CAPÍTULO
XXII
Um
amigo, que lera algumas coisas que ele escrevera, lhe disse: “Você parece
alguém que, sentando à beira do cais, aguarda a chegada de um navio que nunca
partiu.”
Naquele
fim de tarde, olhando da janela do quarto os navios e barcos que passavam, era
impossível não pensar em chegadas e partidas.
Um
poeta, que já morrera e que, como ele, sempre morara naquela cidade, também
vivia lhe falando sobre sua atração por navios e pelo cais do porto.
Um
de seus poemas mais famosos falava justamente da angústia de ser tão fascinado
pelo ir e vir das embarcações, sentindo, lá no fundo, que nunca partiria para
lugar algum, pois suas raízes estavam por demais fincadas naquela terra
visitada por tantos navios.
O
poeta cumpriu seu destino. Morreu sem partir, mas passou adiante a fascinação,
a mesma fascinação que ele sempre sentia, quando, da janela, como acontecia
naquele momento, acompanhava o vai-e-vem dos navios no mar.
“Um
velho sujo demais
Sentado
à beira do cais
E
ninguém olha pra mim
Crianças
brincam no escuro
E
se arriscam no mar
Os
homens perdem suas almas
E
já não podem voltar
Velhos
clandestinos já não têm valor
Não
há mais promessas seja onde for.”
A
noite já havia caído e os navios que aguardavam na barra a ordem para atracação
piscavam suas luzes na linha escura do horizonte distante.
Ele
não era um poeta como o poeta que morrera.
Viveram
épocas diferentes, viram navios diferentes, amaram mulheres diferentes, devem
ter sonhado sonhos diferentes, mas eram igualmente fascinados pelo ir e vir das
embarcações no mar que cercava a cidade.
Ainda
debruçado na janela, ele se perguntava quantas pessoas viviam hoje, naquela
cidade, que ainda se fascinavam com o vai-e-vem dos navios, ou mesmo percebiam
a presença deles ao largo da praia. Muito poucas, com certeza.
Mas
que importância tinha isso, se o navio que ele aguardava chegar nunca havia
partido?
João
sentiu um arrepio ao ler aquilo. Não se
parecia com absolutamente nada do que Jeremias escrevera antes. Não era apenas
o jeito de escrever, não eram as palavras usadas, nem mesmo o ritmo. Era algo
além disso. Era, talvez, a forma como Jeremias se referia à cidade. Havia ali
algo meio épico e, ao mesmo tempo, meio trágico. Definitivamente, aquilo não
era a “cara” de Jeremias e, além disso, quebrava totalmente a seqüência das
coisas que ele vinha abordando. Bem, na verdade, falar de “seqüência” no que se
referia aos textos que Jeremias mandava beirava o absurdo, já que desde o
início ele parecia fazer questão de, premeditadamente, quebrar qualquer
cronologia em relação aos fatos que vinha relatando. No entanto, até então,
tudo o que abordava pertencia, sem dúvida, a um mesmo universo, ou seja,
aquelas coisas haviam acontecido num tempo e espaço comuns, ou pelo menos era
isso que Jeremias dava a entender. Aquele novo texto, porém, parecia ter sido
escrito a partir de um outro lugar e remetendo a uma outra época.
A
impressão era de que Jeremias escrevera aquilo não baseado em imagens do
passado guardadas em sua cabeça, mas realmente a partir do que seus olhos viam,
no momento em que escrevera, na baía da cidade, com seus barcos e navios em
constante movimento sobre o mar.
“Ainda
debruçado na janela, ele se perguntava quantas pessoas viviam hoje, naquela
cidade, que ainda se fascinavam com o vai-e-vem dos navios, ou mesmo percebiam
a presença deles ao largo da praia. Muito poucas, com certeza.”
Foi
isso, foi essa frase, mais do que qualquer outra, a pedra de toque que deixou
tudo claro. Ao contrário de todos os textos que enviara antes, Jeremias,
naquele último texto, estava começando, pela primeira vez, a contar a sua
história sem precisar mais da intermediação de alguém. Era como se, de repente,
ele tivesse descoberto o caminho das pedras.
O
mais interessante – ou até certo ponto assustador – era que, ao ler pela
primeira vez o texto que Jeremias acabara de lhe mandar, João não percebeu nada
disso a princípio. Embora tenha até se emocionado com o que lera, fato bem
incomum de acontecer quando tomava contato com os textos originais dos e-mails,
mecanicamente se preparou para trabalhar em cima do novo texto, torná-lo mais
claro, mais leve, trocar a primeira pessoa sempre usada por Jeremias nos
originais pela terceira pessoa que João utilizava na narração da história,
enfim, moldar mais aquele fragmento ao estilo que vinha tentando imprimir ao
material já formatado.
Só
quando começou a tentar mexer no texto é que percebeu que não havia
absolutamente nada a fazer ali, estava tudo perfeito, e não apenas perfeito,
mas impregnado de uma beleza, de uma poesia que ele jamais imaginara que
Jeremias fosse capaz de expressar. Jeremias havia dado um passo fundamental ao
escrever aquilo. Mas um passo fundamental exatamente para onde? E, afinal, se Jeremias não precisava mais de
alguém para contar a história que queria contar, qual seria a função de João
dali para a frente?
Mas
o que mais incomodava João, após ler aquele texto, era uma sensação maluca de
que, naquele e-mail, Jeremias não estava mais falando de si, mas de alguma
outra pessoa. Era como se Jeremias tivesse desistido de contar a sua história
e, de repente, tivesse resolvido contar a história de outra pessoa. Mas, se
fosse por aí, de quem era a história que Jeremias estava começando a contar
agora?
CAPÍTULO
XXIII
Era
óbvio que alguma coisa tinha acontecido, mas ele não fazia idéia do que se
tratava.
Era
óbvio também que tinha a ver com aquelas conversas intermináveis com aqueles
dois homens, conversas que avançavam madruga adentro e nas quais ele contava
tudo o que havia acontecido na sua vida até ali, tentando ser o mais honesto
possível a respeito de tudo.
Era
óbvio também que tinha a ver com colocar seus joelhos no chão e rezar, sem
saber para quem e sem nada pedir.
Era
óbvio também que tinha a ver com aquela densa neblina que encobria os morros
quase todas as tardes e deixava a grama encharcada quando ia embora.
Era
óbvio também que tinha a ver com como as estrelas brilhavam no céu escuro e
pareciam eletrificar o ar gelado e limpo daquele inverno.
Era
óbvio que tinha a ver com todas essas coisas e com muitas outras.
Mas
tudo aquilo, na verdade, estava envolvo num grande e total mistério, já que,
apesar de todos os motivos, não fazia o mínimo sentido ter acontecido, embora
tivesse acontecido.
E
ele não tinha a mínima dúvida a respeito disso.
Sair
de lá foi difícil. Não, na verdade não tinha sido fácil, bastou sair pelo
portão. Difícil foi se acostumar com o mundo lá fora. O mundo continuava
exatamente o mesmo, mas ele havia mudado, ou pelo menos achava que estava
enxergando as coisas de outra maneira.
E
a primeira dificuldade foi justamente essa: a sua nova maneira de enxergar as
coisas em contraposição à velha maneira pela qual as pessoas pareciam continuar
enxergando as coisas.
A
sensação, nos primeiros dias, era de que ele não conseguia entender quase nada
do que as pessoas falavam e as pessoas não entendiam quase nada do que ele
falava.
E
havia também o medo, um medo imenso de que, no final das contas, tudo aquilo
não passasse de mera ilusão, como das outras vezes em que saía de lugares
parecidos com aquele em que estivera nos últimos meses.
Talvez
nada de especial tivesse acontecido lá. Talvez, como o mundo que encontrara lá
fora, ele também continuasse exatamente igual e, portanto, logo estaria de
volta ao inferno de sempre.
Quem
poderia garantir o contrário?
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