Monday, May 21, 2018

JOÃO e JEREMIAS - A PORRA DA HISTÓRIA (um folhetim beat de JR Fidalgo - 13ª de 16 partes)



CAPÍTULO XXII

Um amigo, que lera algumas coisas que ele escrevera, lhe disse: “Você parece alguém que, sentando à beira do cais, aguarda a chegada de um navio que nunca partiu.”

Naquele fim de tarde, olhando da janela do quarto os navios e barcos que passavam, era impossível não pensar em chegadas e partidas.

Um poeta, que já morrera e que, como ele, sempre morara naquela cidade, também vivia lhe falando sobre sua atração por navios e pelo cais do porto.

Um de seus poemas mais famosos falava justamente da angústia de ser tão fascinado pelo ir e vir das embarcações, sentindo, lá no fundo, que nunca partiria para lugar algum, pois suas raízes estavam por demais fincadas naquela terra visitada por tantos navios.

O poeta cumpriu seu destino. Morreu sem partir, mas passou adiante a fascinação, a mesma fascinação que ele sempre sentia, quando, da janela, como acontecia naquele momento, acompanhava o vai-e-vem dos navios no mar.

“Um velho sujo demais
Sentado à beira do cais
E ninguém olha pra mim
Crianças brincam no escuro
E se arriscam no mar
Os homens perdem suas almas
E já não podem voltar
Velhos clandestinos já não têm valor
Não há mais promessas seja onde for.”


A noite já havia caído e os navios que aguardavam na barra a ordem para atracação piscavam suas luzes na linha escura do horizonte distante.

Ele não era um poeta como o poeta que morrera.

Viveram épocas diferentes, viram navios diferentes, amaram mulheres diferentes, devem ter sonhado sonhos diferentes, mas eram igualmente fascinados pelo ir e vir das embarcações no mar que cercava a cidade.

Ainda debruçado na janela, ele se perguntava quantas pessoas viviam hoje, naquela cidade, que ainda se fascinavam com o vai-e-vem dos navios, ou mesmo percebiam a presença deles ao largo da praia. Muito poucas, com certeza.

Mas que importância tinha isso, se o navio que ele aguardava chegar nunca havia partido?

João sentiu um arrepio ao ler aquilo.  Não se parecia com absolutamente nada do que Jeremias escrevera antes. Não era apenas o jeito de escrever, não eram as palavras usadas, nem mesmo o ritmo. Era algo além disso. Era, talvez, a forma como Jeremias se referia à cidade. Havia ali algo meio épico e, ao mesmo tempo, meio trágico. Definitivamente, aquilo não era a “cara” de Jeremias e, além disso, quebrava totalmente a seqüência das coisas que ele vinha abordando. Bem, na verdade, falar de “seqüência” no que se referia aos textos que Jeremias mandava beirava o absurdo, já que desde o início ele parecia fazer questão de, premeditadamente, quebrar qualquer cronologia em relação aos fatos que vinha relatando. No entanto, até então, tudo o que abordava pertencia, sem dúvida, a um mesmo universo, ou seja, aquelas coisas haviam acontecido num tempo e espaço comuns, ou pelo menos era isso que Jeremias dava a entender. Aquele novo texto, porém, parecia ter sido escrito a partir de um outro lugar e remetendo a uma outra época.

A impressão era de que Jeremias escrevera aquilo não baseado em imagens do passado guardadas em sua cabeça, mas realmente a partir do que seus olhos viam, no momento em que escrevera, na baía da cidade, com seus barcos e navios em constante movimento sobre o mar.

“Ainda debruçado na janela, ele se perguntava quantas pessoas viviam hoje, naquela cidade, que ainda se fascinavam com o vai-e-vem dos navios, ou mesmo percebiam a presença deles ao largo da praia. Muito poucas, com certeza.”

Foi isso, foi essa frase, mais do que qualquer outra, a pedra de toque que deixou tudo claro. Ao contrário de todos os textos que enviara antes, Jeremias, naquele último texto, estava começando, pela primeira vez, a contar a sua história sem precisar mais da intermediação de alguém. Era como se, de repente, ele tivesse descoberto o caminho das pedras.

O mais interessante – ou até certo ponto assustador – era que, ao ler pela primeira vez o texto que Jeremias acabara de lhe mandar, João não percebeu nada disso a princípio. Embora tenha até se emocionado com o que lera, fato bem incomum de acontecer quando tomava contato com os textos originais dos e-mails, mecanicamente se preparou para trabalhar em cima do novo texto, torná-lo mais claro, mais leve, trocar a primeira pessoa sempre usada por Jeremias nos originais pela terceira pessoa que João utilizava na narração da história, enfim, moldar mais aquele fragmento ao estilo que vinha tentando imprimir ao material já formatado.

Só quando começou a tentar mexer no texto é que percebeu que não havia absolutamente nada a fazer ali, estava tudo perfeito, e não apenas perfeito, mas impregnado de uma beleza, de uma poesia que ele jamais imaginara que Jeremias fosse capaz de expressar. Jeremias havia dado um passo fundamental ao escrever aquilo. Mas um passo fundamental exatamente para onde?  E, afinal, se Jeremias não precisava mais de alguém para contar a história que queria contar, qual seria a função de João dali para a frente?

Mas o que mais incomodava João, após ler aquele texto, era uma sensação maluca de que, naquele e-mail, Jeremias não estava mais falando de si, mas de alguma outra pessoa. Era como se Jeremias tivesse desistido de contar a sua história e, de repente, tivesse resolvido contar a história de outra pessoa. Mas, se fosse por aí, de quem era a história que Jeremias estava começando a contar agora?

 
CAPÍTULO XXIII

Era óbvio que alguma coisa tinha acontecido, mas ele não fazia idéia do que se tratava.

Era óbvio também que tinha a ver com aquelas conversas intermináveis com aqueles dois homens, conversas que avançavam madruga adentro e nas quais ele contava tudo o que havia acontecido na sua vida até ali, tentando ser o mais honesto possível a respeito de tudo.

Era óbvio também que tinha a ver com colocar seus joelhos no chão e rezar, sem saber para quem e sem nada pedir.

Era óbvio também que tinha a ver com aquela densa neblina que encobria os morros quase todas as tardes e deixava a grama encharcada quando ia embora.

Era óbvio também que tinha a ver com como as estrelas brilhavam no céu escuro e pareciam eletrificar o ar gelado e limpo daquele inverno.

Era óbvio que tinha a ver com todas essas coisas e com muitas outras.

Mas tudo aquilo, na verdade, estava envolvo num grande e total mistério, já que, apesar de todos os motivos, não fazia o mínimo sentido ter acontecido, embora tivesse acontecido.

E ele não tinha a mínima dúvida a respeito disso.


Sair de lá foi difícil. Não, na verdade não tinha sido fácil, bastou sair pelo portão. Difícil foi se acostumar com o mundo lá fora. O mundo continuava exatamente o mesmo, mas ele havia mudado, ou pelo menos achava que estava enxergando as coisas de outra maneira.

E a primeira dificuldade foi justamente essa: a sua nova maneira de enxergar as coisas em contraposição à velha maneira pela qual as pessoas pareciam continuar enxergando as coisas.

A sensação, nos primeiros dias, era de que ele não conseguia entender quase nada do que as pessoas falavam e as pessoas não entendiam quase nada do que ele falava.

E havia também o medo, um medo imenso de que, no final das contas, tudo aquilo não passasse de mera ilusão, como das outras vezes em que saía de lugares parecidos com aquele em que estivera nos últimos meses.

Talvez nada de especial tivesse acontecido lá. Talvez, como o mundo que encontrara lá fora, ele também continuasse exatamente igual e, portanto, logo estaria de volta ao inferno de sempre.

Quem poderia garantir o contrário?




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JR Fidalgo: um jornalista
que tem preguiça de perguntar,
um escritor que não tem saco
pra escrever e um compositor
que não sabe tocar.

(mas que, mesmo assim,
já escreveu três romances
e uma quantidade considerável
de canções ao longo
dos últimos 45 anos)

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