Um
levantamento de 354 protagonistas e figurantes – praticamente, todos – que
perpassam os romances e peças teatrais do Prêmio Nobel de Literatura de 1998 é
o que o leitor vai encontrar em Dicionário
de Personagens da Obra de José Saramago (Blumenau-SC: Editora da Fundação
Universidade Regional de Blumenau - EdiFurb, 2012), da professora Salma Ferraz,
resultado de uma pesquisa que durou mais de 15 anos e contou com a colaboração
de mais de oito dezenas de seus alunos.
Obra
aberta, sem a pretensão de se tornar definitiva ou completa, o livro, além de
homenagear Saramago, segundo a autora, tem o objetivo de não só catalogar a
imensa galeria de personagens saramaguianos como abrir um debate e até mesmo
aceitar novos verbetes para uma futura segunda edição. Mas, desde já,
constitui, sem dúvida, leitura indispensável aos amantes da boa literatura de
Saramago.
Da
pesquisa, ficaram de fora os contos e crônicas da primeira fase de Saramago,
ainda que o romance Terra do Pecado
(1947), também da época inicial da trajetória do autor, tenha sido igualmente
analisado. Exceção foi aberta para O
Conto da Ilha desconhecida (1997), que faz parte da fase madura do
escritor. Já o romance Claraboia,
embora escrito em 1953, e, portanto, da primeira fase, mas publicado em 2011
pela editora Companhia das Letras, de São Paulo, não foi incluído na pesquisa
por se tratar de publicação post mortem.
Como
esclarece na apresentação que escreveu para sua própria obra, a autora incluiu
ainda determinados lugares que aparecem em alguns dos romances, já que
“transcendem o papel de mero local em que os fatos acontecem e chegam a
comportar-se como personagens importantes para o desenvolvimento do enredo”. A
título de exemplo, pode-se citar o “Centro” (shopping) de A Caverna
(2000), a “Conservatória Geral” e “Cemitério Geral” de Todos os Nomes (1997), o “quarto da morte” de As Intermitências da Morte (2005) e o “deserto” de Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991). Personificações como “morte” e
“gadanha” de As Intermitências da Morte
e instituições como “máphia” e “governo” do mesmo romance também ganharam verbetes.
Até
mesmo personagens que fogem à condição humana foram contemplados, como os cães
“Achado”, “Ardent”, “Tomarctus” e “Cão das Lágrimas”, que na obra de Saramago
tantas vezes apresentam sentimentos e reações que nem sempre são encontrados
com facilidade em homens e mulheres. Sem contar o “Elefante”, que seria a
personagem principal do conto A Viagem do
Elefante (2008).
II
Uma
das personagens mais fascinantes dessa extensa galeria, na verdade, não saiu da
cabeça de Saramago, mas do poeta Fernando Pessoa (1888-1935). Trata-se de
Ricardo Reis, protagonista de O Ano da
Morte de Ricardo Reis (1984), heterônimo pessoano, cuja “morte” foi deixada
em aberto por seu idealizador. No romance de Saramago, porém, Reis tem 48 anos
de idade, é solteiro, natural do Porto, graduado em medicina, vive no Rio de
Janeiro auto-exilado e recebe de seu segundo criador, como diz Salma, “uma
segunda vida fictícia, uma vida em trânsito, uma vida em suspenso”. Ou seja, o
romancista recria um Ricardo Reis “que nunca existiu”, que acaba por se tornar,
isso sim, um heterônimo saramaguiano.
“O
romancista brinca com essa personagem, pois através dela transgride os limites
entre realidade e ficção”, diz a dicionarista. E acrescenta: “Saramago faz com
que Ricardo Reis perca características heteronímicas básicas, sendo esse o
motivo pelo qual Pessoa aparece na obra para cobrá-lo. Isso o perturba, pois
seu heterônimo não se envolvia com nada, vivia uma ataraxia. Reis se mantém
contemplativo até a última página do livro e como um morto-vivo, ou vivo-morto,
não consegue se libertar do seu criador”. Para quem não sabe, ataraxia quer
dizer apatia ou ausência de paixão ou ainda ausência de inquietude.
Outra
personagem fascinante – e memorável – da obra saramaguiana é Raimundo Benvindo
Silva, protagonista de História do Cerco
de Lisboa (1989), revisor de textos de uma editora, homem sóbrio e tímido, cinquentão,
de vida sedentária, solteiro e distante de seus parentes, que, um dia, acha de
transgredir as normas de seu ofício, ao colocar um não que adultera uma obra séria que trata da tomada de Lisboa no
ano de 1147, na qual os portugueses teriam contado com a ajuda dos cruzados
para expulsar os mouros. O livro é impresso com o erro e, quando descoberta a
fraude, a editora é obrigada a anexar uma errata a cada exemplar. Com isso, o
olho da rua começa a piscar para o pacato e sério revisor, responsável pelo
mal-estar criado entre os donos da editora e o autor da obra.
O
episódio serve para Raimundo Silva aproximar-se de Maria Sara, sua nova
supervisora na editora, também objeto de verbete nesta obra. A partir daí, sua
vida começa a ganhar novas cores, como diz Salma Ferraz: “Ter colocado este não no texto que revisava foi o feito
mais importante de sua vida, pois a partir desse momento delineiam-se dois
fatos importantes que mudarão completamente sua vida: passa a reescrever, agora
como autor, a nova História do Cerco de
Lisboa, e passa a viver um cerco
amoroso, envolvendo-se com Maria Sara”.
III
Obviamente,
os verbetes repetem, em boa parte, o que o autor deixou em sua extensa obra,
mas há um que se sobressai não só por sua extensão (de seis páginas) como pela
erudição da dicionarista e o seu profundo conhecimento de Teologia, o que pode
ser comprovado em seu robusto currículo. É quando trata da personagem Jesus, de
O Evangelho Segundo Jesus Cristo,
homem, porque filho de José, e divino, por ser também filho de Deus.
Salma
Ferraz recorda que, “na concepção de Jesus, o divino fecunda a carne humana,
como na antiga Grécia, onde os deuses desciam do Olimpo para se relacionar com
os humanos, fazendo nascer os heróis, estes semideuses que nada mais eram que
humanos virtuosos sob determinados aspectos”.
Para
a dicionarista, Saramago, que sempre se disse materialista e ateu, escreveu um
“evangelho profano, espécie de desevangelho”, procurando mostrar Jesus Cristo
como um homem comum, que carregaria a culpa herdada do pai José que, para que
ele vivesse, teria deixado que “outras 25 crianças inocentes fossem
assassinadas”. E que se revolta contra Deus que o teria escolhido como o seu cordeiro. Ou que não se daria bem com a
mãe, Maria, nem com os seus irmãos, que o teriam tomado por louco por afirmar
que vira Deus. Ou ainda que teria tido um caso passional com Maria de Magdala.
Obviamente,
tudo isto é questionável. Tanto que, para a dicionarista, o romancista criou um
Jesus que reflete as suas próprias dúvidas. Mas, seja como for, não se pode
deixar de reconhecer que, para escrever o seu
Evangelho, Saramago teve de se aprofundar como poucos teólogos no conhecimento
das Escrituras. Até mesmo para contestá-las ou interpretá-las ao seu modo.
IV
Salma
Ferraz é graduada em Letras pelas Faculdades Integradas Hebraico Brasileira
Renascença de Letras de São Paulo (1987), com mestrado em 1995 e doutorado em 2002
pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus de
Assis. Concluiu o pós-doutoramento em Teologia e Literatura em 2008 pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Foi bolsista da Fundación Carolina
na Universidad Autónoma de Madrid (2009). Atualmente, é professora associada de
Literatura Portuguesa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e atua
na pós- graduação, orientando projetos de pesquisa na área de Teopoética,
estudos comparados entre Teologia e Literatura.
Tem
experiência na área de Teologia, com ênfase no diálogo com a literatura,
atuando principalmente nos seguintes temas: José Saramago, Teologia, Bíblia e
Literatura, Madalena, Judas, o demoníaco na Literatura, o vampiro na Literatura,
contos e criação literária. Dirige o Núcleo de Estudos Comparados entre
Teologia e Literatura (Nutel), sediado na UFSC, em Florianópolis-SC. É
graduanda de Teologia na Faculdade de Teologia de Santa Catarina. Realizou pós-doutoramento
na UFMG em 2013. Além de ensaísta, é contista com diversos prêmios recebidos e
livros publicados.
Publicou
15 livros de crítica literária, entre os quais: Sois Deuses (Edufgd, 2012), As
Malasartes de Lúcifer (Eduel, 2012), O
Pólen do Divino (EdiFurb, 2011), Maria
Madalena: a Mulher que Amou o Amor (Eduem, 2011), Deuses em Poética (João Pessoa, UFPB, 2009), No Princípio era Deus e Ele se fez Poesia (Rio Branco: Edufac,
2007) e As faces de Deus na Obra de um Ateu:
José Saramago (Juiz de Fora, Eufjf, 2004), entre outros. Na área de ficção,
publicou Em Nome do Homem (Rio de
Janeiro, Sette Letras, 1999); O Ateu Ambulante
(Blumenau, Furb, 2001), A Ceia dos Mortos
(Florianópolis, edição de autor, 2007), Nem
Sempre Amar é Tudo (EdiFurb, 2012). É autora ainda de Dicionário Machista: três mil anos de frases cretinas contra as
mulheres (São Paulo, Jardim dos Livros, 2013).
Dicionário de Personagens da Obra de José Saramago
Salma Ferraz
2017 EdiFurb Blumenau SC
360 páginas
R$ 40,00
www.furb.br/editora
editorsa@furb.br
editorsa@furb.br
Adelto Gonçalves é jornalista,
mestre em Língua Espanhola
e Literaturas Espanhola e Hispano-americana
e doutor em Literatura Portuguesa
pela Universidade de São Paulo (USP),
é autor de Os Vira-latas da Madrugada
(Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981;
Taubaté, Letra Selvagem, 2015),
Gonzaga, um Poeta do Iluminismo
(Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999),
Barcelona Brasileira
(Lisboa, Nova Arrancada, 1999;
São Paulo, Publisher Brasil, 2002),
Bocage – o Perfil Perdido
(Lisboa, Caminho, 2003),
Tomás Antônio Gonzaga
(Academia Brasileira de Letras/
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012),
e Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial
(Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015),
entre outros.
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