Friday, August 11, 2017

A TRABALHOSA TAREFA DE SER PAI DE MOÇAS (uma bofetada do passado de Ivan Angelo)



Ser pai de moças dá um certo trabalho. Não físico, que nisso ninguém bate os meninos. Falo de um trabalho de atenção, de ficar ligado. Quando estão muito pequenas, se um pai sai com as meninas sem a mãe, surgem sempre problemas práticos, dos quais o mais dramático é o banheiro. Três alternativas se frustram nesse momento: o pai não pode entrar no toalete feminino, não convém que elas entrem sozinhas, no dos homens não podem entrar. Já para os meninos acompanhados de mães, banheiro não é problema: elas entram com eles. Pequeninos, as outras mulheres não ligam, e eles se comportam, senão as mães torcem-lhes o pepino. O recurso dos pais é muitas vezes pedir a uma bondosa senhora que acompanhe as meninas, que supervisione tudo o que se faz num toalete, supervisão que nem sempre é agradável, seja para a senhora, seja para as meninas. Pior se forem tímidas.

Quando elas estão maiorzinhas, para cima de oito anos, há que pôr um olho nos meninos, durante as festinhas. Não que vá acontecer alguma coisa, mas as mães recomendam, cobram. Crianças somem, sabe-se lá o que estão fazendo, afligem-se as mães. Seja lá o que façam, não pode fazer mal, mas mãe é mãe. Então, para um pai de meninas, festinha de criança não é só beber cerveja com o cunhado e disputar a cotoveladas a bandeja de brigadeiros. É preciso ficar atento, ter uma resposta quando a mãe pergunta: cadê a Fulaninha? Se é menino, deixam pra lá, é até bom que sumam de vez em quando e tentem alguma brincadeira com as Fulaninhas dos outros. Bom para não virar bicha. Mãe é mãe.

Quando crescem mais um pouquinho, doze anos, as mães, sabe-se lá se por ciúmes, começam a grilar os pais com a atenção que eles dão às meninas. Começam a achar excessiva. Na reunião de pais da escola ouviram que a “figura paterna” tem de ficar atenta a essa “sedução inconsciente”. O perigo é as meninas não transferirem para os meninos o encanto que sentem pelo pai maravilhoso, até então único representante do sexo masculino na vida delas. Complicado, não? Concorde ou não, o pai fica atento, o grilo se instala.

Depois vêm os ciúmes dele. As meninas afinal se libertaram do pai sedutor e caíram nos braços talvez daqueles mesmos meninos que a mãe mandou vigiar nas festinhas. Agora ela acha que pode. Mãe é mãe. Agora ele acha que não pode, ainda novas demais. Pai é pai. Ele acaba se acostumando e passa a conviver com a possibilidade de se tornar avô.

O trabalho a mais de ser pai de moças não termina aí, porque chega a hora da inserção delas no mercado profissional. Como se sabe, mulher ganha menos do que homem, tem menos oportunidades, tem mais assédio. Só então vemos como isso é injusto. Fomos nós, homens, que criamos essa distorção, mas o mundo era outro, elas faziam trabalhos “menores”, “auxiliares”, não os mesmos que nós. Agora fazem. Cabe a elas mudar isso e a nós, pais de moças, apoiar. É, dá trabalho.

Mais aqui, menos ali, passei por essas fases. Às vezes, coisas divertidas aconteceram nesse percurso. Como aquela vez no cinema, eu e elas, minhas filhas. Duas lindas mocinhas, sedutoras, perfumadas. Sentaram-se nas duas únicas poltronas vagas, na última fila, luzes já apagadas, trailer rolando. Mais atrás, havia umas cadeiras, numa espécie de nicho, e foi lá que me sentei. As balas ficaram no meu bolso, e tinha de me levantar, dar uma passo para chegar até elas e oferecer-lhes uma bala. Ofereci uma vez, não quiseram. Voltei, chupei uma, começou o filme, e passado um tempinho levantei-me para oferecer-lhes de novo uma bala. Não queriam, insisti: “Aceitem, está uma delícia!” Não quiseram, voltei para o meu lugar. O rapaz que estava ao lado delas disse alguma coisa, uma respondeu, depois cochicharam uma com a outra e caíram na risada. Volta e meia caíam na risada abafada. Riram ainda mais quando de novo lhes ofereci uma bala. Foi a última vez. Aquela falta de modos acabou atrapalhando meu filme. Terminado, luzes acesas, fui cobrar a razão de tanto riso. Esperaram o rapaz afastar-se e de novo rindo contaram:

— Quando você ofereceu bala a segunda vez, o rapaz do nosso lado, todo herói, perguntou se “aquele senhor” estava nos incomodando.


(publicado originalmente em VEJA São Paulo em Outubro de 1998)

Ivan Ângelo nasceu em Barbacena MG
no dia 4 de fevereiro de 1936.
É jornalista, cronista e romancista.
Começou a escrever contos em 1954,
sendo logo premiado num concurso
da prefeitura de Belo Horizonte.
Em 1965 mudou para São Paulo,
onde fez parte da primeira equipe
do lendário Jornal da Tarde.
Seu romance A Festa, de 1963,
conquistou o Prêmio Jabuti de 1976
(ano em que foi republicado).
Ganhou o Jabuti novamente em 1995
com o livro Amor?.
É cronista da Veja São Paulo desde 1999.


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