. Talento é fundamental. Ou então um grande círculo de “amigos e p"arentes”. Pelo menos é o que se passa com Marguerite Dumont (a fantástica Catherine Frot), baronesa por casamento, riquíssima de nascença.
Como os créditos iniciais dizem, “Marguerite”, novo filme de Xavier Giannoli (de “Quando Estou Amando”, 2006), é inspirado em fatos reais, ou seja, na história ainda mais assombrosa de Florence Foster-Jenkins, cantora norte-americana que se dedicava à música clássica sem o menor talento para tal. Na versão de Giannoli (que além de dirigir, também é autor do roteiro em parceria com Marcia Romano), Marguerite é uma rica herdeira, adulada pela sociedade francesa em função de sua fortuna – ela não poupava recursos para a filantropia – e “preservada” pelos mais próximos, incluindo seu marido, Georges Dumont (André Marcon). Sem a menor noção de ritmo e tom, suas récitas eram verdadeiras sessões de tortura, reservadas a poucos convidados em ocasiões de benemerência.
E tudo conspirava para que ela continuasse nesta ilusão de talento: dúzias de flores recebidas depois de cada apresentação (enviadas pelo mordomo a mando do marido); aplausos extasiados de seus convidados mais interessados em sua contribuição para causas humanitárias, ou suas polpudas recompensas em espécie; sua coleção de partituras clássicas originais, figurinos e cenários de montagens operísticas; e a fidelidade canina de seu mordomo, Madelbos (Denis Mpunga), misto de vassalo, chofer e fotógrafo oficial da cantora. Este, aliás, em muito lembrando a personagem Max, de Erich von Stroheim, em “Crepúsculo dos Deuses”, obra-prima de 1950, dirigida por Billy Wilder. Como Max, por Norma Desmond (Gloria Swanson), Madelbos seria capaz de qualquer coisa por Marguerite, incluindo a contravenção.
Mas como sempre há um ponto de virada, este acontece quando, em uma das apresentações de Marguerite, surgem, como penetras, um jornalista, Lucien Beaumont (Sylvain Dieuaide), e um artista performático anarquista-bolchevique (!), o inconveniente Kyrill Von Priest (Aubert Fenoy), que percebem o falso sucesso de Marguerite, e resolvem tirar partido disso. Beaumont escreve uma crítica no jornal muito criativa sobre a performance dela (não deixando claro se gosta ou não), Marguerite se sente lisonjeada, o procura, conhece Kyrill e, quando percebe está recebendo toda a atenção que esperava do marido e não conseguia. Beaumont e Kyrill a apresentam a um cantor de óperas decadente, Atos Pezzini (Michel Fau), este se torna seu professor e, finalmente, ela resolve fazer uma apresentação pública, num grande teatro. E o caos está formado.
Mais do que a cativante história em si, “Marguerite” é sobre a fragilidade do desejo humano, seja por sucesso, carinho ou amor. Alimentado, um ego pode nos levar por caminhos tortuosos. E o resultado nem sempre é a luz. O desfecho da história, emblemático, é ao mesmo tempo um recomeço.
Merecidamente recebendo os prêmios César deste ano para Figurinos, Design de Produção, Som e Atriz (além de mais sete indicações), “Marguerite” repousa fundamentalmente no talento de Catherine Frot. Um espetáculo. Não perca!
Em tempo: no próximo mês chega às telas “Florence: Quem é Esta Mulher?” (Florence Foster-Jenkins, 2016), estrelado por Meryl Streep, com a biografia da cantora americana. Lembrando também que esta já foi representada em nossos palcos pela inesquecível Marília Pêra, no espetáculo “Gloriosa” (2009), com direção de Charles Möeller e Cláudio Botelho.
MARGUERITE, A ARTISTA SEM TALENTO
por Bruno Carmelo
para Adoro Cinema
O que pode ser considerado arte? O que é um bom artista? Essas são algumas das mais importantes questões da filosofia estética, e não possuem nenhuma resposta clara. Até agora, a melhor definição de arte encontrada por teóricos é esta: “arte é tudo aquilo considerado arte por instâncias legitimadoras do poder”. Ou seja, a partir do momento que figuras do poder dizem que algo é arte, ele passa a ser. No caso do cinema, Alfred Hitchcock e Ingmar Bergman eram considerados diretores de segunda ordem, até os poderosos críticos de cinema franceses, na década de 1950, dizerem que se tratavam de gênios. Do mesmo modo, grandes talentos podem ter passado despercebidos em suas épocas, por não terem sido destacados como tal.
Esses questionamentos são relevantes quando se discute um filme como Marguerite, de Xavier Giannoli. A trama gira em torno de uma rica baronesa (Catherine Frot), que organiza festas em sua casa para cantar aos convidados. Todos a adoram e elogiam suas apresentações, por não terem coragem de dizer o óbvio: ela é uma péssima cantora, que desafina a cada nota. Por educação, por submissão ao título de baronesa e para não perderem o convívio com a alta nata da sociedade, os amigos se calam e aguentam os sons atrozes emitidos pela anfitriã. Marguerite, sorridente, acredita que canta muito bem.
Considerando que a história é geralmente escrita pelos vencedores e pelos ricos, Marguerite Dumont (inspirada na cantora real Florence Foster Jenkins) poderia facilmente se passar por um grande nome da música clássica. Aliás, um jornalista interesseiro e jocoso (o excelente Sylvain Dieuaide) inclusive tece elogios à baronesa, na intenção de frequentar os encontros na mansão. Enquanto isso, a jovem Hazel (Christa Théret), de origem humilde e realmente talentosa, passa longe dos radares por não servir aos interesses de ninguém. As diferenças de classe e relações de poder são determinantes na produção artística, em outras palavras, cada sociedade colhe a arte que plantou. No caso dos nobres hipócritas dessa história, eles merecem os gritos ensurdecedores da protagonista.
Como pode se perceber, esta obra constitui uma fábula rica em significados. Giannoli consegue embutir vários níveis de leitura, tornando a obra fascinante. Um dos primeiros aspectos presentes é, portanto, a vertente política: Marguerite traça uma crônica mordaz aos costumes da burguesia francesa no início do século XX. Para quem pensa que a protagonista será ridicularizada por sua ingenuidade, a surpresa é constatar um olhar muito mais crítico àqueles que sustentam esta ilusão. O mundo das aparências afeta todos os níveis hierárquicos, incluindo o marido da personagem, seus amigos próximos, os jornalistas que se aproveitam de sua riqueza, o motorista zeloso, as empregadas, o professor, a jovem cantora sem sucesso etc.
O filme também impressiona por suas escolhas estéticas. O diretor evita o deboche e prefere o retrato grotesco, obscuro, beirando o suspense psicológico. A fotografia cinzenta e os espaços vazios da casa transparecem uma atmosfera de desolação. A montagem nunca termina as cenas nos momentos que a cantora possa parecer patética: seguindo a fórmula “drama = comédia + tempo”, deixa as cenas de esticarem após os momentos de canto, trocando a humilhação pela sensação de desconforto. A direção de arte, precisa, também acerta ao passar do realismo à loucura, com imagens belíssimas e criativas – vide as fotografias do mordomo e o olho gigantesco no jardim. Marguerite está sempre a um passo do surrealismo.
Outro mérito é seu humanismo. O roteiro compreende o lado de todos, sem julgar os personagens pela perversa estrutura social: é compreensível que os jornalistas pobres obtenham ajuda da protagonista, faz sentido que o professor de canto, em fim de carreira, aceite treinar a péssima aluna sem apontar sua falta de talento. Cada um se alimenta das carências alheias, numa ciranda de personagens falsos, obrigados a cumprir com obrigações sociais indesejadas. Catherine Frot ajuda muito na empreitada: a atriz genial transita entre vários sentimentos através de pouquíssimos gestos, da fala contida e do olhar preciso. É difícil saber exatamente o que se passa na cabeça da personagem, até que ponto ela acredita na farsa de seu talento. A atriz desenvolve muito bem esta ambiguidade indispensável à narrativa.
Alguns momentos poderiam ser trabalhados com mais refinamento, como a história de Hazel, abandonada durante metade da história. Mas a escolha é compreensível: Marguerite/Catherine devora cada cena em que aparece, e Giannoli faz a escolha arriscada de concentrar todas as suas energias nela. Rumo ao final, o aguardado instante da apresentação é excelente, assim como a conclusão, tão triste quanto irônica. Esta acaba sendo a história de uma grande artista sem talento, uma figura importante não pela contribuição à música, mas por seu papel como sintoma de uma época.
MARGUERITE, A ARTISTA SEM TALENTO
por Bruno Carmelo
para Adoro Cinema
O que pode ser considerado arte? O que é um bom artista? Essas são algumas das mais importantes questões da filosofia estética, e não possuem nenhuma resposta clara. Até agora, a melhor definição de arte encontrada por teóricos é esta: “arte é tudo aquilo considerado arte por instâncias legitimadoras do poder”. Ou seja, a partir do momento que figuras do poder dizem que algo é arte, ele passa a ser. No caso do cinema, Alfred Hitchcock e Ingmar Bergman eram considerados diretores de segunda ordem, até os poderosos críticos de cinema franceses, na década de 1950, dizerem que se tratavam de gênios. Do mesmo modo, grandes talentos podem ter passado despercebidos em suas épocas, por não terem sido destacados como tal.
Esses questionamentos são relevantes quando se discute um filme como Marguerite, de Xavier Giannoli. A trama gira em torno de uma rica baronesa (Catherine Frot), que organiza festas em sua casa para cantar aos convidados. Todos a adoram e elogiam suas apresentações, por não terem coragem de dizer o óbvio: ela é uma péssima cantora, que desafina a cada nota. Por educação, por submissão ao título de baronesa e para não perderem o convívio com a alta nata da sociedade, os amigos se calam e aguentam os sons atrozes emitidos pela anfitriã. Marguerite, sorridente, acredita que canta muito bem.
Considerando que a história é geralmente escrita pelos vencedores e pelos ricos, Marguerite Dumont (inspirada na cantora real Florence Foster Jenkins) poderia facilmente se passar por um grande nome da música clássica. Aliás, um jornalista interesseiro e jocoso (o excelente Sylvain Dieuaide) inclusive tece elogios à baronesa, na intenção de frequentar os encontros na mansão. Enquanto isso, a jovem Hazel (Christa Théret), de origem humilde e realmente talentosa, passa longe dos radares por não servir aos interesses de ninguém. As diferenças de classe e relações de poder são determinantes na produção artística, em outras palavras, cada sociedade colhe a arte que plantou. No caso dos nobres hipócritas dessa história, eles merecem os gritos ensurdecedores da protagonista.
Como pode se perceber, esta obra constitui uma fábula rica em significados. Giannoli consegue embutir vários níveis de leitura, tornando a obra fascinante. Um dos primeiros aspectos presentes é, portanto, a vertente política: Marguerite traça uma crônica mordaz aos costumes da burguesia francesa no início do século XX. Para quem pensa que a protagonista será ridicularizada por sua ingenuidade, a surpresa é constatar um olhar muito mais crítico àqueles que sustentam esta ilusão. O mundo das aparências afeta todos os níveis hierárquicos, incluindo o marido da personagem, seus amigos próximos, os jornalistas que se aproveitam de sua riqueza, o motorista zeloso, as empregadas, o professor, a jovem cantora sem sucesso etc.
O filme também impressiona por suas escolhas estéticas. O diretor evita o deboche e prefere o retrato grotesco, obscuro, beirando o suspense psicológico. A fotografia cinzenta e os espaços vazios da casa transparecem uma atmosfera de desolação. A montagem nunca termina as cenas nos momentos que a cantora possa parecer patética: seguindo a fórmula “drama = comédia + tempo”, deixa as cenas de esticarem após os momentos de canto, trocando a humilhação pela sensação de desconforto. A direção de arte, precisa, também acerta ao passar do realismo à loucura, com imagens belíssimas e criativas – vide as fotografias do mordomo e o olho gigantesco no jardim. Marguerite está sempre a um passo do surrealismo.
Outro mérito é seu humanismo. O roteiro compreende o lado de todos, sem julgar os personagens pela perversa estrutura social: é compreensível que os jornalistas pobres obtenham ajuda da protagonista, faz sentido que o professor de canto, em fim de carreira, aceite treinar a péssima aluna sem apontar sua falta de talento. Cada um se alimenta das carências alheias, numa ciranda de personagens falsos, obrigados a cumprir com obrigações sociais indesejadas. Catherine Frot ajuda muito na empreitada: a atriz genial transita entre vários sentimentos através de pouquíssimos gestos, da fala contida e do olhar preciso. É difícil saber exatamente o que se passa na cabeça da personagem, até que ponto ela acredita na farsa de seu talento. A atriz desenvolve muito bem esta ambiguidade indispensável à narrativa.
Alguns momentos poderiam ser trabalhados com mais refinamento, como a história de Hazel, abandonada durante metade da história. Mas a escolha é compreensível: Marguerite/Catherine devora cada cena em que aparece, e Giannoli faz a escolha arriscada de concentrar todas as suas energias nela. Rumo ao final, o aguardado instante da apresentação é excelente, assim como a conclusão, tão triste quanto irônica. Esta acaba sendo a história de uma grande artista sem talento, uma figura importante não pela contribuição à música, mas por seu papel como sintoma de uma época.
MARGUERITE
(2015, 129 minutos)
Direção
Xavier Giannoli
Elenco
Catherine Frot
André Marcon
Michel Fau
Christa Théret
Denis Mpunga
Sylvain Dieuaide
Aubert Fenoy
Sophia Leboutte
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