Wednesday, August 16, 2017

UM PERSONAGEM (uma crônica de Ademir Demarchi)



Quem é você?, pergunta Sheherazade. Meu primeiro ímpeto de resposta: não sei. Aceitando o jogo que a pergunta sugere, poderia dizer que um ser precário, tal como a própria definição do ser é precária: alguém em trânsito, em processo, em movimento, que escapa à definição por não caber em nenhuma que fosse apropriada como uma roupa.

Além de alguém que respira, diria que um obsessivo por escutar a própria respiração e ao mesmo tempo obcecado por sair dessa claustrofobia que é o eu e ouvir as respirações dos outros. Alguém que escolheu a poesia por associação com a arte, a filosofia, a vida, que tem uma necessidade vital de desviar o olhar para algo estático quando todos estão seduzidos pelo movimento, e para o que se move quando todos estão apalermados e estáticos.

Toda biografia é uma construção, no sentido de que é fabricada pela seleção de eventos ou por sua ocultação, assim como varia de acordo com o ponto de vista de quem olha. A resposta a essa questão seria, assim, falaciosa, porque teríamos sempre um personagem, mesmo que alguns dados sejam reais: nasci em Maringá, no norte do Paraná, onde passa o enigmático Trópico de Capricórnio, à zero hora de 7 de abril de 1960, já na indecibilidade de estar no meio de um dia e outro, por isso com uma certeza noturna e outra diurna, amo tanto a luz quanto a penumbra. Numa síntese, se é que seja possível, alguém que ama a todos e a liberdade.

Por que você escreve? Para fabular a mim mesmo, para fazer a crítica ao tempo em que vivo, para estabelecer diálogos consistentes com meus contemporâneos, para expressar admiração pelos que escreveram antes e que dialogam comigo a cada palavra, para deixar um testemunho deste tempo aos que virão, para multiplicar os sentidos da existência, para seduzir, para fazer perguntas que não se faz, para obter respostas implausíveis, por prazer...

Para que serve a poesia? Do ponto de vista de um escritor, na medida em que o obscurantismo econômico que governa as vidas de todos como mercadorias prevalece, a poesia é fundamental, é uma fonte de luz para pensar, para encontrar de forma radical o verdadeiro rosto humano. É onde há pensamento, sensações, experimentações no limite da linguagem, sem preocupação com valor. Mas se pensarmos uma resposta sob o ponto de vista do mundo que deveria recebê-la, parece que a poesia não assume importância alguma, pois poucos a leem, garantem a sua existência. Do ponto de vista da poesia, ela não assume importância alguma, uma vez que sua natureza de estar no limite da linguagem é recusar todo valor, buscar os limites, escapar a todo sentido que tente institucionalizá-la esvaziando sua criticidade e se cabe a ela algum valor, seria o de uma negatividade subversiva, em extensão com a vida pulsante.

[publicado originalmente em 27/11/2008]




Ademir Demarchi é santista de Maringá, no Paraná,
onde nasceu em 7 de Abril de 1960.
Além de poeta, cronista e tradutor,
é editor da prestigiada revista BABEL.
Possui diversos livros publicados.
Seus poemas estão reunidos em "Pirão de Sereia"
e suas crônicas em "Siri Na Lata",
ambos publicados pela Realejo Livros e Edições.
(basta clicar nos nomes para ser enviado
ao website da editora)


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