Sunday, March 4, 2018

JOÃO e JEREMIAS - A PORRA DA HISTÓRIA (um folhetim beat de JR Fidalgo - 6ª de 16 partes)




CAPÍTULO X

Seria algum daqueles muros que ele teria de derrubar pra escapar do beco onde havia se metido?

A coisa que mais mudara na rua era o tamanho dos muros das casas, que agora ficavam escondidas atrás de altas paredes de concreto.

Na verdade, como constatou a seguir, não havia assim tantas casas protegidas por altos muros na rua, apenas umas cinco ou seis. Só que estas eram significativas em sua memória.

Há exatamente 10 anos, quando morava naquela rua e caminhava por ela, os jardins e as varandas daquelas cinco ou seis casas podiam ser vistos da calçada. Hoje isso era impossível. Sinal dos tempos, pensou.

O fato de estar caminhando por aquela rua há exatos 10 anos após ter se mudado devia significar alguma coisa.

Sempre evitara não só aquela rua, mas até mesmo aquela vizinhança.

Tudo é bom quando termina bem, dizia o ditado. Ali, as coisas tinham terminado mal e, portanto, embora soubesse que sua sensação não correspondia à realidade precisa dos fatos, a impressão era de que tudo o que acontecera ali havia sido ruim.

Mesmo as coisas boas – e racionalmente ele sabia que elas existiram – não mereciam ser recordadas, já que, na sua visão, tudo tinha terminado mal.

Aquela rua, aquelas casas e várias das pessoas que provavelmente ainda viviam ali haviam assistido, ano após ano, ele se afundando num mar de álcool e drogas.

Muitas outras ruas, muitas outras casas e muitas outras pessoas tinham também presenciado seu progressivo e obstinado afogamento. No entanto, quando o pesadelo finalmente terminou, ele voltou gradativamente a caminhar por aquelas outras ruas, entrar naquelas outras casas e conversar com aquelas outras pessoas.

A única exceção era aquela rua específica, onde tinha morado por 13 longos anos e por onde agora caminhava, surpreso com os muros altos que protegiam as cinco ou seis casas das quais, no passado, ele gostava de observar os jardins e as varandas.

Então, por que diabo tinha vindo parar ali, naquela manhã ensolarada de sábado?

Sabia que não tinha sido um acidente.

Quando iniciou sua caminhada, não tinha idéia de para onde ia. Chegando à praia, decidiu que, ao contrário do que geralmente fazia, não iria na direção do porto, mas para o lado oposto.

No caminho, pensou em como sua percepção da cidade estava mudando. Sempre preferira caminhar pelo passeio da praia em direção ao porto. Gostava mais daquele trecho, praia, achava mais bonito, acolhedor.

Naquele dia, porém, quando pensou em seguir o roteiro habitual, logo mudou de idéia, sentindo que estava farto de caminhar por aquele lado da praia. Queria uma paisagem diferente e a paisagem diferente estava na direção oposta.

Seguiu então para o outro extremo da ilha.

No caminho, concluiu que podia muito bem não se tratar de uma mudança na sua percepção da cidade, mas simplesmente de uma mera vontade de variar de paisagem.

Contudo, ao atravessar o primeiro canal, já tinha decidido que sairia da avenida da praia e entraria no próximo canal.

Estava na segunda quadra desse segundo canal, quando se deparou com outro canal menor, transversal ao canal por onde caminhava e margeado por grandes árvores. Esse canal levava a um parque cercado onde havia algumas espécies de animais e se cultivavam orquídeas.

Não lhe passou pela cabeça ir até o parque, mas lembrou-se de que tinha um amigo que morava num prédio em frente ao tal parque. Por isso, dirigiu-se para o canal transversal margeado por grandes árvores.

Não tinha intenção de visitar o amigo, até porque não costumava visitá-lo nunca em sua casa e também porque não fazia a mínima ideia de qual era o prédio onde ele morava.

Pensou que talvez pudesse encontrá-lo na rua, já que ele sabia que o amigo costumava levar seu cachorro para passear. Como seu amigo não estava passeando com o cachorro naquele momento, ele obviamente não o encontrou e seguiu adiante.

Quando percebeu, estava se encaminhando para a rua que margeava a linha do trem. Olhou para o outro lado e viu uma jovem negra, vestida com andrajos, perambulando pelos trilhos.

Quando ela o viu, do outro lado da rua, levantou uma lata que carregava numa das mãos e ofereceu a ele. Ele deduziu que a jovem, já totalmente fora de órbita, estava lhe oferecendo o resto da pedra de crack que havia ou que ela achava que ainda havia na lata. Com um aceno de mão, ele agradeceu e deu a entender que não queria.

Mais improvável do que a presença daquela garota ali, naquela hora da manhã, só mesmo o fato de ela ter lhe oferecido um pega.

Em todo o caso, seguiu em frente, pela rua que margeava a linha férrea, pensando que, no seu tempo, nunca havia encontrado ninguém fumando crack na rua por ali, muito menos àquele hora da manhã. Bem, ponderou ele, no seu tempo as pessoas ainda fumavam crack em suas casas e aquela rua o estava levando exatamente para a rua onde havia morado muito tempo atrás.

Não pretendia entrar na tal rua, só dar uma olhada da esquina. Mas fez as contas e concluiu que faziam exatamente dez anos que ele havia se mudado dali, talvez até o mês fosse o mesmo, quem sabe até o dia.

Hesitou um pouco, mas acabou virando a esquina e entrando na tal rua.

Talvez devido à luz bem clara e amarela do sol do início do outono, talvez o efeito de seus óculos escuros, talvez consequência de algo inexplicável acontecendo dentro dele, o fato é que a rua parecia ter se transformado num túnel sem teto.

Queria parar e observar melhor as casas, queria tirar os óculos escuros para enxergar melhor, queria se conscientizar de que estava fazendo uma coisa importante, que estava enfrentando alguns de seus mais aterrorizantes fantasmas.

Queria muitas coisas, mas não fez nenhuma delas. Apenas percorreu rapidamente as duas quadras que o separavam da próxima esquina e saiu do túnel.

Sim, tinha feito uma coisa importante, sabia disso. Mas o que diabo tinha feito e para que serviria tudo aquilo?

Como a maioria das coisas que andava fazendo ultimamente, também aquela não fazia nenhum sentido.

E que porra de muro ele precisava derrubar pra escapar do beco?


CAPÍTULO XI

Jeremias e Cris caminhavam pela praia, deixando que o mar de vez em quando molhasse seus pés.

Aquilo havia se transformado em mania nas últimas semanas, caminhadas pela praia no final das tardes daquele verão.

E aquele verão parecia bem mais longo do que qualquer outro verão de que Jeremias se lembrasse. Na verdade, os dias é que pareciam cada vez mais longos, talvez pelo fato de que ele e o grupo de pessoas com que andava estarem convencidos de que viviam um momento especial, naquela cidade, naquele ano, naquele verão.

Lógico que tudo poderia ser apenas e tão somente efeito daquele fumo forte que, segundo diziam, chegara à cidade dentro de latas que o mar tinha trazido.

De qualquer forma, Jeremias não estava nem um pouco preocupado em descobrir as causas de nada.

Preferia sentir os efeitos que aquele verão parecia estar provocando nas pessoas, pelo menos naquelas pessoas que Jeremias costumava sempre cruzar, nas ruas e nos lugares onde costumava ir.

Ele não conversava com Cris sobre isso. Aliás, quase ninguém conversava sobre isso com ninguém, mas havia no ar a sensação de que todos estavam sentindo a mesma coisa.

Então Jeremias e Cris avistaram um navio deixando o porto e saindo mar afora pela barra.

– Dá vontade de estar lá dentro, não dá?, perguntou Cris.

– Com certeza, respondeu Jeremias.

Como diabo tinha vindo parar ali?

Ora, ele sabia muito bem como tinha vindo parar ali.

E isso também não importava, porque ele agora estava ali e não parecia haver qualquer chance de,a curto prazo, poder se livrar daquilo.

Aliás, se livrar daquilo significava ter de enfrentar tudo o que havia ficado do lado de fora, o que não era uma perspectiva nada animadora.

Então, por enquanto, a melhor alternativa era tentar agUentar aquilo por algum um tempo, como já havia feito antes em ocasiões parecidas.

Logo tudo aquilo se resolveria. Era só não entrar em pânico.

Na verdade, Jeremias procurava manter esses pensamentos na cabeça apenas para tentar se acalmar um pouco. Desde que chegara ali e o efeito da última dose se evaporara de seu sangue, ele não conseguia parar de tremer e de se contorcer.

As pessoas em volta pareciam estar acostumadas a essas situações. Simplesmente olhavam pra ele, sorriam e diziam que aquilo iria melhorar.

Mas talvez o que Jeremias mais temesse fosse justamente isso, melhorar.

Se as fisgadas no estômago e a tremedeira parassem, ele ficaria lúcido o suficiente para perceber exatamente onde estava.

E, por enquanto, preferia ficar daquele jeito, tremendo e sentindo fisgadas na barriga.

Aquilo, pelo menos, ele já conhecia de cor.

&&&&&&&&&&

Anfetamina e sexo não combinavam. Pelo menos para ele. E, como o álcool potencializava o efeito da anfetamina, anfetamina, álcool e sexo também não combinavam. Pelo menos para ele.

Então Jeremias descobriu que apenas álcool, bastante álcool, combinava bem com sexo, bastante sexo.

Não foi uma “iluminação instantânea”. Aconteceu aos poucos, mas a descoberta só se tornou definitiva com Cris.

No começo, eles tinham o que se poderia chamar de uma “grande amizade”, o que, para Jeremias, chegava a ser surpreendente, já que havia metido na sua cabeça que jamais conseguiria ser simplesmente amigo de uma mulher.

Talvez apenas para comprovar que sua teoria estava certa, ele acabou caindo na besteira de ir se apaixonando por Cris e, quando percebeu, estava de quatro, lambendo o chão por onde ela passava.

Então Jeremias teve de colocar à prova outra de suas teorias sobre relacionamento amoroso: sexo e paixão nunca funcionavam direito.

Talvez apenas para comprovar que essa sua teoria também estava correta, ele broxou gloriosamente nas duas vezes em que tentou transar com Cris.

Ela, compreensiva como uma “boa amiga”, disse que estava tudo bem. Mas para Jeremias estava tudo mal, muito mal.

E ele precisava dar um jeito de virar o jogo, porque não agüentava aquela sensação de ter sido expulso de campo antes da partida ter começado.

Então, um dia, ligou novamente para Cris e a convidou para sair. E ela, como “boa amiga”, aceitou.
A única maneira que encontrou de controlar a ansiedade até o momento de pegar Cris em sua casa foi ficar enchendo a cara num bar da vizinhança.

Quando finalmente cruzou com ela, percebeu, de repente, que Cris era realmente uma mulher bonita, e gostosa.

Foram para o apartamento que um amigo havia emprestado. Lá, além de uma cama, havia também uma garrafa de conhaque quase cheia.

Antes de qualquer coisa, Jeremias se serviu de uma dose generosa e não se importou nem um pouco como o fato de Cris não querer acompanhá-lo.

É lógico que a pele de quase todas as mulheres é geralmente macia, mas a pele de Cris era a mais macia que Jeremias jamais tinha tocado.
selo a
O interessante é que só daquela vez – e nunca das duas vezes anteriores – ele estava se dando conta disso.

Talvez porque agora estivesse passando sua mão pelo corpo nu de uma Cris que, ele acabara de descobrir, era somente uma mulher, e não a Cris-Deusa que antes povoava seus sonhos de apaixonado.

Quando entrou dentro dela, sentiu, pela primeira vez, a sensação de conquista.

Então Jeremias já não se sentia mais como Jeremias, nem sentia que Cris era mais Cris.

Havia apenas um macho e uma fêmea sobre os lençóis daquela cama emprestada.

E Jeremias perdeu totalmente o controle, conquistando e possuindo aquela fêmea que parecia lhe permitir todas as conquistas e posses possíveis.

Então tudo explodiu num turbilhão de estilhaços, contorções e gemidos.

– Você está querendo me matar?, perguntou Cris.

– Desculpe, respondeu Jeremias.

Como “boa amiga”, Cris o desculpou por seu incontrolável ímpeto de conquista e posse.

Jeremias, contudo, não achou que ela estivesse sendo realmente sincera.

&&&&&&&&&

Agora, olhando para a porra daquele mar e tentando ainda achar alguma coisa mais importante pra dizer a respeito da porra daquele mar, Jeremias percebia claramente que havia uma linha divisória entre aquele verão, em que ele e Cris caminhavam pela praia nos fins de tarde, e os verões que se seguiram. Essa linha era branca e tinha nome: cocaína.

E daí?, pensou Jeremias, levantando-se e limpando a areia da bunda.

Talvez não houvesse história nenhuma para ser contada. Talvez ele estivesse apenas tentando dar um significado a tudo o que acontecera, porque era muito doloroso concluir que tudo aquilo não significara absolutamente nada de especial pra ninguém, a não ser pra ele próprio.

Talvez só ele se interessasse em ler aquela história que ele mesmo achava que precisava contar.

Afinal, como ele mesmo já havia percebido, era apenas uma porra de uma história.


CLIQUE ABAIXO PARA ACESSAR OS CAPÍTULOS ANTERIORES






JR Fidalgo: um jornalista
que tem preguiça de perguntar,
um escritor que não tem saco
pra escrever e um compositor
que não sabe tocar.

(mas que, mesmo assim,
já escreveu três romances
e uma quantidade considerável
de canções ao longo
dos últimos 45 anos)


No comments:

Post a Comment