ilustração: Osvaldo DaCosta
“O bar é um exercício de solidão.”
(Luis Buñuel)
O cenário é um bar, com música ambiente. José Antônio e Marcelo Moraga já estão acomodados, mas não foram atendidos ainda. O garçom chega.
Garçom — Boa-noite. (Estende os cardápios). Já sabem o que vão pedir ou preferem consultar a nossa carta?
José Antônio — Quero vodca com menta. Bastante gelo.
Marcelo Moraga — Um dry martíni.
Garçom — Pois não...
O garçom faz meia-volta, mas Marcelo o chama de volta.
Marcelo Moraga — Por favor, quero o gelo do meu dry martíni totalmente congelado, vinte graus abaixo de zero. Não quero que o gelo fique soltando água na bebida. O vermute do meu dry martíni é o Noilly-Prat. E adicione meia colherinha de café de Angostura.
Garçom — (com uma expressão duvidosa) — Sim, senhor.
Ele consulta o barman e volta à mesa.
Garçom — Senhor, infelizmente o gelo não está na temperatura adequada. A casa também não trabalha com o Noilly-Prat e nem com o Angostura.
Marcelo Moraga — (dirigindo-se ao garçom, indignado) — Diga-me sinceramente: que espécie de bar é esse?
Garçom — (polido) — É porque antes do senhor nenhum cliente havia pedido o gelo nessa temperatura. (Contemporizando) — Aliás, a temperatura do gelo que o senhor aprecia é primordial para os drinques. A casa vai providenciar isso em breve! E também os demais ingredientes. Sem dúvida.
Marcelo Moraga — (relaxando, mas pomposo) — Espero que a casa não deixe a decadência cultural chegar aos drinques.
Garçom — Perfeitamente, senhor.
Marcelo Moraga — Me traz então um gim-tônica. Dois terços de gim e um de tônica. E agora tanto faz a temperatura do gelo. O gim-tônica não tem a mesma classe do dry martíni.
O garçom balança a cabeça, concordando.
Garçom — Sim, senhor.
As bebidas chegam. Na mesa, impõe-se um contraste luminoso entre o verde da vodca com menta e o gim-tônica. José Antônio e Marcelo Moraga brindam e bebem. Ao olhar aleatoriamente em direção à entrada do bar, o primeiro baixa rápido a cabeça e diz:
José Antônio — Não olha agora. Não olha!... A Balbina está entrando.
Marcelo Moraga — Quem é Bal-bi-na?
José Antônio — (ainda de cabeça baixa, tentando agir como um avestruz) — É essa que acabou de entrar, aquela de quem eu já te falei uma vez. Essa mulher está apaixonada por mim. Só que ela é louca! É louca!
Balbina tem seios rígidos e pontudos; cintura definida; e pernas longas. Veste saia e blusa e sapatos de salto alto. Marcelo não consegue tirar os olhos dela. Balbina se movimenta em direção à mesa dos amigos.
Marcelo Moraga — (em êxtase) — Que mulher! Ela está mesmo apaixonada por você? Não acredito, não acredito!
José Antônio — (ainda de cabeça baixa, preocupado) — Ela já me descobriu? Está vindo para cá?
Marcelo Moraga — Agora é tarde! Como é que você vai querer se esconder atrás de um drinque verde?
Balbina — (falando alto, feliz) — Não acredito! José Antônio! Não acredito! (Agora ele levanta a cabeça.) Você aqui? Eu vinha rezando pra te encontrar. Sabe o que acabei de imaginar antes de entrar no bar? Pensei assim: “Se o José Antônio estiver aqui é porque eu vou casar com ele”.
José Antônio — (resignado) — Balbina, este é o Marcelo Moraga.
Balbina olha para Marcelo Moraga, mas é como se ele não estivesse ali.
Balbina — (dirigindo-se a José Antônio) — Posso sentar?
José Antônio — Estamos tratando de negócios.
Balbina — Nesse caso, com licença! Vou ficar ali no balcão, até você mudar de ideia.
Balbina vai para o balcão do bar, acende um cigarro e diz:
Balbina — José Antônio, que troço verde é esse que você tá bebendo?
José Antônio — (resignado) — É vodca com menta.
Balbina — (dirigindo-se ao barman) — O mesmo pra mim!
Na mesa, José Antônio e Marcelo confabulam.
Marcelo Moraga — Nunca sei o quê dizer diante de uma mulher bonita. E você se dá ao luxo de dispensá-la.
José Antônio — É que esse tipo de mulher me deixa tenso. A Balbina começou a me amar de repente, só porque consegui decifrar um problema de câmbio lá no banco. Depois que resolvi o problema, que nem era tão complicado, ela olhou bem pra mim e disse: “Eu te amo!”.
Marcelo Moraga — Que inveja, que inveja! (Sinceramente desconsolado) — Eu nunca fui amado por uma linda mulher. Nunca!
No balcão do bar, Balbina manda brasa na vodca com menta.
Balbina — (a voz embriagada é meio engraçada, mas sentimental) — Eu vou aí na tua mesa, José Antônio. Não aguento mais a tua indiferença. A tua indiferença está secando os meus fluidos.
Ela vai para a mesa dos amigos e diz para o garçom:
Balbina — Mais uma vodca... Mas agora só com gelo. Essa bebida com menta tem gosto de pasta de dente.
José Antônio — (ríspido) — Balbina, chega! Para de beber!
Balbina — (bêbada sentimental) — Eu bebo quanto quiser! Você não manda em mim! Se você me amasse, se você me quisesse, eu deixava você mandar em mim.
Imparcial, o garçom deposita a vodca na mesa. Balbina bebe rápido.
Balbina — (com voz de bêbada) — Eu te amo, José Antônio!
Em seguida cai da cadeira, talvez desmaiada. José Antônio e Marcelo estão atordoados. Ambos se ajoelham ao lado dela.
José Antônio — (incrédulo) — Não acredito! O que essa louca fez?
Marcelo Moraga — (tirando o blazer e em seguida, no chão, segurando a cabeça de Balbina) — O Zé é um insensível. Ele não sabe te amar. (Em seguida, diz para José Antônio) — Traz um copo d’água, rápido!
José Antônio volta com o copo d´água.
Marcelo Moraga — (examinando atentamente o conteúdo do copo, enquanto a cabeça de Balbina está apoiada entre suas pernas) — Que água é essa?
José Antônio — (impaciente) — Como é que eu vou saber? E que diferença faz? Joga isso logo na cara dela!
Marcelo Moraga — (dispensando a água) — Volta lá e pede um copo com gelo.
José Antônio volta com o copo cheio de gelo.
Marcelo Moraga — Me dá o gelo...
Ele começa a passá-lo no rosto de Balbina. Ela não reage. Marcelo Moraga então esfrega o gelo nos seios dela, por dentro da blusa.
José Antônio — (incrédulo) — Mas o que é isso?
Marcelo Moraga — (sem tirar as mãos dos seios de Balbina) — Isso o quê?
José Antônio — Você está se aproveitando!...
Marcelo pega outra pedra de gelo e passa entre as pernas de Balbina.
José Antônio — (veemente) — Isso é antiético! Você já passou dos limites!
O gerente — Cavalheiros! Este bar consta no Guia Quatro Rodas justamente por cultivar um clima cultural erótico de muito respeito!
Marcelo não dá a mínima para o gerente e muito menos para José Antônio. Passa o gelo entre as pernas de Balbina, enquanto diz:
Marcelo Moraga — Acorda, meu amor!
Com o gelo entre as pernas, Balbina começa a se reanimar:
Balbina — Eu te amo, José Antônio!
O gerente — Levem-na daqui! Por favor!
Agora, os amigos carregam Balbina, segurando-a pelos braços e pelas pernas. Ao ser transportada pelo meio das mesas e dos clientes, ela diz:
Balbina — Eu te amo, José Antônio! (E chora, sentida).
Márcio Calafiori é jornalista.
Nasceu em 1957 e se formou
pela Facos em 1986.
Exerceu quase todos os cargos
em redações de jornais em Santos,
Santo André, Campinas e São Paulo.
Foi redator, repórter, revisor, editor,
secretário de redação,
chefe de reportagem e ombudsman.
Aposentou-se em 2012
como professor da Unisanta,
depois de 29 anos
de dedicação exclusiva
ao Jornalismo Impresso.
Colabora regularmente com
LEVA UM CASAQUINHO.
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