Monday, March 19, 2018

JOÃO e JEREMIAS - A PORRA DA HISTÓRIA (um folhetim beat de JR Fidalgo - 8ª de 16 partes)


CAPÍTULO XIV
  
“Tinha decidido não tentar mais entrar em contato, até porque achava que você desistiria logo de contar essa tal história que você acha tão importante contar. Mas como você já mandou uma quantidade razoável de fragmentos, que eu venho reescrevendo e editando da forma que me parece mais conveniente, preciso então que você me dê um retorno sobre o material no qual já mexi. Sinto-me navegando às cegas e sou obrigado a colocar as coisas do seguinte modo: ou você me dá um retorno ou eu paro por aqui, porque não há como prosseguir desse jeito. Estou anexando o material que, como eu disse, está editado na forma e na seqüência que me pareceram melhor”.

João enviou o e-mail para Jeremias e foi caminhar pela cidade, a cidade que também fazia parte da história que Jeremias estava tentando contar.

“E daí?”, perguntou-se João. “E daí, porra nenhuma!”, respondeu para si mesmo.

“Não, não, tem um ‘e daí’, sim”, prosseguiu João no seu diálogo de autista.

“E qual é o ‘e daí’, então?”.

“O ‘e daí’ é que você enviou aquele e-mail já sabendo que Jeremias não vai dar absolutamente nenhum retorno a respeito do que você já escreveu. Você só mandou o e-mail porque, já sabendo disso, quer uma justificativa para não continuar ajudando Jeremias a contar a história que ele está te mandando, em ritmo de conta-gotas.”

Fazia sentido. Receber aqueles fragmentos de texto de Jeremias, que caíam com uma periodicidade aleatória na sua caixa postal, havia se transformado numa espécie de vício para João.

A única maneira que encontrara para controlar a ansiedade pela chegada dos “próximos capítulos” era reescrever e reescrever as coisas que já haviam chegado, a ponto de João agora já não saber mais direito se os textos ainda guardavam alguma relação coerente com os escritos originais ou se ele já havia reinventado tudo a partir das suas próprias idéias. Enquanto isso, por causa da demora na entrega da condensação dos textos encomendados, alguns clientes de João começavam a fazer ameaças, veladas, mas cada vez mais freqüentes, sobre a possibilidade de procurarem outras pessoas para desempenhar as tarefas que, percebiam, estavam sendo negligenciadas.

Isso fez com que João concluísse que era preciso, urgentemente, se organizar melhor – e, principalmente, ufa, se acalmar um pouco. Decidiu, então, que, dali em diante, mesmo que algum novo texto de Jeremias chegasse, ele não tocaria nele até ter terminado todas as encomendas de seus clientes.

Voltou para casa e sentou no computador decidido a trabalhar, séria e profissionalmente, até desmaiar de cansaço ou sono.

Mas, quando foi checar a sua caixa postal, havia uma mensagem recém-chegada:

“Eu continuo achando que você é o cara. Até porque você estava por perto quando aconteceu. Abraços, Jeremias.”

CAPÍTULO XV

Era normal, àquela hora da tarde, a neblina envolver os morros ao redor. Às vezes, o tempo não abria mais. Simplesmente anoitecia e pronto. Às vezes, o sol ainda dava sinal de vida, pouco antes de escurecer.

Jeremias estava sentado na porta da cozinha e se perguntava se, especificamente naquela tarde de maio, o sol ia ou não aparecer de novo, antes que anoitecesse.

Jeremias não estava muito longe da cidade à beira mar. Na verdade, estava bem próximo, a apenas algumas dezenas de quilômetros serra acima. Ele, contudo, sentia-se, na maior parte do tempo, há mil anos-luz de tudo aquilo que vivera antes e que o havia conduzido até àquele lugar, rodeado de morros e onde saber se o sol ia ou não voltar a aparecer, depois da neblina que costumava envolver as tardes cada vez mais frias, era uma das indagações mais importantes que se tinha fazer por ali, dia após dia.

E Jeremias começa a gostar que fosse assim, pelo menos por enquanto.

Por mais estranho que isso parecesse, Jeremias e Carlos nunca haviam ido até a Boca atrás de qualquer tipo de droga. Sempre arrumavam o que queriam através de rotas alternativas, e a cidade estava cheia delas na época. Aquela, porém, era uma emergência séria: há bastante tempo ninguém, absolutamente ninguém encontrava maconha nos lugares de costume, ou seja, na região vizinha à praia ou em bairros mais próximos, o que era uma grande novidade diante da habitual fartura que se revelava praticamente a cada esquina.

A situação estava tão séria que já havia gente fumando coisas bem estranhas, como incenso misturado com fumo de rolo, ban- chá , chá de artemísia e outras substâncias exóticas.  É lógico que o resultado disso eram grandes dores de cabeça e crises de vômito, embora houvesse pessoas que jurassem ficar ligadas.

Como não estavam acostumados a “negociar” por ali, já que ultimamente só freqüentavam a Boca por causa da recente obsessão pelos músicos que ainda resistiam tocando por lá, Jeremias e Carlos ficaram circulando de esquina em esquina sem estabelecer qualquer contato positivo. Mas logo descobriram que a “escassez” também havia atingido o “poor side of town”.

Isso ficou mais do que evidente quando um sujeito mais velho, dos seus 40 e poucos anos, se aproximou deles e perguntou se, “por acaso”, estavam procurando maconha. Diante da resposta óbvia, o sujeito disse que não tinha nada ali com ele, mas que sabia onde encontrar uma “boa quantidade”. Precisava de um carro para ir buscar a coisa. Se eles lhe dessem uma carona até o tal lugar, que ficava na cidade vizinha, ele lhes cederia, quer dizer, venderia uma “cara legal, a preço de custo”.

Havia algo meio suicida nas coisas que Jeremias e Carlos às vezes faziam, e aquela era certamente uma delas: se meter num carro com um sujeito desconhecido, com cara de bandidão, pra ir buscar maconha sabe-se lá aonde. Contudo, o tal instinto suicida, aliado a um certo prazer idiota pelo risco não calculado, fez com que aceitassem a proposta. Pra deixar a coisa um pouco mais, digamos, “emocionante”, o tal sujeito chamou um cara bem mais novo, quase um moleque, pra ir junto. Foi justamente esse moleque o motivo da preocupação de Jeremias assim que entrou com ele no banco de trás do carro, enquanto o tiozão se sentava na frente ao lado de Carlos, que estava ao volante.

O tiozão também parecia preocupado com o moleque, que levou um esporro logo que o carro começou a andar, por estar começando a enrolar um baseado bem ao lado de um carro de polícia estacionado no sinaleiro fechado em que também foram obrigados a parar. “Enrola essa porra quando a gente entrar na estrada, caralho!”, disse entre os dentes o tiozão. Foi exatamente o que o garoto fez assim que pegaram a pista rumo à cidade vizinha.

Jeremias procurou se acalmar um pouco. Afinal, na pior das hipóteses, depois de tanto tempo, iria fumar um fumo que não parecesse capim fedido. Essa inesperada onda de bom humor logo se dissipou, no entanto, quando o moleque lhe passou o baseado e ele sentiu o mesmo gosto de capim na boca. A única diferença é que este não era fedido, mas perfumado, o que não melhorava nem um pouco as coisas, já que pressentia uma dor de cabeça daquelas chegando em breve.

Se aqueles caras da Boca estavam fumando aquela merda, a situação estava mesmo crítica, pensou Jeremias, quando percebeu que Carlos reduziu a velocidade do carro ao divisar uma viatura da Polícia Rodoviária trafegando na pista um pouco mais à frente. Passaram pela viatura com a inocência de colegiais saindo de férias no carro do papai, ou pelo menos foi essa a imagem que Jeremias tentou manter na cabeça enquanto, lentamente, ultrapassavam a viatura.

“Olha aí, tenho que falar pra vocês porque não sou de ficar escondendo o jogo. Eu tô aqui coberto. Tava com a mão nele e ia puxar se os caras parassem a gente”. Com a camisa levantada, o tiozão mostrava a coronha de um revólver prateado que saía da sua cintura. Jeremias não sabia o que Carlos, ao volante, estava pensando naquele momento, mas, se tivesse de apostar, apostaria que ele estava pensando o mesmo que ele: “Ainda bem que não pararam a gente!”. Olhou para o garoto ao seu lado e ele também parecia estar tendo o mesmo pensamento.

“Vocês já ouviram falar do Miro, aquele jogador?”, emendou o tiozão. É claro que já tinham ouvido falar do Miro, um jogador que havia se tornado até meio famoso, quando jogava no time da cidade, pouco antes desse time entrar em sua fase áurea e se tornar mundialmente conhecido. “Pois é”, prosseguiu o tiozão, “o Miro se fodeu. Quando chegou a boa, ele já tava todo fodido, joelho estourado, muita cana na cuca, sabe como é. Não deu pra ele aproveitar a boa. Espirrou feio. É no bar dele que nós estamos indo  buscar a coisa.”

De repente, um flash em sua cabeça levou Jeremias de volta ao campo do time da cidade. Era de noite, os refletores estavam acessos, a grama parecia muito mais verde do que de costume. Jeremias e seu pai estavam bem junto ao alambrado e seu pai, apontando para um jogador que se encontrava bem próximo deles, pisando a grama muito verde do campo, disse: “Esse aí é o Miro, um leão. Não é de enfeitar muito. Não brinca em serviço, Joga pro time, não pra torcida.”

“Acho melhor vocês esperarem no carro”, ordenou o tiozão, quando Carlos, obedecendo às suas orientações, estacionou na frente de um boteco numa rua de terra, margeada por valas e mato alto. “Você também fica, caralho”, disse o tiozão ao garoto, que já havia descido e se preparava para acompanhá-lo ao bar mal iluminado do outro lado da rua. Jeremias, Carlos e o garoto ficaram ali, dentro do carro, esperando. “Porra, o Miro”, pensava Jeremias, enquanto os minutos pareciam demorar uma eternidade para passar.

Aliás, foram mesmo apenas alguns minutos que se passaram até o tiozão surgir de novo na porta do bar. Não parecia com pressa de chegar ao carro. O garoto logo sacou a situação: “Melou”. A viagem havia sido inútil. “Nem o Miro tem bosta nenhuma. Olha aí, pra vocês não ficarem segurando a brocha”, afirmou o tiozão, estendendo uma pequena porção de erva para o Carlos, uma porção mirrada do mesmo capim cheiroso que haviam fumado na vinda. Jeremias e Carlos agradeceram, trouxeram a dupla de volta à Boca e o tiozão, quando se despediu, disse: “Bom, de qualquer forma, valeu. Não consigo entender por que tá rolando essa escassez aí. Eu podia jurar que pelo menos o Miro tinha algum coisa. É, tá foda mesmo”.

Ainda levou algum tempo pra escassez na cidade acabar e nunca ninguém soube o que a motivou.

“Porra, o Miro!”

As coisas com Judite sempre foram complicadas. As trepadas, contudo, eram quase sempre ótimas. Agora Jeremias compreendia que as trepadas eram quase sempre ótimas porque Judite, naquela época, era a mulher que ele conhecia que melhor trepava. E por uma razão bem simples: era a mulher que ele conhecia que mais gostava de trepar, embora todas as outras achassem que trepavam melhor e gostavam mais de trepar do que Judite.

Ao mesmo tempo, as coisas eram sempre complicadas com Judite por outra razão também muito simples: Judite era apaixonada por Jeremias e Jeremias não só não era apaixonada por Judite como também, naquela época, não percebia que Judite era a mulher que melhor trepava porque era a mulher que mais gostava de trepar. Talvez, se tivesse percebido isso, então, as coisas com Judite poderiam ser menos complicadas, ou talvez, quem sabe, ele tivesse até se apaixonado um pouquinho por ela, ou pelo menos dado mais importância às trepadas que dava com ela.

Esses pensamentos borbulhavam na cabeça de Jeremias naquele momento, sentado na cama, em seu quarto, ao acordar no meio da noite, após um sonho que trouxera à sua mente lembranças da última trepada que tinha dado com Judite, muitos anos atrás.

Até hoje, Jeremias tinha a sensação de que ele e Judite, daquela vez, haviam participado de uma longa orgia envolvendo várias pessoas, embora tivesse certeza de que apenas os dois estavam trancados naquele quarto.  Aquela noite ficara semi-apagada durante anos na mente de Jeremias, certamente devido também à dolorosa ressaca que se seguiu quando o dia amanheceu.

Agora, ali no seu quarto, no meio da noite interrompida por aquele sonho, Jeremias já não sentia, obviamente, nenhum dos efeitos daquela terrível ressaca perdida no tempo e no espaço. Por isso, a lembrança de Judite fez com que ele se masturbasse violentamente e voltasse a dormir.

Jeremias não sabia direito como essas coisas começavam, mas sabia exatamente como elas terminavam: numa grande confusão. Era exatamente isso o que ele estava pensando enquanto observava Júlio trepando com aquela mulher já na casa dos 40, mãe de filhos adolescentes e esposa de um famoso cirurgião dentista da cidade. Tudo tinha começado porque ela, num período de crise no casamento, provocado principalmente por uma recente traição do marido, havia decidido “recuperar o tempo perdido”, tornando-se assídua freqüentadora da única casa noturna que apresentava regularmente shows de rock na cidade, até mesmo em dias de semana.

Foi num desses shows, numa quarta-feira qualquer, que Jeremias e Júlio, entediados com a banda meia-boca que se apresentava naquela noite, resolveram dar o fora mais cedo. Na porta, ao se dirigirem para o carro de Júlio, uma mulher, visivelmente bêbada, se aproximou e perguntou se eles lhe dariam uma carona. Júlio olhou para Jeremias e mandou que ela entrasse no carro. Naquele momento, eles realmente pensavam em deixar a mulher onde ela quisesse, para em seguida resolverem o que fazer – ou não fazer – naquele fim de noite idiota daquela quarta-feira idiota.

“E aí, você vão fazer o quê?”, perguntou a mulher.

“Nada. Vamos levar você. Aonde você quer ir?, respondeu perguntando Júlio.

“Ah, não sei. Eu vou aonde vocês forem”, continuou a mulher.

“Mas nós não vamos a lugar nenhum”, retrucou Jeremias.

“Ah, então eu também vou. Olha, eu tenho um pouco de coca aqui. Vocês querem cheirar comigo?”, ofereceu a mulher.

Primeiro, sem quase respirar entre os seguidos goles de uísque que ela trazia dentro de uma garrafinha de metal envolvida em couro, ela contou a “história da sua vida”, resumida no fato de ter 46 anos, estar casada há 22 com o tal cirurgião dentista, ter quatro filhos e estar puta da vida com a traição do marido “filho da puta que trepa com uma menininha que tem quase a idade da nossa filha mais velha”.

Dito isso, ela aspirou a última carreira e perguntou se Jeremias e Júlio não gostariam de trepar com ela. Antes que qualquer dos dois pudesse esboçar qualquer reação, a mulher, revelando uma surpreendente habilidade e desembaraço para a esposa de um cirurgião dentista mãe de quatro filhos, agarrou, com cada uma das mãos, os respectivos pintos de Jeremias e Júlio, por cima das respectivas calças. Em breve, os três estavam nus e fazendo o que seria de se esperar de três pessoas nuas naquele estado.

Alguns meses depois, Jeremias viu a mulher daquela noite comprando frutas com o marido cirurgião dentista famoso numa feira de sábado. Ao que parece, a crise conjugal tinha sido contornada. Jeremias ficou se perguntando o que aquela noite com ele e Júlio tinha significado na vida daquela mulher, contribuindo ou não para que o casal superasse a sua pane matrimonial.

Então Jeremias se lembrou que houve um determinado período, naquela época em, que várias mulheres “maduras” e, na maior parte das vezes, “bem casadas” parecem ter enlouquecido. Talvez fosse alguma coisa no ar, pensou ele.

CLIQUE ABAIXO PARA ACESSAR OS CAPÍTULOS ANTERIORES






JR Fidalgo: um jornalista
que tem preguiça de perguntar,
um escritor que não tem saco
pra escrever e um compositor
que não sabe tocar.

(mas que, mesmo assim,
já escreveu três romances
e uma quantidade considerável
de canções ao longo
dos últimos 45 anos)

No comments:

Post a Comment