Thursday, October 27, 2016

"LARANJA MECÂNICA", DE STANLEY KUBRICK, COMPLETA 45 ANOS. BOM MOTIVO PARA RELER O ROMANCE DE ANTHONY BURGESS

por Márcio Calafiori


Se você é fã do filme, eu, Márcio Calafiori, recomendo a edição especial de 50 anos de Laranja Mecânica, do Anthony Burgess, publicado pela Aleph em 2012, mas ainda fácil de encontrar nas livrarias. É a obra prima definitiva sobre lavagem cerebral.

Uma das coisas que me levam a pegar um livro é o seu aspecto físico. Algumas vezes faço questão de comprá-lo por causa do formato e outras em função do design, no que este apresenta de criativo e empolgante. O Laranja Mecânica que tenho em mãos é tudo isso.

Olhando a sobrecapa, com a garrafa de moloko, lembrei logo dos trabalhos de Andy Warhol. O autor do projeto gráfico, de inspiração pop, é Pedro Inoue. A edição de arte é sensacional: extremamente bem cuidada, detalhista, com a presença psicodélica do laranja e mais as ilustrações de Angeli, Dave McKean e Oscar Grillo. Além do esmero gráfico, a edição traz páginas originais anotadas e desenhadas, uma entrevista e ensaios inéditos de Burgess.

Nos ensaios, além de explicar o significado da expressão laranja mecânica e a origem da obra, o autor inglês aborda a polêmica insistente que o responsabilizava de incentivar a violência. Burgess ressalta que essa discussão só começou nove anos depois do aparecimento do livro por causa do filme de Stanley Kubrick. Desde 1962 Laranja Mecânica vinha cultivando cada vez mais leitores que ficavam impressionados com a história do pequeno Alex e seus druguis ladrões, drogados e assassinos. Mas até o lançamento do filme, em 1971, Burgess era um escritor que conseguia exercer em paz o seu ofício, segundo ele, inofensivo. Laranja Mecânica não seria nem mesmo o seu livro predileto, era talvez até o de que menos gostasse. Escreveu-o assim como produziu outros mais, em série, preocupado em ganhar dinheiro a fim de deixar a mulher numa situação financeiramente confortável, já que ele, Burgess, fora diagnosticado como portador de um tumor no rassudok e logo, logo estaria morto. Mas o diagnóstico revelou-se falso e o autor só veio a falecer em 1993.

Burgess viu o filme em Nova Iorque, disputando aos empurrões uma fila imensa. O escritor louvou a obra de Kubrick, embora jamais perdesse a oportunidade de ironizá-lo, pois considerava o cineasta tão autor de Laranja Mecânica quanto ele. Neste aspecto, existe algo fundamental que talvez Kubrick não soubesse quando decidiu filmar o livro ou então não se interessou em saber: existe a versão inglesa da obra, com o capítulo final em que Burgess redime Alex, e a versão americana, que cortou este capítulo por considerá-lo uma concessão que não tem nada a ver com a distopia proposta ao longo da obra, uma das mais importantes da literatura do século 20. Kubrick usou a versão americana, reduzida, e o filme e o livro fizeram história.

No aspecto editorial da edição comemorativa de 50 anos me frustrei apenas de que a grande repercussão da obra de James Joyce na de Anthony Burgess tenha passado quase em branco no texto da introdução. Alguém diria que a influência de Joyce está em toda a obra de Burgess, e não apenas em Laranja Mecânica. Ok. Mas a influência mais visceral está no uso dos neologismos, das gírias, da pesquisa intensa da fusão de palavras, na criação da linguagem nadsat, de tudo, enfim, que fez Laranja Mecânica ser o clássico que é. Gostaria de ver isso explicado com menos pressa nesta belíssima edição da Aleph.

Falei antes que Laranja Mecânica teve duas versões, a inglesa e a americana, com finais diferentes. As edições brasileiras, desde sempre, trazem a versão inteira, de acordo com o final que o Burgess enfatizou a respeito de Alex, um garoto de treze anos violento, mas de extremo bom gosto, cultor de Beethoven. E em todas figura o dicionário da linguagem nadsat. O autor era contra a inclusão desse recurso nas edições da obra. O seu argumento para que o glossário seja deixado de lado merece atenção: entender a linguagem nadsat — uma mistura de palavras russas e inglesas — sem recorrer à tradução seria como sofrer a violência ao qual Alex se submete em troca da liberdade. Assim, de acordo com Burgess, Laranja Mecânica funcionaria como uma cartilha sobre o que é a lavagem cerebral.

Aliás, no texto que você acaba de ler utilizei duas expressões do idioma nadsat. Se não percebeu isso, o manipulador Anthony Burgess iria adorar.



ALGUMAS ANOTAÇÕES
SOBRE "LARANJA MECÂNICA"

A obra do Anthony Burgess partiu de um fato real. A mulher dele foi vítima de estupro.

No livro, ele cita Laranja Mecânica, a obra que o escritor está escrevendo.

No filme, o personagem do escritor, um humanista, submete o pequeno Alex a uma nova tortura.

Laranja Mecânica é uma gíria que pode significar porra-louca ou então uma referência ao fato de que Alex passa por uma transformação que reprime a sua natureza humana e, por isso, se torna uma laranja mecânica, no sentido de antinatural. No filme de Kubrick fica evidente que Alex passa uma experiência similar aos que os alemães impingiram aos judeus.

A linguagem do livro é absolutamente criativa. Burgess criou uma gíria, na verdade um vocabulário, para Alex e seus drugues (amigos). Usou o russo e dialetos ciganos e criou palavras. A gíria separa o jovem do mundo adulto. No livro, as garotas de 10 anos falam outro tipo de gíria. Burgess era um linguista, influenciado por James Joyce.

O que Burgess pretende é fazer uma discussão sobre a violência: a violência inconsequente dos jovens, a violência perpetrada pelo Estado; e como os intelectuais usam as artimanhas para fazer oposição, usando o tema da violência como fato político. Portanto, Alex é vítima da violência como controle do Estado e como fato político/ideológico.

Burgess não tem solução para a violência. Ele é um humanista. É contra a violência empregada pelo Estado. Ironiza o fato de que os ex-amigos de Alex são agora policiais e continuam praticando a violência.

Burgess vê Alex como um jovem de 13 anos que só vai tomar consciência das coisas quando se tornar adulto. Alex fica precocemente adulto, aos 19 anos, e segue adiante. O romance de Burgess é otimista desse ponto de vista, mas não tem solução para a violência.

Laranja Mecânica pode ser classificado como romance de formação, ou seja, as experiências por que passam os personagens até atingir a maturidade. Alex termina o livro pensando em casar e arrumar emprego.

No filme, Stanley Kubrick tem outra visão. A crítica ao Estado está ali, mas de modo irônico: o Estado, a política, sempre vai tirar proveito de tudo, promovendo a violência. A proposta de Kubrick é absolutamente estética: torna a música de Beethoven um personagem, e explora a violência com o sentido de chocar, estetiza isso. Um exemplo é a cena de Alex dando pontapés no casal, enquanto canta a música do filme Cantando na Chuva.

Curiosidade #1: o filme foi proibido no Brasil e liberado somente em 1978. Sem trocadilho, usaram umas bolas pretas para tapar o pênis de Malcolm MacDowell na cena do estupro.

Curiosidade #2: o filme foi proibido também na Inglaterra a pedido do próprio Kubrick.

Curiosidade #3: numa das cenas de briga Malcolm MacDowell quebrou duas costelas. O ator quase se afogou de verdade na cena em que os policiais (seus ex-amigos) tentam afogá-lo. Ficou temporiamente cego ao passar pela experiência para deixar de ser perigoso. O cara que aplica colírio na cena da lavagem cerebral é mesmo um oftalmologista contratado pela produção do filme. Kubrick colocou a cobra no filme só porque MacDowell tem pavor de cobra.

Curiosidade #4: Burgess costumava dizer que Kubrick era tão autor de Laranja Mecânica quanto ele, Anthony Burgess.


Publicado na revista digital Capitu, do Duanne Ribeiro, em 5 de janeiro de 2013, republicado no blog Conversas e Distrações, do Marcus Vinicius Batista, em 14 de janeiro de 2013, e readaptado para republicação em LEVA UM CASAQUINHO em 27 de Outubro de 2016).

leia aqui
o primeiro capítulo
da edição da ALEPH
para os 50 anos de
LARANJA MECÂNICA



LARANJA MECÂNICA
(A Clockwork Orange)
de Anthony Burgess
Aleph, 2012
Tradução: Fábio Fernandes
Capa: Pedro Inoue
352 Páginas
R$ 79,00
à venda na Realejo Livros
Av. Marechal Deodoro 2
Gonzaga - Santos SP






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