A BAGUNÇA TODA... QUEM SABE
Subi seis lances de escada
até meu pequeno quarto mobiliado
abri a janela
e comecei a jogar fora
as tais coisas mais importantes na vida
Primeiro, a Verdade, ganindo como um dedo-duro:
“Não! Direi coisas terríveis de você!”
“Ah, é? Não tenho nada a esconder... FORA!”
Depois, Deus, assombrado, corado e choroso de
espanto:
“Não é culpa minha! Não sou a causa de tudo isso!”
“FORA!”
Depois o Amor, aliciando subornos: “Você não
conhecerá a impotência!
As garotas da capa da Vogue, todas suas!”
Apertei sua bunda gorda e gritei:
“Seu destino é um desvalido!”
Peguei a Fé, a Esperança e a Caridade
as três juntas abraçadas:
“Você não vai sobreviver sem nós!”
“Estou enlouquecendo com vocês! Tchau!”
Depois a Beleza... Ah, a Beleza –
Tão logo a levei até a janela
disse: “Você eu amei mais na vida
... mas é uma assassina; a Beleza mata!”
Sem querer realmente atirá-la
desci correndo as escadas
chegando a tempo de apanhá-la
“Você me salvou!” sussurrou
Coloquei-a no chão e disse: “Anda.”
Subi de volta as escadas
procurei o dinheiro
não havia dinheiro pra jogar fora.
Só restava a Morte no quarto
escondida atrás da pia da cozinha:
“Não sou real!” gritou
“Não passo de um rumor espalhado pela vida...”
Atirei-a fora com a pia e tudo, sorrindo
e então notei que o Humor
era tudo que havia restado –
Tudo que pude fazer com o Humor foi dizer:
“Com a janela fora pela janela!”
tradução: Márcio Simões
GREGORY
CORSO por PATTI SMITH
Gregory
Corso, a flor da Geração Beat, se foi. Colhido para prover a graça do jardim do
Papai e todos no céu estão encantados e admirados. Encontrei Gregory a primeira
vez na frente do Hotel Chelsea. Suspendeu o casaco e baixou as calças,
expelindo expletivos Latinos. Vendo minha cara de espanto, sorriu e disse, “Não
estou mostrando a bunda pra você querida, estou mostrando pro mundo”. Me lembro
de pensar, sorte do mundo de ser exposto aos glúteos de um poeta de verdade.
E
isso ele era. Todos que têm histórias, reais ou embelezadas, das legendárias
travessuras de Gregory e de sua caótica indiscrição têm igualmente histórias de
sua beleza, remorso e generosidade. Ele me notou de maneira carinhosa no início
dos anos 70 porque o espaço em que eu vivia era similar ao dele – pilhas de
papéis, livros, sapatos velhos, mijo em xícaras – uma desordem mortal. Fomos
parceiros de crimes perturbadores durante leituras de poesia particularmente
tediosas em St. Mark. Embora ralhassem conosco com razão, Gregory me aconselhou
a espetar com minhas armas irreverentes e a exigir mais desses que se sentam
diante de nós se dizendo poetas.
E
sem dúvida Gregory era um poeta. A poesia era sua ideologia, e os poetas seus
santos. Havia sido chamado e sabia disso. Talvez seu único dilema fosse às
vezes perguntar, Por que, Por que ele? Nasceu em Nova York, em 26 de março de
1930. Sua jovem mãe o abandonou. O Garoto foi da casa adotiva ao reformatório e
à prisão. Teve pouca educação formal, mas sua educação autodidata era
ilimitada. Abraçou os Gregos e os Românticos, e os Beats o abraçaram, colocando
folhas de louro em seus negros cachos rebeldes. Kerouac o sagrou cavaleiro como
Raphael Urso, foi a alegria e orgulho deles e também sua mais provocativa
consciência.
Nos
deixou dois legados: um corpo de obra destinado a durar pela sua beleza,
disciplina e influente energia, e suas qualidades humanas. Era meio Peter Rose,
meio Percy Bysshe Shelley. Podia ser um rebelde explosivo, beligerante e
desafiador, e ao mesmo tempo ingênuo como um garoto, humilde e cheio de
compaixão. Estava sempre querendo se desculpar, compartilhar seus conhecimentos
e aberto a aprender. Me lembro de vê-lo sentado ao lado da cama de Allen
Ginsberg quando ele estava morrendo. “Allen está me ensinando a morrer”, dizia.
No
começo do verão seus amigos se reuniram para lhe dizer adeus. Sentamos ao lado
da sua cama na Horatio Street em silêncio. A noite cheia de estranhas
correspondências. Uma filha que ele nunca tinha conhecido. Um mecenas de muito
longe. Um jovem poeta aos seus pés. Numa tela sem som, Pull My Daisy, de Robert
Frank, divulgado abertamente na TV pública – sem consciência de sua sincronia
mística. Imagens dos “Papais”, jovens e loucos, preto e branco. Fotos de Allen
afixadas na parede. O modesto quarto dominado pela poltrona de Gregory em toda
sua glória surrada. Quantos sonhos pontuados pela fumaça dos cigarros. Ele
estava morrendo. Todos dissemos adeus.
Mas
Gregory, talvez pressentindo a devoção ao seu redor, tomou parte num verdadeiro
milagre católico. Levantou-se. E foi reminiscências adentro o suficiente para
ouvirmos sua voz, sua gargalhada, e algumas bem-vindas obscenidades. Pudemos
escrever poemas e cantar para ele, assistir futebol e ouvi-lo recitar Blake.
Ainda ficou aqui o suficiente para viajar até Minneapolis para encontrar sua
filha, ser um rei entre crianças, ver outro outono, outro inverno e outro
século. Allen o ensinou a morrer. Gregory nos lembrou de como viver e estimar a
vida antes de nos deixar uma segunda vez.
No
fim de seus dias, ainda sofria de um tormento de poeta jovem – o desejo de
atingir a perfeição. E na morte, como na arte, vai atingir. A luz fresca
derrama. Os garotos da rodovia o guiam. Mas antes de ascender a algum cartonado
clarão sagrado, Gregory, sendo ele mesmo, suspende seu casaco, baixa suas
calças e conforme expõe seus glúteos de poeta pela última vez, grita, “Ei,
cara, beije minha margarida”. Ah Gregory, os anos e pétalas voam.
Bem nos quis. Mal nos quis.
Bem nos quis.
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