por Luís Mendonça
(de Lisboa) para
Lembro-me
das palavras de Louis Garrel durante a apresentação, no LEFFest, do esquecível “Un
été brûlant” (2011) perante uma plateia de jovens histéricas que ansiavam
deitar os olhos – e quiçá as mãos – no produto mais hot do cinema europeu: “o
meu pai é um homem da velha guarda. Ele ainda acredita que é possível morrer
por amor”. Parafraseio de memória estas palavras porque me parece que o
discurso amoroso de Garrel, o pai, habita intensamente esse “ainda”. Ele
resiste, quer faça chuva quer faça sol, à ideia de que o nosso mundo
sentimental e amoroso se desmoronou por completo e que, portanto, se tornou
caduco, irrelevante. Se o amor ainda desempenha um papel na nossa vida, o
cinema tem a missão de repetir as suas narrativas, mesmo as mais depauperadas
por palavras e gestos mil vezes ensaiados, ditos ou sugeridos. A reincidência
de temas, movimentos, obsessões em Garrel está em absoluta harmonia com a
circularidade do próprio discurso amoroso, com a sua insistente incapacidade de
se resolver a si mesmo como um jogo de sudoku. Ainda se pode morrer por amor?
Garrel diz que sim, tal como diz que é possível filmar, a preto-e-branco, o mal
au coeur com uma seriedade antiga, “passada”, sem com isso parecer velho,
tornando-se, com isso, a coisa mais urgente e revigorante que podemos encontrar
nas salas de cinema.
O
anacronismo de Garrel permite-nos aceder mais directamente ao essencial do seu
cinema: sim, a tecnologia não aparece com grande protagonismo no mundo das suas
personagens, ou pelo menos não aparece “como um problema” – ainda que ela seja
uma ferramenta que Garrel não ignora – e sim, o amor não se tornou descartável,
coisa de one-night stands, para viver alarve e levianamente sem culpa e sem
dor. Há em “Amante Por Um Dia” (L’amant d’un jour, 2017) um momento subtil, mas
paradigmático disto. Ele é protagonizado por Jeanne, personagem interpretada
pela filha de Philippe Garrel (a encantadora Esther Garrel) que agonia em casa
do pai por causa do rompimento com “o único homem que verdadeiramente amou”.
Ela diz à nova amante do pai, Ariane (fixe o nome, porque o rosto está fixado:
Louise Chevilotte), que nunca foi para a cama só por ir, por prazer e mais
nada, salvo talvez uma vez. Ariane fica surpreendida com a resposta. Veremos
que ambas têm uma relação quase oposta com o sexo, e com o amor, mas
fundamentalmente é na resposta de Jeanne que o cinema de Garrel encontra o seu
espelho. Não é que haja respostas certas para as questões do coração, mas é
esta a noção de amor que enche e mais inflama por dentro o universo sentimental
de Garrel, ou dos Garrel.
Sabemos
como o cinema de Garrel vive assombrado pelo fantasma das mulheres que tão
intensamente amou: acima de tudo, Nico e Jean Seberg. “Amante Por Um Dia” bebe
do veneno, da dor e da doçura que caracterizam alguns dos filmes mais remotos
de Garrel, desde logo, “Les hautes solitudes” (1974). A coabitação da amante do
pai e a sua filha de coração destroçado convida a um regresso a esse mundo
vagamente mizoguchiano em que as mulheres sofrem, de mãos dadas, na ausência
dos homens. A empatia e solidariedade femininas são filmadas com um tal
cuidado, devoção e, a palavra é essa, é sempre essa, abnegado amor pela câmara
de Garrel que nos sentimos inteiramente – que nos sentimos inteiros, leia-se –
entre o mundo das personagens. Uma das críticas possíveis a serem feitas a este
filme é que se concentra menos do que devia nesta relação feminina, o lugar
mais íntimo, do mais íntimo enlace e solidariedade, que “Amante Por Um Dia”
partilha connosco. A narrativa dos (des)amores de Ariane e a sua relação
turbulenta com o pai de Jeanne é muito menos interessante do que os rostos,
gestos e palavras trocados por estas duas mulheres, sensivelmente com a mesma
idade, uma no papel de filha, outra no papel de “nova mãe”, que se encontram
acidentalmente no tempo para falar e tratar os assuntos, mais ou menos reais,
mais ou menos fantasmáticos, do coração.
Mas
não há só altas solidões aqui. Também há festa, rodopio, inocente embriaguez.
Uma festa de ligeira e frágil alegria que, colocada no meio do funesto
turbilhão amoroso, me fez pensar em “Amante Por Um Dia” como sucessor de “I
fidanzati” (1963) de Ermanno Olmi ou, porque desperta o lado mais etéreo do
desejo quando jovem, como eco de “Les Amants” (Os Amantes, 1958) de Louis Malle.
Garrel sempre me pareceu um cineasta pouco interessado no sexo. Sempre preferiu
mostrar amantes a falar, a andar e a sonhar em conjunto. Em “Amante Por Um Dia”
ele filma o sexo de frente, mas sem inventividade, de modo repetitivo, mecânico
e dramaticamente desajeitado. É importante que tenha sido assim, porque só por
via deste contraste acedemos à jouissance da cena do baile. Rapazes e raparigas
dançam “à antiga”: de corpos encostados, trocam pequenas carícias, segredam
palavras que não ouvimos, pelo menos as que são ditas com a boca, porque há
outras, bem audíveis, ditas com os olhos. A coreografia é de uma candura rara,
sob o tema musical de Jean-Louis Aubert (com letra de Michel Houellebecq), que
rouba à cena o seu som natural. Em Garrel, neste Garrel, a volúpia no amor não
está no sexo, mas na dança. Este é um momento pleno desse anacrónico e
refrescante sentimento de amor que revela, mais uma vez, Philippe Garrel como o
mais relevante “educador sentimental” dos nossos dias.
AMANTE POR UM DIA
(L'Amant D'Un Jour, 2017, 76 minutos)
Roteiro e Direção
Phillipe Garrel
Elenco
Eric Caravaca
Esther Garrel
Louise Chevillotte
Cotação
em cartaz no Cinespaço Miramar Shopping (Santos)
Esther Garrel
Louise Chevillotte
Cotação
em cartaz no Cinespaço Miramar Shopping (Santos)
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