Cubatão,
antes de virar o “vale da morte” que, além de crianças sem cérebro, aleijões
anencefálicos ou aposentados com seus pulmões corroídos pelo câncer de tanto
cheirar ares poluídos, já havia dado escritores do quilate de Afonso Schmidt
(1890-1964). Mais recentemente, produziu poetas como Marcelo Ariel e agora tem
o seu mais representativo romancista: o professor Manuel Herzog (1964), que
profissionalmente atuou em seu parque industrial.
O
primeiro romance de Herzog, “Os Bichos” (Santos, Editora Realejo, 2012), título
que evoca “Bichos” (1940), de Miguel Torga (1907-1995), clássico da literatura
portuguesa, já fazia uma alegoria do cenário político de Cubatão, enfocando a
atuação de politiqueiros profissionais que carregam atrás de si uma legião de
deserdados da sorte dispostos a defender o seu candidato em troca de alguns
caraminguás ou de uma “boquinha” no serviço público. Nesse romance, o escritor
compara os homens a animais, com uma visão bem mais favorável aos desta
espécie.
Agora,
com “CBA – Companhia Brasileira de Alquimia” (São Paulo, Editora Patuá, 2013),
que obteve o Prêmio Facult de 2012 da Secretaria de Cultura da Prefeitura
Municipal de Santos e foi semifinalista do Prêmio Portugal Telecom 2014,
Cubatão se assume outra vez como cenário literário, mas, desta feita, como sede
de uma indústria de química pesada que, nascida na emblemática data de 31 de
março de 1964, está focada na produção da pedra filosofal, que seria um insumo
básico destinado à exportação. Obviamente, tudo isto deve ser lido com os olhos
da ironia.
Mas
difícil é deixar de associar que a inspiração do autor não tenha vindo de uma
empresa siderúrgica que fez nome à época do regime militar (1964-1985) ou de
uma indústria multinacional que sempre fez no Brasil o que não lhe era possível
no Primeiro Mundo, como descartar lixo químico em terrenos baldios que, mais
tarde, seriam ocupados por novas legiões de deserdados.
Aliás,
deserdados nunca faltaram em Cubatão e seus arredores. Primeiro, foram os
trabalhadores que, nas décadas de 1940 e 1950, participaram da construção da
Via Anchieta. Depois, os ex-operários que construíram a Rodovia nos Imigrantes,
na década de 1970, e ocuparam os chamados bairros-cotas nas encostas da Serra
do Mar ou as margens da nova estrada. Talvez os escravos que levantaram as
pirâmides do Egito tenham tido um futuro de mais bem-aventuranças por tanto
suor derramado...
É
verdade que tudo foi feito em nome de um desenvolvimento a qualquer preço, como
apregoava a propaganda fascista da época a respeito do Brasil Grande, em que se
dizia que era preciso primeiro fazer o bolo crescer para, então, distribuí-lo,
quando todos teriam um futuro promissor, como observa o poeta e escritor Ademir
Demarchi no prefácio que escreveu para este livro. É certo que o bolo
propagandeado pela utopia militarista cresceu, mas até hoje não foi dividido
entre a população, que continua a morar em favelas nascidas à beira de
rodovias, como o Rodoanel, ainda em construção, e que jocosamente são mais
conhecidas como “o Brasil que vai pra frente”.
Não
imagine, porém, o afoito leitor que irá encontrar um romance com tinturas
revolucionárias, à la Jorge Amado (1912-2001), em que os miseráveis são
idealizados à espera de um cavaleiro da esperança que os venha redimir. Aqui,
os pobres são também humanos, retratados por um pseudo-autor chamado de Poeta,
que sabe bem que nada de grandioso se pode esperar da espécie humana, como já
dizia o russo Fiodor Dostoievski (1821-1881).
Resignado
com sua própria condição de proletário, o Poeta trabalha em “uma fábrica onde
ninguém é companheiro de ninguém e um quer mais é fuder o outro”. Lá todos
sabem que o mais esperto deles pôde chegar ao principal posto do governo da
Nação, “comandando uma legião de Ph.Ds que sabiam menos que ele, governante
maior, provando que escola boa é a da vida”.
Operário
com veleidades de escritor, o personagem principal, espécie de alter ego do
autor, procura reproduzir o idioma português arrevesado e vulgar que se fala
nas fábricas da região Sul do País, mas não deixa de mostrar que é versado não
só em clássicos nacionais, como Machado de Assis (1839-1908), como ainda em
autores icônicos das últimas gerações, como o português Fernando Pessoa
(1888-1935) e o alemão-norte-americano Charles Bukowski (1920-1994).
Cínico
com sua própria condição de proletário (“que ganha sete pau”), o
personagem-narrador não disfarça que se aproveita do horário de trabalho para
bate-papos intermináveis pela Internet ou para ouvir música brega ou, até
mesmo, escrever este romance pós-moderno que surpreende por sua linguagem
desabrida e desbocada, ainda que seja pretensamente a de um operário
intelectualizado.
Eis
um exemplo: “Eu nunca fui nenhum ráquer. Pra falar a verdade, era bem limitado
com essa coisa de informática. Mas o motor do mundo leva o homem a descobrir
novas fronteiras. Nas madrugadas da fábrica, quando no turno de zero hora e a
salvo de qualquer problema técnico que impeça as máquinas de fazerem o trabalho
do homem, a solidão torna inevitáveis alguns artifícios: jogo de palitinho,
livro, telefone, computador, punheta. A existência é insuportável, há que se
matar o tempo. É o que me dizia o velho Chôpen, meu camarada. Schopenhauer,
como os não-íntimos o conhecem. Matando o imortal tempo, no computador, aprendi
a me virar nas salas de bate-papo. Adicionei amigas, fiquei amigo de mulheres
que nunca vi, fiquei amigo de mulheres que só fui ver depois de ficar amigo.
Admirável mundo novo, já dizia o Aldinho, meu bro. O Hu xley, você deve
conhecer. Não? Talvez no próximo ciclo da tua pós eles falem dele”.
Outro
exemplo do texto dinâmico e descompromissado de Herzog: “Não vejo a hora de me
aposentar. Quem trabalha de noite é buceta.” – esse era o velho Agenor, 59
anos, aos sessenta ia se aposentar compulsoriamente, política da fábrica. Um
velho escroto, se deixassem ficava até morrer lá dentro, agarrado numa válvula,
de onde teria que ser desgrudado a alicate, os dedos crispados do volante”.
Ou
ainda: “(...) Chegou pegando pesado. Era o estilo dele. Marcos Carrascoza,
diretor-presidente da companhia. O famoso pica-grossa. No bolso, uma caneta
momblam tinteiro de grosso calibre, objeto que fazia jus ao título do dono. Na
cabeça da caneta, uma estrela branca ratificava seu caráter fálico, dava a
impressão de um início de gozo, uma babinha de porra saindo. Nem sempre ele
estava aqui embaixo, passava mais tempo em São Paulo, onde se reportava aos
caras com a pica mais grossa que a dele: os acionistas. Devia levar suas
enrabadas também, razão pela qual eu contemporizava a sua maneira escrota de
ser – as picas que o cu dele suportava eram mais rombudas que as que fustigavam
nosso cu de peão. Mas, foi o que ele escolheu – quem não tem cu não contrata
pica”.
Nascido
em Santos, mas criado em Cubatão, Manuel Herzog, formado em Direito pela
Universidade Católica de Santos (UniSantos), estreou com o livro de poemas “Brincadeira
Surrealista” (1987). É autor também de “Dec(ad)ência” (romance, Patuá, 2016), “Sonetos
d’amor em branco e preto” (poesia, 2016, Prêmio ProAC 2015), “O evangelista”
(romance, Patuá, 2015) e “A comédia de Alissia Bloom” (poesia, Patuá, 2014),
que ganhou o terceiro lugar do Prêmio Jabuti de Poesia.
Foi
finalista do Prêmio Sesc 2000 com o romance “Amazônia”. Coordena oficinas
literárias em Santos, na Estação da Cidadania, pelo projeto Ponto de Cultura da
Prefeitura local. Escreve semanalmente uma crônica literária na coluna Cais das
Letras no site Cinezen
CBA
– COMPANHIA BRASILEIRA DE ALQUIMIA
Autor:
Manoel Herzog
(com
prefácio de Ademir Demarchi)
Editora:
Patuá (São Paulo SP)
Apoio:
Secretaria de Cultura da Prefeitura Municipal de Santos - Programa de Apoio
Cultural 2012
424
páginas
Adquira
AQUI
Adelto Gonçalves é jornalista,
mestre em Língua Espanhola
e Literaturas Espanhola e Hispano-americana
e doutor em Literatura Portuguesa
pela Universidade de São Paulo (USP),
é autor de Os Vira-latas da Madrugada
(Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981;
Taubaté, Letra Selvagem, 2015),
Gonzaga, um Poeta do Iluminismo
(Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999),
Barcelona Brasileira
(Lisboa, Nova Arrancada, 1999;
São Paulo, Publisher Brasil, 2002),
Bocage – o Perfil Perdido
(Lisboa, Caminho, 2003),
Tomás Antônio Gonzaga
(Academia Brasileira de Letras/
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012),
e Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial
(Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015),
entre outros.
E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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