CAPÍTULO
X
Seria
algum daqueles muros que ele teria de derrubar pra escapar do beco onde havia
se metido?
A
coisa que mais mudara na rua era o tamanho dos muros das casas, que agora
ficavam escondidas atrás de altas paredes de concreto.
Na
verdade, como constatou a seguir, não havia assim tantas casas protegidas por
altos muros na rua, apenas umas cinco ou seis. Só que estas eram significativas
em sua memória.
Há
exatamente 10 anos, quando morava naquela rua e caminhava por ela, os jardins e
as varandas daquelas cinco ou seis casas podiam ser vistos da calçada. Hoje
isso era impossível. Sinal dos tempos, pensou.
O
fato de estar caminhando por aquela rua há exatos 10 anos após ter se mudado
devia significar alguma coisa.
Sempre
evitara não só aquela rua, mas até mesmo aquela vizinhança.
Tudo
é bom quando termina bem, dizia o ditado. Ali, as coisas tinham terminado mal
e, portanto, embora soubesse que sua sensação não correspondia à realidade
precisa dos fatos, a impressão era de que tudo o que acontecera ali havia sido
ruim.
Mesmo
as coisas boas – e racionalmente ele sabia que elas existiram – não mereciam
ser recordadas, já que, na sua visão, tudo tinha terminado mal.
Aquela
rua, aquelas casas e várias das pessoas que provavelmente ainda viviam ali
haviam assistido, ano após ano, ele se afundando num mar de álcool e drogas.
Muitas
outras ruas, muitas outras casas e muitas outras pessoas tinham também
presenciado seu progressivo e obstinado afogamento. No entanto, quando o
pesadelo finalmente terminou, ele voltou gradativamente a caminhar por aquelas
outras ruas, entrar naquelas outras casas e conversar com aquelas outras
pessoas.
A
única exceção era aquela rua específica, onde tinha morado por 13 longos anos e
por onde agora caminhava, surpreso com os muros altos que protegiam as cinco ou
seis casas das quais, no passado, ele gostava de observar os jardins e as
varandas.
Então,
por que diabo tinha vindo parar ali, naquela manhã ensolarada de sábado?
Sabia
que não tinha sido um acidente.
Quando
iniciou sua caminhada, não tinha idéia de para onde ia. Chegando à praia,
decidiu que, ao contrário do que geralmente fazia, não iria na direção do
porto, mas para o lado oposto.
No
caminho, pensou em como sua percepção da cidade estava mudando. Sempre
preferira caminhar pelo passeio da praia em direção ao porto. Gostava mais
daquele trecho, praia, achava mais bonito, acolhedor.
Naquele
dia, porém, quando pensou em seguir o roteiro habitual, logo mudou de idéia,
sentindo que estava farto de caminhar por aquele lado da praia. Queria uma
paisagem diferente e a paisagem diferente estava na direção oposta.
Seguiu
então para o outro extremo da ilha.
No
caminho, concluiu que podia muito bem não se tratar de uma mudança na sua
percepção da cidade, mas simplesmente de uma mera vontade de variar de
paisagem.
Contudo,
ao atravessar o primeiro canal, já tinha decidido que sairia da avenida da
praia e entraria no próximo canal.
Estava
na segunda quadra desse segundo canal, quando se deparou com outro canal menor,
transversal ao canal por onde caminhava e margeado por grandes árvores. Esse
canal levava a um parque cercado onde havia algumas espécies de animais e se
cultivavam orquídeas.
Não
lhe passou pela cabeça ir até o parque, mas lembrou-se de que tinha um amigo
que morava num prédio em frente ao tal parque. Por isso, dirigiu-se para o
canal transversal margeado por grandes árvores.
Não
tinha intenção de visitar o amigo, até porque não costumava visitá-lo nunca em
sua casa e também porque não fazia a mínima ideia de qual era o prédio onde ele
morava.
Pensou
que talvez pudesse encontrá-lo na rua, já que ele sabia que o amigo costumava
levar seu cachorro para passear. Como seu amigo não estava passeando com o
cachorro naquele momento, ele obviamente não o encontrou e seguiu adiante.
Quando
percebeu, estava se encaminhando para a rua que margeava a linha do trem. Olhou
para o outro lado e viu uma jovem negra, vestida com andrajos, perambulando
pelos trilhos.
Quando
ela o viu, do outro lado da rua, levantou uma lata que carregava numa das mãos
e ofereceu a ele. Ele deduziu que a jovem, já totalmente fora de órbita, estava
lhe oferecendo o resto da pedra de crack que havia ou que ela achava que ainda
havia na lata. Com um aceno de mão, ele agradeceu e deu a entender que não
queria.
Mais
improvável do que a presença daquela garota ali, naquela hora da manhã, só
mesmo o fato de ela ter lhe oferecido um pega.
Em
todo o caso, seguiu em frente, pela rua que margeava a linha férrea, pensando
que, no seu tempo, nunca havia encontrado ninguém fumando crack na rua por ali,
muito menos àquele hora da manhã. Bem, ponderou ele, no seu tempo as pessoas
ainda fumavam crack em suas casas e aquela rua o estava levando exatamente para
a rua onde havia morado muito tempo atrás.
Não
pretendia entrar na tal rua, só dar uma olhada da esquina. Mas fez as contas e
concluiu que faziam exatamente dez anos que ele havia se mudado dali, talvez
até o mês fosse o mesmo, quem sabe até o dia.
Hesitou
um pouco, mas acabou virando a esquina e entrando na tal rua.
Talvez
devido à luz bem clara e amarela do sol do início do outono, talvez o efeito de
seus óculos escuros, talvez consequência de algo inexplicável acontecendo
dentro dele, o fato é que a rua parecia ter se transformado num túnel sem teto.
Queria
parar e observar melhor as casas, queria tirar os óculos escuros para enxergar
melhor, queria se conscientizar de que estava fazendo uma coisa importante, que
estava enfrentando alguns de seus mais aterrorizantes fantasmas.
Queria
muitas coisas, mas não fez nenhuma delas. Apenas percorreu rapidamente as duas
quadras que o separavam da próxima esquina e saiu do túnel.
Sim,
tinha feito uma coisa importante, sabia disso. Mas o que diabo tinha feito e
para que serviria tudo aquilo?
Como
a maioria das coisas que andava fazendo ultimamente, também aquela não fazia
nenhum sentido.
E
que porra de muro ele precisava derrubar pra escapar do beco?
CAPÍTULO
XI
Jeremias
e Cris caminhavam pela praia, deixando que o mar de vez em quando molhasse seus
pés.
Aquilo
havia se transformado em mania nas últimas semanas, caminhadas pela praia no
final das tardes daquele verão.
E
aquele verão parecia bem mais longo do que qualquer outro verão de que Jeremias
se lembrasse. Na verdade, os dias é que pareciam cada vez mais longos, talvez
pelo fato de que ele e o grupo de pessoas com que andava estarem convencidos de
que viviam um momento especial, naquela cidade, naquele ano, naquele verão.
Lógico
que tudo poderia ser apenas e tão somente efeito daquele fumo forte que,
segundo diziam, chegara à cidade dentro de latas que o mar tinha trazido.
De
qualquer forma, Jeremias não estava nem um pouco preocupado em descobrir as
causas de nada.
Preferia
sentir os efeitos que aquele verão parecia estar provocando nas pessoas, pelo
menos naquelas pessoas que Jeremias costumava sempre cruzar, nas ruas e nos
lugares onde costumava ir.
Ele
não conversava com Cris sobre isso. Aliás, quase ninguém conversava sobre isso
com ninguém, mas havia no ar a sensação de que todos estavam sentindo a mesma
coisa.
Então
Jeremias e Cris avistaram um navio deixando o porto e saindo mar afora pela
barra.
–
Dá vontade de estar lá dentro, não dá?, perguntou Cris.
–
Com certeza, respondeu Jeremias.
Como
diabo tinha vindo parar ali?
Ora,
ele sabia muito bem como tinha vindo parar ali.
E
isso também não importava, porque ele agora estava ali e não parecia haver
qualquer chance de,a curto prazo, poder se livrar daquilo.
Aliás,
se livrar daquilo significava ter de enfrentar tudo o que havia ficado do lado
de fora, o que não era uma perspectiva nada animadora.
Então,
por enquanto, a melhor alternativa era tentar agUentar aquilo por algum um
tempo, como já havia feito antes em ocasiões parecidas.
Logo
tudo aquilo se resolveria. Era só não entrar em pânico.
Na
verdade, Jeremias procurava manter esses pensamentos na cabeça apenas para
tentar se acalmar um pouco. Desde que chegara ali e o efeito da última dose se
evaporara de seu sangue, ele não conseguia parar de tremer e de se contorcer.
As
pessoas em volta pareciam estar acostumadas a essas situações. Simplesmente
olhavam pra ele, sorriam e diziam que aquilo iria melhorar.
Mas
talvez o que Jeremias mais temesse fosse justamente isso, melhorar.
Se
as fisgadas no estômago e a tremedeira parassem, ele ficaria lúcido o
suficiente para perceber exatamente onde estava.
E,
por enquanto, preferia ficar daquele jeito, tremendo e sentindo fisgadas na
barriga.
Aquilo,
pelo menos, ele já conhecia de cor.
&&&&&&&&&&
Anfetamina
e sexo não combinavam. Pelo menos para ele. E, como o álcool potencializava o
efeito da anfetamina, anfetamina, álcool e sexo também não combinavam. Pelo
menos para ele.
Então
Jeremias descobriu que apenas álcool, bastante álcool, combinava bem com sexo,
bastante sexo.
Não
foi uma “iluminação instantânea”. Aconteceu aos poucos, mas a descoberta só se
tornou definitiva com Cris.
No
começo, eles tinham o que se poderia chamar de uma “grande amizade”, o que,
para Jeremias, chegava a ser surpreendente, já que havia metido na sua cabeça
que jamais conseguiria ser simplesmente amigo de uma mulher.
Talvez
apenas para comprovar que sua teoria estava certa, ele acabou caindo na
besteira de ir se apaixonando por Cris e, quando percebeu, estava de quatro,
lambendo o chão por onde ela passava.
Então
Jeremias teve de colocar à prova outra de suas teorias sobre relacionamento
amoroso: sexo e paixão nunca funcionavam direito.
Talvez
apenas para comprovar que essa sua teoria também estava correta, ele broxou
gloriosamente nas duas vezes em que tentou transar com Cris.
Ela,
compreensiva como uma “boa amiga”, disse que estava tudo bem. Mas para Jeremias
estava tudo mal, muito mal.
E
ele precisava dar um jeito de virar o jogo, porque não agüentava aquela
sensação de ter sido expulso de campo antes da partida ter começado.
Então,
um dia, ligou novamente para Cris e a convidou para sair. E ela, como “boa
amiga”, aceitou.
A
única maneira que encontrou de controlar a ansiedade até o momento de pegar Cris
em sua casa foi ficar enchendo a cara num bar da vizinhança.
Quando
finalmente cruzou com ela, percebeu, de repente, que Cris era realmente uma
mulher bonita, e gostosa.
Foram
para o apartamento que um amigo havia emprestado. Lá, além de uma cama, havia
também uma garrafa de conhaque quase cheia.
Antes
de qualquer coisa, Jeremias se serviu de uma dose generosa e não se importou
nem um pouco como o fato de Cris não querer acompanhá-lo.
É
lógico que a pele de quase todas as mulheres é geralmente macia, mas a pele de
Cris era a mais macia que Jeremias jamais tinha tocado.
selo
a
O
interessante é que só daquela vez – e nunca das duas vezes anteriores – ele
estava se dando conta disso.
Talvez
porque agora estivesse passando sua mão pelo corpo nu de uma Cris que, ele
acabara de descobrir, era somente uma mulher, e não a Cris-Deusa que antes
povoava seus sonhos de apaixonado.
Quando
entrou dentro dela, sentiu, pela primeira vez, a sensação de conquista.
Então
Jeremias já não se sentia mais como Jeremias, nem sentia que Cris era mais
Cris.
Havia
apenas um macho e uma fêmea sobre os lençóis daquela cama emprestada.
E
Jeremias perdeu totalmente o controle, conquistando e possuindo aquela fêmea
que parecia lhe permitir todas as conquistas e posses possíveis.
Então
tudo explodiu num turbilhão de estilhaços, contorções e gemidos.
–
Você está querendo me matar?, perguntou Cris.
–
Desculpe, respondeu Jeremias.
Como
“boa amiga”, Cris o desculpou por seu incontrolável ímpeto de conquista e
posse.
Jeremias,
contudo, não achou que ela estivesse sendo realmente sincera.
&&&&&&&&&
Agora,
olhando para a porra daquele mar e tentando ainda achar alguma coisa mais
importante pra dizer a respeito da porra daquele mar, Jeremias percebia
claramente que havia uma linha divisória entre aquele verão, em que ele e Cris
caminhavam pela praia nos fins de tarde, e os verões que se seguiram. Essa
linha era branca e tinha nome: cocaína.
E
daí?, pensou Jeremias, levantando-se e limpando a areia da bunda.
Talvez
não houvesse história nenhuma para ser contada. Talvez ele estivesse apenas
tentando dar um significado a tudo o que acontecera, porque era muito doloroso
concluir que tudo aquilo não significara absolutamente nada de especial pra
ninguém, a não ser pra ele próprio.
Talvez
só ele se interessasse em ler aquela história que ele mesmo achava que
precisava contar.
Afinal,
como ele mesmo já havia percebido, era apenas uma porra de uma história.
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