Sunday, January 7, 2018

JOÃO e JEREMIAS - A PORRA DA HISTÓRIA (um folhetim beat de JR Fidalgo - 1º de 16 partes)



para João, Jeremias e todos os outros


“Nós só queremos que Deus nos mostre a sua face”.
Foi o que ele disse, lá sentado naquele sofá
Em frente às câmeras de TV
Ele não teria dito nada
Mas então o sujeito lhe perguntou:
“O que vocês pretendem?”
Então ele disse:
“Nós só queremos que Deus nos mostre a sua face”.
E o apresentador ficou calado
E os homens atrás das câmeras ficaram calados
E todas aquelas pessoas sentadas na platéia também ficaram caladas
Então ele se levantou, disse boa noite e foi embora
(De “A Porta dos Fundos do Paraíso”)


INTRODUÇÃO

Nos últimos tempos, era difícil ficar sozinho e isso acabava sendo uma contradição, pois sabia que a solidão era essencial para algumas coisas básicas, como, por exemplo, tentar escrever um novo livro. Havia descoberto, no entanto, que não era boa companhia para si mesmo. Aliás, desconfiava que era a pior delas.

Outra contradição, ou ironia, era o fato de ele ter se demitido do seu último emprego justamente para ter tempo livre para se dedicar a escrever. Bem, o motivo não havia sido apenas esse. Na verdade, foram vários motivos que o levaram a tomar a decisão de deixar a até certo ponto confortável situação em que se encontrava alguns meses atrás para tentar viver com o pouco dinheiro que havia juntado e com o trabalho avulso que pintasse, pelo maior período possível.

De qualquer forma, mais tempo para escrever as “suas coisas” foi um dos motivos. E, agora, a última coisa que fazia com seu tempo livre era usá-lo para escrever. Havia sempre algo que ele achava mais importante ou divertido para fazer. E, quando nada do tipo surgia, ele ficava como estava agora, andando pela casa de um lado para o outro, abrindo a geladeira, indo até o computador verificar pela enésima vez seus e-mails, ligando a TV e zapeando os canais sem conseguir se interessar por nada do que aparecia na tela. selo a

Não havia nenhuma novidade nisso. Qualquer idiota que fosse idiota o suficiente para achar que podia escrever alguma coisa que valesse a pena enfrentava situações como essa, mais cedo ou mais tarde. A duração da tortura dependia do nível de idiotice de cada um, isto é, quanto mais idiota a pessoa fosse, mais longo seria esse período, já que o idiota em questão continuaria persistindo por mais tempo na sua tentativa idiota de escrever. Alguns idiotas, inclusive, tentavam transformar essa tortura auto-imposta no tema de seus pretensos livros, sem atentar para o fato de que inúmeros idiotas antes deles haviam feito o mesmo.

Não era, portanto, essa a questão. O problema era que, ultimamente, quando ficava sozinho, em casa, todas as coisas que fazia para “não escrever” eram também e, principalmente, uma tentativa de evitar entrar naquele estado de desespero gratuito que tão bem conhecia e sabia para onde sempre o levava quando ficava muito tempo mergulhado naquelas águas sombrias e profundas. E o idiota dentro dele já estava quase o convencendo de que isso seria um ótimo tema para o livro que não estava escrevendo. No entanto, o seu medo de afundar no pântano escuro que o ameaçava nessas ocasiões era grande demais para que ele se atrevesse a brincar com isso.

Quando ela estava por perto, isso, é lógico, não acontecia. Aliás, quando ela estava por perto, sua insanidade parecia, milagrosamente, reduzir-se a níveis mínimos, na maioria das vezes bem suportáveis. A vida ia simplesmente fluindo e, na maior parte do tempo, aquele antigo provérbio zen “não apresse o rio, ele corre sozinho” parecia fazer todo o sentido. De qualquer forma, isso só acontecia quando ela estava por perto, e ela não estava por perto sempre e não estava por perto agora…

De vez em quando, tinha a impressão de que havia caído numa armadilha, uma armadilha que ele próprio tinha armado. Não no que se referia ao seu estado de desespero crônico e recorrente. Este era definitivamente patológico e incurável, vinha até se acostumando melhor com idéia de conviver eternamente com ele nos últimos tempos. A armadilha, no caso, tinha a ver com o segundo livro. Sim, porque ele já tinha escrito e lançado um primeiro, A Porta dos Fundos do Paraíso, numa edição reduzidíssima financiada do próprio bolso. E esse foi o primeiro passo para construir a armadilha na qual se sentia agora aprisionado.selo 3

Nada errado em ter lançado esse primeiro livro. Sentia-se até gratificado pelo fato de ter conseguido levar um projeto até o fim, coisa rara na sua história de vida cheia de inúmeros projetos inacabados abandonados pelo caminho. É claro que o incentivo persistente dela para que seguisse em frente foi fundamental para que isso acontecesse. Mas essa era outra história.

Outra coisa positiva é que, embora o livro ficasse conhecido apenas entre um grupo restrito de pessoas, mereceu até alguns elogios. Isso e também o fato da pequena tiragem impressa ter sido praticamente toda vendida, o que o livrou da previsível depressão de ter uma pilha de livros encalhados olhando para ele em casa.

Então, o problema não foi ter escrito e lançado A Porta dos Fundos do Paraíso. Afinal, nunca foi idiota o suficiente para alimentar sonhos delirantes sobre o futuro do livro e estava satisfeito com o retorno obtido até ali. O problema, na verdade, foi não ter se levado suficientemente a sério quando, nas entrevistas que deu a alguns jornais e TVs locais, por ocasião do lançamento de A Porta dos Fundos do Paraíso, afirmava que qualquer idiota podia escrever um livro e que, com as facilidades tecnológicas atuais e o barateamento da produção, qualquer um podia também, por conta própria, imprimi-lo, lançá-lo e colocar alguns exemplares à venda em livrarias da cidade onde vivia.


Como se fez de surdo às suas próprias palavras, o idiota dentro dele percebeu a brecha e começou a convencê-lo de que ele não só devia continuar escrevendo, mas tinha “obrigação” de fazê-lo. Tinha que provar a si mesmo e ao MUNDO que A Porta dos Fundos do Paraíso não era resultado de sorte de principiante e nem seu primeiro e último suspiro antes da morte. A partir desse ponto, o idiota assumiu totalmente o comando e agora ali estava ele, olhando para os últimos quatro exemplares de A Porta dos Fundos do Paraíso que restaram na sua estante.




CAPÍTULO I

Conhecia bem aquela sensação e, como acontecia com outras tantas sensações incômodas, sabia onde aquela sensação estava tentando levá-lo. O interessante é que, apesar dessa percepção, isto é, de perceber as sensações e de prever onde elas o acabariam conduzido, havia aprendido também que era inevitável resistir. As sensações eram incontroláveis, como incontrolável era o fluxo que elas produziam e que o arrastavam como um tronco na enxurrada.

Não muito tempo atrás, havia se preparado para ser um nômade. Embora nunca tenha na realidade se tornado um nômade, aquela sensação de achar que estava preparado para sê-lo dava-lhe certa segurança. Afinal, estava por ali só de passagem. A qualquer momento, se as águas começassem a subir, ele podia pular fora e voltar a nadar.

Com a prática, acabou se acostumando com essa constante perspectiva provisória de vida, a ponto de concluir que havia finalmente encontrado a sua postura ideal diante do mundo. Logicamente, manter essa postura exigia algum tipo de vigilância. Por exemplo, volta e meia a ideia de ter um lugar para repousar a cabeça surgia do nada e precisava ser ferozmente combatida com uma série de contra-argumentos, o principal deles o de que sua própria experiência demonstrava que, sempre que se deixou levar por essa “ilusão”, as consequências tinham sido as piores possíveis. Se havia pessoas que tinham conseguido encontrar esse lugar que costumavam chamar de lar, ele definitivamente não fazia parte desse círculo.

De sua parte, fingiria que estava totalmente presente nos lugares onde eventualmente se encontrava, mas sempre preparado para ejetar seu assento e sumir no espaço, caso as coisas se complicassem a níveis de alto risco. Depois do grande caos em que sua vida havia se transformado num passado não muito distante, viver de “prontidão” não era assim tão ruim. E, como já foi dito, ele já tinha se acostumado com a situação e, às vezes, até chegava a gostar dela, quando relembrava os riscos que estava evitando.

Os anos logo após o dilúvio foram vividos assim. Até que ela apareceu. Ele resistiu o quanto pôde, mas não pôde muito.



JR Fidalgo: um jornalista
que tem preguiça de perguntar,
um escritor que não tem saco
pra escrever e um compositor
que não sabe tocar.

(mas que, mesmo assim,
já escreveu três romances
e uma quantidade considerável
de canções ao longo
dos últimos 45 anos)

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