Os
duendes sorriam de orelha a orelha enquanto se mantinham a postos para tirar as
dúvidas. Quanto custaria para manter a pose? Quanto custaria para me exibir na
vitrine? Eram dias de promoção antes de inaugurar a morada do monstro. Os
duendes não precisavam laçar ninguém. O feitiço da vaidade fazia efeito por si
só. Alguns dos enfeitiçados já vestiam a fantasia, talvez cientes de que ficar
na fila para a matrícula era algum tipo de exercício físico.
A
fila de candidatos crescia embaixo do sol forte. Todos sonhando em entrar no
aquário, a toca azulada e envidraçada onde seriam vistos, quem sabe admirados,
provavelmente invejados na busca da perfeição da forma. Pertencer era a ordem.
Ser reconhecido, uma obrigação. Gerar likes virtuais e reais, uma consequência
feliz.
Os
duendes uniformizados, exceto pelo capuz, pois o calor castigava, sabiam que a
maioria ali tostava ao ar livre para ir com outras Marias. Se entrassem três
vezes na toca do monstro depois de assinar o contrato, o milagre se
materializaria naqueles salões, entre esteiras e bicicletas paralisadas na
utopia do corpo sem retoques.
Os
duendes não se importavam. O pacto com o monstro se dava em três versões: 30
dias, 90 dias ou seis meses. Não é à toa que o aquário ficava na encruzilhada
com o canal, na bifurcação de duas vias mais rápidas do que bicicletas de
spinning, onde milhares de pessoas comentariam sobre a imponência do templo da
saúde, qualidade de vida ou quaisquer outras expressões que traduzem a ditadura
da aparência.
O
monstro azul era blue no rastro atrás da fachada. O blue na versão do gênero
musical do sul dos Estados Unidos, o da tristeza, da melancolia, do final
silencioso de uma história que merecia ser cantada por menestréis caiçaras ou
chorada por carpideiras da vizinhança.
O
monstro azul levou quatro meses para erguer sua nova casa. Antes disso,
enterrou três residências em duas semanas. Décadas de história em 15 dias.
Nascer sempre demorou mais do que morrer, para qualquer espécie, até as que
distorcem a imagem alheia.
No
final do ano passado, as bolas de ferro e os martelos derrubaram paredes no
atacado. As árvores que mantinham o ritmo dos pássaros que desfilam pela rua
Frei Francisco Sampaio tombaram e criaram um buraco cinza no tapete verde do
Embaré. Uma das casas, hoje foto encostada em qualquer gaveta de novo rico, não
somente desapareceu do horizonte, mas se calou com a mudança de maritacas e
outros pássaros que gritavam e conversavam sob autorização da lei. Os sons que
me aproximavam do bosque foram sufocados pelas euforias dos novos bichos que
precisam parecer felizes.
O
monstro é bom de propaganda. Enquanto subia a carcaça quadrada do santuário,
ele gargalhava com a gente que passava, olhava e acreditava que seria mais uma
farmácia, um primo que parece se multiplicar nas esquinas de Santos cada vez
que chove. Expectativa sempre aumentou a importância de quem chega e se
estabelece.
O
monstro não é um estranho no ninho. Ele enfrenta seus irmãos que distribuem
sorrisos e sonhos em outros cantos da cidade. Esmaga com o olhar os pequenos,
nunca vistos como adversários, mas como efeito colateral do progresso sem
ordem. O monstro é filho da cultura do shopping, onde prevalece o padrão, onde
impera a impessoalidade, salvo exceções e resistências pontuais.
O
monstro alterou a paisagem de uma cidade que esconde seu provincianismo em
capas metálicas, pré-fabricadas e envidraçadas. Dentro delas, o discurso da
modernidade, da tecnologia como centro do mundo, da autopromoção como fala
contínua. Uma modernidade tão líquida e fugaz quanto o suor que escorre
daqueles que assam na fila para entrar, voluntariamente, na toca do aquário
azul.
(publicado originalmente em CONVERSAS E DISTRAÇÕES em 12 de Março de 2018)
Marcus Vinícius Batista
é o cronista santista número um, ponto.
É autor de "Quando Os Mudos Conversam"
Realejo Livros)
coletânea de crônicas escritas
entre 2007 e 2015.
Atendendo a um pedido
de LEVA UM CASAQUINHO,
ele se dispôs a resgatar
algumas de suas crônicas favoritas
escritas nos últimos anos
para republicação no BAÚ DO MARCÃO.
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