Thursday, June 2, 2016

MERCEARIAS, PADARIAS, PAÍS POBRE E DESVIOS DE FUNÇÃO (por Marcelo Rayel Correggiari)



Essa nobilíssima Mercearia, a cada dia, menos se orgulha em se estabelecer num lugar onde, daqui a pouco, baixa-se numa farmácia com uma receita emitida pelo carteiro.

As especialidades, ao longo da história ‘muderna’ & contemporânea, desautorizaram a filosofia, por exemplo, no trato de certos assuntos em que o filósofo era o tal: botânica, matemática, oratória, comportamento, sociedade, política.

Fatalmente o(a) inabalável freguês(a) não o encontrará num simpósio de economia ou congresso jurídico. No Greenpeace, então... esqueçam! A desautorização na prática de uma determinada construção de ‘saber novo’ foi o grande legado das especializações: “eu sei, você, não”.

A desatenção quanto à permeabilidade que certas disciplinas exigem produz esse ‘vidão’ do século XXI: bem aporético. ‘Úia...!’. Olhem que beleza: atolados até o último fio-de-cabelo num mar infindável dos mais pútridos excrementos, sem o menor sinal de saber como sair dele.

Já sabem: se algum pornógrafo de ‘opus’ requentada apresentar sua magnífica colaboração, posto que também é um contribuinte, para setores nobres dessa claudicante sociedade, não encontraríamos melhores arroubos para rechaçar tal investida.

O carteiro emitirá a receita médica: nesse caso, o doutor estará devidamente desautorizado para relevante tarefa. Inapelável: a banana comerá o macaco.

E nesse mundo de alvoroço, onde o fratricídio consiste em um segmento desautorizar o outro com o visível propósito não de compor um mundo melhor, mas de eliminar potenciais desafetos, estaríamos, pois, a um passo de trombarmos aos borbotões com irremediáveis desvios-de-função.

O banqueiro anarquista, o engenheiro gestor, o comunista progressista, o pároco iluminista, o pornógrafo esclarecido, a ‘prostíbula’ inibida, o advogado holístico, o político constrangido: qualquer semelhança com a vizinhança da rua onde o(a) pensativo(a) freguês(a) mora pode não ser, assim, tão ‘mera coincidência’.

E, quando o país é pobre, a situação fica cada vez pior ...



Em “Tupiniquim: o Paraíso das ‘Commodities’ ”, há potencialidades, mas inexequíveis em se tratando de um deserto de ‘mindsets’, mentalidades. Talvez não somos atacados por uma pobreza material no que tange às nossas riquezas, mas a completa ausência da utilização apropriada do cérebro nos guia a quadros irreversíveis de profunda penúria.

Isso sem contar que tal cenário é pródigo na natalidade da perfeita falta de bom-senso.

Digo isso porque singulares ocorrências, em meio a tais discrepâncias, podem certamente nos pegar de surpresa.

Numa panificadora de bairro, próxima de meu modestíssimo solar, junto à caixa registradora, um ‘display’ de cartolina dura vende CDs e DVDs. Um susto: não recordava de tal tipo de comercialização em qualquer outra concorrente na área.

País pobre e caminhando a passos largos para a depressão econômica, cada um se defende como pode antes de ir parar nas páginas de um Steinbeck. Beleza! Nada contra... pelo contrário: “(...) eu podia ‘tá’ matando, eu podia ‘tá’ roubando, (...)”.

O que era para ser vendido em loja de conveniência de posto de gasolina ou beira-de-estrada, agora é encontrado até em.... panificadoras.

Ainda há, não se assustem, pães, bolos, salgados e toda sorte de produtos relacionados a um bom café-da-manhã, ou da tarde. Um lanche rápido. Todavia, o que se espera de muito diferente numa panificadora é a comercialização de produtos ‘correlatos’, ‘in natura’, granel. Não seria tão surpreendente a padaria vender, por exemplo, farinha. Mas... CDs e DVDs?!



A indústria fonográfica encontra nas bancas de jornal e padarias seus pontos de venda (ou distribuição). Quem diria...! Um nicho de atividade cujo “diretor artístico”, nos anos 1980, tinha poder de vida e/ou de morte sobre a carreira de qualquer músico-musicista.

Hoje, é isso aí: pires na mão porta adentro de qualquer padaria que tope a ideia. Arrogância?! Pode ser. O fato é que o mercado fonográfico não previu mudanças de paradigmas (o que é mais perigoso nisso tudo!) e lojas que tinham enorme dificuldade no pagamento de seus alugueis.

Soma-se isso à chegada da digitalização dos arquivos de áudio e o estrago estava feito. Tudo transitando pela ‘grande rede’, transmissão de dados, e o CD, num prazo de 10 anos, desaparecera. Atualmente, não serve nem para armazenamento (alô, meu ‘pen-drive’! Aquele abraço!).

O que escapou do mercado fonográfico? Duas coisas. Primeiro, arquivos digitais significam que os métodos de confecção de um álbum poderiam ser feitos em casa. Programas como o antigo Pro-Tools e congêneres sendo vendidos em banca de jornal. ‘Pra’ quê estúdio?!

Segundo, as ‘cabeças coroadas’ do setor levaram um tombo gigantesco com a chegada das lojas online que, no máximo, pagam o aluguel do centro de distribuição. Em contraste com as lojas, pesadas com intermináveis encargos trabalhista, tributos saindo pelo ladrão, além dos próprios custos físicos para manter as portas abertas.

E, assim, a hegemonia dos grandes selos foi mitigada com novos atores mais atentos à qualidade da obra artística em si. Mais música para menos presunção.



O mercado editorial caminha na mesma direção. Autores e autoras já não batem mais continência para editores que notadamente não conhecem ‘do riscado’. Se, por um lado, há o perigo de um ‘junkie-book’ apinhando os espaços e atrapalhando a vida dos leitores (que terão mais dificuldade para achar ‘o que é bom’), por outro, um(a) escritor(a) de qualidade pode colocar na praça um texto que tenha mais a sua cara, sem grandes interferências de gente que pode ser que não seja do ramo.

Livros em bancas de jornal, OK. Em padarias?! A panificadora como ponto-de-venda?! Qual o limite?

A tecnologia desautorizou as grandes fábricas da indústria fonográfica a ditar o que é bom ou não, o que será difundido ou não. Quem viveria ou morreria nesse mercado. Na literatura, estamos bem próximos de ver algo semelhante. Um(a) editor(a) terá de possuir excelente fôlego dissertativo para convencer os demais de sua real relevância, além de quantidades gigantescas de preparação para efetuar tal tarefa.

Mas... numa padaria?! Estanho, isso...

Tudo bem! Já entendemos: de estranhezas também é feita a vida. Acostumar-se com isso ‘é que são elas’. País pobre e com ausência de mentalidade, padaria é CD (‘compact disc’ e centro de distribuição; ponto de venda). Num futuro próximo, não muito distante, o Joaquim da panificadora será a ameaça ao livreiro?

Num lugar como o nosso, tudo pode acontecer.

Que bom que essa Mercearia vende, de tudo, um pouco.



Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 47 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO


No comments:

Post a Comment