Wednesday, June 29, 2016

GILDA (por Ademir Demarchi)



Rubens Aparecido Kinke, um ilustre desconhecido, desapareceu sob o nome de Gilda. Essa sim era uma persona marcante, que viveu em Curitiba e teve seu auge no fim da década de 1970, quando o país se movimentava nas ruas em busca de liberdade e pelo fim da ditadura sem graça que vestia a vida de uniforme.

Gilda era só alegria, habitando principalmente a Rua XV de Novembro, que foi um dia a Rua das Flores. Ela gostava mesmo era de ficar na região antes conhecida por Boca Maldita. A Boca que hoje nada tem de maldita, está desdentada e esvaziada do burburinho e até sem os cafezinhos que eram os pontos de encontro da maledicência e da fofoca que deixavam a capital mais nervosa.

Gilda vivia nas ruas, como um mendigo, entregue à bebida e à loucura. Assediava a todos que passavam pedindo dinheiro sob a ameaça de aplicar-lhes um beijo. Vinha com sua cara barbada, desdentada e com a boca marcada de batom vermelho que usava quando podia, combinando com uma saia e alguma pintura borrada. Os habituados moradores da capital se divertiam levando para ali os desavisados pés-vermelhos ou outras variações de caipiras que vinham do interior tentar a vida e recebiam como batismo um beijo ou um susto de ter uma encomendada Gilda pela frente.

As moedas iam fácil para as mãos daquela Gilda musculosa e impetuosa que dançava com alegria sua vida nas ruas de Curitiba, como se fosse um Zorba, o Grego, personagem do romance de Kazantzakis, personificado magistralmente por Antony Quinn. Essa alegria ganhava corpo no carnaval, o famoso carnaval que sempre se disse que não existe em Curitiba, transformado em mito como o do Vampiro e outros, aos quais se soma Gilda, que já foi motivo de muitos relatos de escritores, reportagens, notícias em jornal e até filme, um documentário dirigido por Yanko Del Pino.

Gilda preferia sair na Banda Polaca e seu sucesso foi crescendo a ponto de ofuscar o brilho das “polacas”, na verdade homens em seu momento de franga permitido pelo carnaval. Gilda cresceu demais e o presidente da improvável mas existente de fato Associação Boca Maldita, Anfrísio Siqueira, conseguiu que ela fosse presa.

Foi assim que o carnaval de 1981 perdeu a graça, ou, noutro sinônimo, o encanto gay, com Gilda na gaiola. Isso causou um grande estardalhaço na imprensa e entre os que respeitavam Gilda e seu direito de ser o que quisesse. Dois anos depois ela morreu, vitimada por cirrose hepática, meningite e broncopneumonia, na miséria, podendo se dizer que tanto o carnaval como os gays curitibanos ficaram ainda mais sérios do que a fama já anunciava.

Para remediar a miséria, os mais habituais doadores de moedas pagaram um féretro decente para Gilda e ela foi enterrada num cemitério curitibano, num curioso local em que ficam lado a lado 18 transsexuais históricos da cidade. Lá estão Martinha Florença, o primeiro transsexual da capital; Leandra; Daniela Cristina, a primeira operada da cidade; Primavera Bolcan; Verusca Faustina e outras, coisa de um tempo em que as bichas eram mais unidas, humanas e faziam vaquinhas, como diz uma delas, aloirada e contemporânea.

O túmulo de Gilda foi tomado por ex-votos e seus bilhetes e objetos e os católicos, horrorizados com o temor de Gilda se tornar uma santa popular, acharam modo de abafar sua aura. Uma escultura, pilastra de concreto, foi colocada na Boca Maldita com uma placa de bronze, dessas que vereador adora. Os ex-votos começaram a cobrir o monumento de bilhetes e logo os organizadores de fofoca acabaram com a festa sumindo com ela. Curitiba desde então veio ficando mais chata e circunspecta e ninguém acredita que um dia aquela rua volte a ser festiva, sem loucos como Gilda.



Ademir Demarchi é santista de Maringá, no Paraná,
onde nasceu em 7 de Abril de 1960.
Além de poeta, cronista e tradutor,
é editor da prestigiada revista BABEL.
Possui diversos livros publicados.
Seus poemas estão reunidos em "Pirão de Sereia"
e suas crônicas em "Siri Na Lata",
ambos publicados pela Realejo Edições.
Suas crônicas, que saem semanalmente
no Diário do Norte do Paraná, de Maringá,
passam a ser publicadas todas as quintas
aqui em Leva Um Casaquinho

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