Ao acordar, a estranheza começou quando ele passou a mão no rosto. A barba crescera muito rápido, assim como os cabelos. Olhou para o peito, tateou as pernas. A depilação da semana passada, com a nova técnica africana do momento, deveria ser charlatanismo. O sono transformou o deserto em matagal.
Ele se levantou, ainda no escuro, e caminhou até o banheiro. Acendeu a luz, encheu a privada. Os pelos também se multiplicaram. Sorrindo, pensou que, ao contrário do peito e das pernas, mais era sinal de masculinidade. O sorriso foi digerido instantaneamente quando se virou para o espelho. Não enxergava as bochechas. O queixo virara um rascunho. Ele virara um macaco.
Na cozinha, nenhum susto. Mãe e pai sacolejavam da bancada para a mesa, da mesa para o armário. Saltavam com pressa, descascavam bananas. Enquanto o pai as picava e batia com leite no liquidificador, a mãe misturava a outra parte com aveia, produzindo aquela maçaroca calórica idolatrada pelo filho único.
O garoto, na faixa dos 18 anos, não entendia as mudanças. Recorreu ao clichê do sonho. E nada. Lembrou-se da campanha publicitária da escola de inglês, na qual os pais de um rapaz igual a ele se tornaram gringos. Procurou por câmeras. Pegadinha? Nada, o sotaque interiorano da mãe continuava, e em português. Apenas uma ligeira alteração no tom, talvez por ser símia. Era muito cedo para estar chapado. No meio da semana, não cogitava ressaca.
Sem convicção da novidade, ele se despediu dos pais e foi para a rua. Chegaria em cima da hora no emprego e lá pisaria em ovos para ser invisível aos chefes. Sentia-se perseguido por suas posições políticas, boa parte construídas pelas leituras obrigatórias – e hoje livres – em seis meses de faculdade.
Ele batia no peito e sorria de canto de boca quando conseguia irritar colegas ou superiores. Enxergava neles micos amestrados, com correntes coloridas em seus pescoços e os desenhava mentalmente sendo puxados ora por piratas, ora por velhinhos com realejos. Na falta de um periquito, o mico tira a promessa de sorte grande.
O ônibus encostou na calçada na hora de sempre. Lotado a ponto de deixar visível apenas o último degrau. Pulo nele e se espremeu na porta, o que sufocava as dores que a mochila provocava nas costas.
Colocou os óculos escuros sobre a cabeça e percorreu com os olhos aquelas amontoadas como gado rumo ao abate. Hoje não, bois e vacas eram chimpanzés e orangotangos. Os chimpanzés estavam pendurados nos canos gélidos de metal, rostos multiplicados por tédio e cansaço. Pipocavam, na rotina, de uma jaula para outra, da casa para o trabalho, inseguros com a violência de primatas mais fortes, temerosos de perder a vaga nos galhos balançantes das árvores.
Os orangotangos exalavam o tempo de cativeiro. Sentados em bancos inapropriados para qualquer espécie, grudavam as faces no vidro, catatônicos diante de uma paisagem repetitiva, resignados por – dali a pouco tempo – ter que macaquear velhos números para os visitantes de sempre.
Os orangotangos do corredor chacoalhavam sem motivo, que antecipava o piloto automático de várias horas de caminhada sem sair do lugar até o final do expediente. O balanço seria retomado na viagem de volta, que lembrava a peregrinação de ancestrais, acorrentados e vendidos por gorilas negociantes a qualquer preço, menos o da fruta preferida.
Gorila também era seu chefe direto. Respeito pela força, admiração pelo temor, educação pela violência poderiam ser lemas gravados em plaquinha ao lado das imagens dos fundadores, micos-leões-dourados quase extintos.
Na linguagem da selva, os dourados representavam a delicadeza de tempos poéticos. Hoje, obsoletas lembranças substituídas pela truculência, produtividade e velocidade. Os livros assim disseram, regurgitava o jovem macaco.
Os devaneios revolucionários apagavam, a cada palavra, a surpresa da metamorfose. Ou ressuscitariam uma nova criação? A chama reduzida a cinzas indicava um novo capítulo darwinista? Pensou em Franz Kafka, mas não se sentiu moralmente um inseto. Percebia-se um igual, item de cardápio padronizado em praça de alimentação.
Ser um igual poderia lhe conceder benefícios. Sem discriminação no trabalho, sem olhares tortos de professores e colegas mimados à banana-ouro. A uniformidade era salvo-conduto para pensar o que quisesse e defender, de vez em quando, suas rebeliões. Dependia só da embalagem.
Quando chegou na empresa, a cabeça avoada quase o fez perder o elevador. Travou a porta com o braço e, esbaforido, ocupou um canto da caixa. Olhos para os lados e nunca se sentiu tão acolhido, tão parecido com um macaco.
Desceu no 16º andar, virou à direita, balançou a cabeça para a recepcionista – para ele, sempre no cio – e foi para a máquina de ponto. Não notou que era um novo equipamento, adaptado para coletar a digital de seu polegar limitado.
Cruzou o corredor cercado de baias, onde fêmeas e machos davam a impressão para um novato que dialogavam entre si. Ele não se encaixava, era um veterano de dois meses. Fazia isso oito horas por dia. Atendia espécimes reclamões, bichos que não sabiam apertar os botões certos de brinquedinhos novos financiados em 12 parcelas.
Ele se sentou satisfeito com a nova flexibilidade do corpo. Ligou o computador enquanto conectava o celular à Internet. A primeira imagem era de seu ídolo, que segurava algo nas mãos ao lado do filho. O garoto-macaco via mudanças nas feições do jogador de futebol. Não conhecia detectar a diferença da imagem.
Ele compreendeu o que o ídolo carregava ao ler o título da mensagem: “somos todos macacos”. Desconfiou quando traduziu o objeto. Por que uma banana? Por que seriam todos macacos se ninguém se identificava assim, mas como chimpanzés, orangotangos, micos e gorilas?
O rapaz respirou um pouco e concluiu: só poderia ser brincadeira. Mas o que ele queria com isso?, pensou. Talvez me vender alguma coisa. O garoto focou os olhos no computador, contou a lista de clientes a atender e empurrar novos pacotes de assinatura. Ao primeiro clique do mouse, telefonou para o primeiro chato do dia.
Quando o cliente atendeu, ele empacou. Qual seria a sua espécie, macaco?
(publicado originalmente em Conversas e Distrações em 3 de Maio de 2014)
Marcus Vinícius Batista
é o cronista santista número um, ponto.
É autor de "Quando Os Mudos Conversam"
Realejo Livros)
coletânea de crônicas escritas
entre 2007 e 2015
e mantém uma coluna semanal
no Boqueirão News
que é aguardada com avidez
por sua legião de leitores.
Atendendo a um pedido
de LEVA UM CASAQUINHO,
ele se dispôs a resgatar
algumas de suas crônicas favoritas
escritas nos últimos anos
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