Não tenho por
costume escrever essa coluna em ‘primeira pessoa’. Tento, dentro da medida do
possível, variar temas, tipos de texto, tecidos verbais, sempre de olho na
reflexão e, principalmente, no bom humor (o que, convenhamos, nesse ‘mundão-de-meu-Deus’,
é algo razoavelmente difícil de conseguir.
Entretanto, por
conta ocorrências testemunhada nos últimos finais de semana, resolvi correr o
risco: o primeiro, de escrever em primeira pessoa, não em um ‘tom
confessional’, mas como alguém que já viu e sofreu bem de perto o resultado de
tal mazela. Segundo, das costumeiras ‘pedradas’ e ‘apedrejamentos’ vindos, em
geral, de pessoas que não entendem o “grito de alerta”, o “serviço de utilidade
pública” que este texto, eventualmente, possa conter.
De qualquer
forma, é respirar fundo e ter coragem.
Quem já assistiu
ao documentário da Netflix “What Happened, Miss Simone?!”, sobre a vida e a
trajetória destruidora da grande cantora Nina Simone (Tryon, Carolina do Norte,
EUA, 21 de fevereiro de 1933 – Carry-le-Rouet, Provence-Alpes-Côte d’Azur,
França, 21 de abril de 2003), nem precisa ir ao final deste texto: já sabe de
antemão o que um quadro psiquiátrico de depressão com manifestação bipolar do
“tipo 1” é capaz de fazer.
Se vocês acham
que há algum exagero, assistam ao filme. E vejam, com os próprios olhos, o
resultado da doença da mãe na vida de sua única filha, Lisa Simone Kelly.
Ainda é
impreciso se saber qual a origem de uma bipolaridade do “tipo 1”. Alguns
especialistas costumam associá-la a um “evento traumático”, um “evento 0”, mas
o estudo de “caso-a-caso” costuma provar tal teoria como um tanto improdutiva.
Há pacientes que já nascem sem a bioquímica cerebral necessária para se
“processar sentimentos”, base essencial e inequívoca para o sucesso pessoal nos
campos social e amoroso. Nesses casos, a abordagem medicamentosa é indicada,
mas difícil de ser acertada, logo “de primeira”, pelo(a) psiquiatra responsável:
leva-se um bom tempo para a dosagem e posologia adequadas (varia de pessoa a
pessoa).
Há também uma
fortíssima hipótese de que um quadro depressivo se torna um transtorno
psiquiátrico quando o(a) paciente teve por hábito, ao longo da vida, permitir
que qualquer convívio tóxico ‘norteasse’, em parte ou no todo, sua
personalidade. Qualquer ‘convívio tóxico’ que atente ou quebre as resistências
que todo ser humano saudável possui para a manutenção da (própria) dignidade é
porta aberta para que um quadro depressivo se instale e, o que é pior, se
fossilize.
Não confundamos
os quadros psiquiátricos de depressão de manifestação bipolar do “tipo 1” e do
“tipo 2” com o “borderline” (esse segundo que vitimou a cantora inglesa Amy
Jade Winehouse (Chase Farm Hospital, Enfield Town, Reino Unido, 14 de setembro
de 1983 – Candem Town, Londres, Reino Unido, 23 de julho de 2011). Em geral,
bipolares não apresentam, por exemplo, automutilação (o que não é uma regra
fixa no campo da psiquiatria). Contudo, como os demais sintomas são
semelhantes, a confusão, às vezes, acontece.
A mecânica da
bipolaridade do “tipo 1” é bem simples: um ponto de baixa (com muita tristeza,
choro, fragilidade), cujo nome dado é o de “depressão”, e um ponto de alta
(onde a pessoa se sente “a tal”, “um(a) deus(a)”, “poderoso(a)”, cujo nome
técnico é o de “mania” (popularmente chamado de “euforia”).
A bipolaridade
do “tipo 1” possui, como o próprio nome diz, extremos “depressão-mania” com
variabilidade entre um e outro em fração de segundos. Um bipolar do “tipo 1”,
ao pressentir “a baixa” (depressão), corre a se ocupar de conseguir qualquer
coisa que o(a) arrebate para “a alta” (mania).
Nem é preciso
dizer que “a busca” para “a alta” (mania) é garantia irrefutável de escolhas
nefastas para consequências praticamente irreversíveis.
Ou seja, a vida
de um(a) bipolar do “tipo 1” é praticamente um amontoado de destroços retorcidos
cuja a resultante disso é um devastador quadro de destruição para quem
porventura estiver por perto.
Filhos(as),
cônjuge(s), pais, mães, amigos(as), namorados(as), paqueras,
colegas-de-trabalho: o nível de trauma que um(a) bipolar do “tipo 1” causa é
brutalmente gigantesco.
Destrói anos de
vida: do(a) próprio(a) bipolar e daqueles que, por algum motivo, gostariam de
tê-lo(a) em suas vidas.
Isso porque
um(a) bipolar do “tipo 1” não está “anulado(a)” para a vida. Até as demais
pessoas perceberem os graves problemas emocionais que o(a) paciente possui, há
grandes envolvimentos afetivos por parte dessas pessoas. O afastamento, nesse
caso, é péssimo para ambos os lados, mas a única saída para ‘os(as)
não-pacientes’ prosseguirem a vida.
Das várias
características de um(a) bipolar do “tipo 1” está a baixa capacidade cognitiva
do(a) paciente. Um(a) bipolar do “tipo 1” é um(a) eterno(a) “Should I Stay or
Should I Go”: uma hora vai para a festa, mas, de repente, não vai mais. Aí,
volta a ir a tal da festa, ou troca por uma diferente em questão de minutos.
Quando chega no lugar, sente-se, do nada, deslocado(a), com uma sensação
contida na boa e velha pergunta: “Mas que diabos estou fazendo aqui? Nem dessa
gente eu gosto! Nem ‘tô’ na ‘vibe’...”.
Costuma ir à
festa, mesmo sem vontade, para garantir qualquer estímulo que possa jogá-lo(a)
de volta para a “mania”. Afinal, na festa, é possível encontrar possibilidades
essenciais para a satisfação dessas “manias”.
Das várias, uma
que a maioria das pessoas que (con)viveram com bipolares do “tipo 1” mais se
queixa: sexo em excesso. O orgasmo como “arrebatamento”, como uma “forte droga”
para não ficar por longos períodos “na baixa” (depressão). O resultado disso,
para quem está do ‘lado de fora’ é abissalmente devastador: porque, para
bipolares do “tipo 1”, são várias pessoas ao longo do dia, ou doses cavalares
de energia e tempo para seduzir e garantir relações sexuais em grandes
quantidades mais a frente, transformando o(a) paciente numa espécie de
“homem/mulher condomínio”. Isso atenta frontalmente à necessidade básica do(a)
‘não-paciente’ por segurança a fim de construir, de forma consistente e perene,
laços afetivos.
As pessoas que
convivem com isso sofrem demais por conta desse dispositivo do(a) bipolar do
“tipo 1”: fica praticamente inviável sequer planejar um jantar romântico, um
encontro, um momento a dois, uma viagem. A guilhotina parece estar sempre no
pescoço, o tempo todo, sem descanso. Isso sem contar na insegurança ‘afetiva-genética-de
saúde’ que tal convívio gera em muitos.
Não confundamos
tal situação com àquelas protagonizadas por pessoas sem quaisquer escrúpulos no
exercício sexual da própria vida, gente que deliberadamente faz sexo como se
bebe um copo d’água, sem qualquer afeição ao(à) parceiro(a) ou sintonia com
algum sentimento ou afetividade entre o casal. São coisas distintas: o(a)
bipolar do “tipo 1” pratica o coito ‘em sofreguidão’, quase ‘um desespero’, na
busca de ‘arrebatamento’ ou uma ‘porta de saída’. Uma espécie de ‘vale-tudo’: a
relação sexual não acontece ‘na boa’, para o casal ‘curtir o momento’. O nível
de açodamento chega a ser quase ímpar.
Quando a coisa
não atinge quantidades monumentais de sexo, o escape pode acontecer por
qualquer coisa que cause arrebatamento: compras, cocaína, excessiva exposição,
bebida, festas, drogas... qualquer coisa que “os(as) tire de si próprios(as)”.
O
‘não-confronto’ consigo mesmo(a) se deve ao não entendimento (baixa cognição)
do que se sente. Quando se tem entendimento preciso do que se sente, fica mais
fácil lidar com os momentos turbulentos e doloridos da vida, mas isso é algo
improvável num(a) bipolar do “tipo 1” posto que sua capacidade de cognição está
alterada. É como se ele(a) estivesse completamente “descolado da realidade” (a
saber, intuir, de antemão, as consequências de um determinado gesto ou ato). Isso
não existe de forma saudável num(a) bipolar do “tipo 1”.
O resultado
disso é uma quantidade gigantesca de frustração (por não entender o que sente e
não conseguir se envolver emocionalmente por nada, nem por alguém, como
acontece na maioria das pessoas). É algo que vai bem além de “alterações
bruscas de humor”, é bem mais sofisticado. Por conta disso, uma raiva consigo
mesmo(a): percebam que um(a) bipolar do “tipo 1” sofre com reclamações de
amigos e familiares por sua postura “agressiva”. É o famoso “... não sabe
brincar”: as brincadeiras são agressivas, as piadas são agressivas, o gesto é
agressivo, a postura é agressiva... algo bem acima do normal.
Como
consequência, o mundo de um(a) bipolar do “tipo 1” nunca é “como ele é”, mas o
que ele “deve ser” de acordo com o que acredita dentro de seu “descolamento da
realidade”: as pessoas devem ter ‘tal aparência’, ‘tal comportamento’, ‘tal
roupa’, ‘tal status-social’, ‘tal origem’, ‘tal patrimônio’... Para um(a)
bipolar do “tipo 1”, não há o “mundo como ele é”, com suas diversidades,
gêneros, tendências, transformações, dinâmicas. Até sabem que existem, mas
somente pertinentes se enquadrados numa realidade que não faz parte da natureza
(ou essência) ‘do outro’.
O resultado
desse entendimento nem sempre é bem visto por esse ‘outro’: dentro de um
processo de preservação e proteção social, as pessoas rotulam tal procedimento
como ‘manipulação’ (o que, de fato, não deixa ser em algum grau). Mais uma
‘espiral descendente’ do(a) bipolar do “tipo 1”: na tentativa de controle,
envolve outros(as) personagens em assuntos que seriam meramente privados. Até
se explicar que elefante esguicha água, mas não apaga incêndio, cada um
responde da sua maneira: há muitas pessoas que não primam pela discrição, e
metem a boca-no-trombone, por se sentirem inconscientemente amedrontadas por
algo extremamente ameaçador para a vida humana: a interferência.
Um(a) bipolar do
“tipo 1” interfere... e interfere da pior maneira. Não conseguem avaliar
eventuais consequências dessas interferências e... quando veem... o estrago
está feito. E de maneira irreparável.
Quando digo ‘não
conseguem’, não é porque ‘não querem’. Um(a) bipolar do “tipo 1” até quer, mas
não consegue, mesmo. A coisa é bem grave. Querem muito, mas não conseguem: não
conseguem entender o que sentem, não conseguem se envolver emocionalmente por
nada, nem ninguém... é uma vida resumida a uma sequência interminável e cada
vez mais destruidora de solavancos.
Disso para a
violência (ou gestos e procedimentos mais violentos) é um pulo! Na ‘espiral
descendente’ de um(a) bipolar do “tipo 1” está a ‘violência’. Pode se chegar a
esse ponto, ou não, tudo depende de cada caso. A pergunta frequente em alguns
casos é “Pode um(a) bipolar do “tipo 1” sentir algo por alguém?!”. Suspeita-se
até que ‘pode’, mas é um sentimento em meio a um ‘ferro-velho’ carcomido e tão
“retorcido”, de um ‘descolamento da realidade’ tão grande, que é difícil identificá-lo
(ou até duvidar cabalmente de sua existência).
A pergunta
final: “Quando é que um(a) bipolar do “tipo 1” ‘cai em si’ e procura por ajuda
especializada?!”. Isso é uma grande incógnita. Varia de pessoa para pessoa.
Como um(a) bipolar do “tipo 1” é socialmente aceitável e aproveitável, quase
não sobra muita margem para o(a) paciente entender que chegou num
‘fundo-de-poço’: pelo mundo à sua disposição, e sua baixa capacidade de
cognição, não lhe é ofertado(a) sinais claros de que há graves problemas emocionais
que mereçam, enfim, ter acompanhamento médico. Aí, é esse eterno ‘marcar passo’
que isola o(a) paciente de um saudável convívio social e afeta todos(as) os(as)
demais ‘não-pacientes’ que nutrem legítimo afeto por essa pessoa.
Definitivamente,
péssimo para os dois lados. É um isolamento que o(a) paciente não gosta de
sofrer e o(a) ‘não-paciente’ detesta aplicar. Todavia, o relacionamento fica
tão ‘tóxico’ que não resta alternativa que não seja essa, mesmo que não se
queira.
O resultado: uma
destruição que foge do lógico e do ilógico. Nos dias de hoje, em quantidade
planetária. Muito sofrimento que poderia ser corrigido com habilidade e química
fina. Não há aqui apenas um “grito de alerta”, mas uma vontade pela paz. Não é
possível ser feliz vendo tanto sofrimento.
Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 48 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
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