Eccoci.
Sob uma arvore em Viale Turati. Mais ou menos uns 300 metros de alameda, na
calçada de um bar, grudadinha na rua principal. Sim, digamos que é a
Champs-Elysées de Lecco. Ok, pura sacanagem... Só que não.
O
verão esse ano encontra sérias dificuldades para se afirmar. Os ciclones são
frequentes e estão ameaçando a "bella stagione". Bela pros outros, eu
acho um horror. Quente demais com um mormaço killer!! O anti-ciclone africano,
ou o dos Açores, lambe a região mediterrânea com muito esforço. O italiano em
geral ama falar do tempo. Nessa estação, vivemos preocupados e ocupados com
os anticiclones quotidianamente. Eu já
estou viciada nisso. Todos eles tem nomes inspirados na mitologia grega ou
romana, o que torna o evento meteorológico de uma elegância quase cultural:
Annibale, Scipione, Caronte, Nerone, Caligola, Lucifero ou o Colosso dos
Desertos... Obviamente, os nomes já predizem o inferno dantesco que teremos de
afrontar. Pois é. Agora beiramos os 29°C, mas ainda chegaremos aos 38°, com
certeza. Eu sei, podem rir. E' fichinha comparado ao Rio. Mas aqui a umidade é
quase 90% e a gente fica pronta prá um harakiri...
Estou
bebendo um "spritz", que é o verdadeiro aperol italiano, com esse
produto altamente químico artificial-corantico que é o aperol, mais o pro-seco.
Na realidade, é uma bebida muito chulé, se pensarmos bem. Mas quem nao gosta?
Beber aqui na Italia é um evento. Muita coisa boa e sobretudo o café. Que eu já
tomei hoje de manhã. Olha quantos temos: café normal, café macchiato quente,
frio, com leite desnatado, com espuma, marroquino, correto, de orzo em xicara
pequena, em xicara grande, ginseng, café duplo, café longo, café curto, frio,
com creme, com gelo, shakerato, cappuccino claro, escuro, no vidro, na
porcelana, decafeinado, com leite desnatado, seco, com café quente e leite
frio, com chocolate, café com leite, todo frio ou só metade frio. Que
maravilha... ninguém se entedia por aqui. E ai de você se achar que um vale o
outro!! Nãooo! E' uma ofensa à bandeira nacional!!
Eu
odiava café. De qualquer jeito.
Hoje
é um vício. Tudo aqui vicia, cedo ou tarde.
Passear
na beira do Lago de Lecco vicia. O final da tarde vicia. Os barcos a vela
viciam. As badaladas dos sinos italianos viciam. Os pombos defecando em todos
os monumentos viciam. O amor então...mas esse fica pra próxima.
O
que mais me surpreende é quanto vicia também a vida pequena, estreita de uma
cidadezinha de menos de 50.000 habitantes! Também vicia, se você se adapta bem.
Sempre amei cidades pequenas. Já vivi na montanha, nos pré-alpes lombardos,
numa lugarzinho de 700 habitantes. Era praticamente um dormitório. As pessoas
desciam para trabalhar nos centros maiores. Mas é extremamente importante a
experiencia de vida num território limitado em extensão. Você é alguem com
nome, sobrenome, apelido, alcunha, identidade, referência. Nao que isso seja
imprescindível para sua vida mas é imprescindível para a dimensão de si mesmo!
Numa
cidade pequena, você se vê muito mais inserido no mundo circunstante do que
numa cidade grande, onde o ritmo psicológico e temporal exige maior velocidade.
A dimensão do tempo é outra. Tudo desacelera inevitavelmente. Como se nao
houvesse espaço nem mesmo para a pressa. Bom, eu a vivo assim. Posso ter que
fazer as coisas mais chatas do mundo, como ir à prefeitura, ao correio, refazer
documentos, pagamentos, compras, qualquer outra coisa que não seja um prazer
imenso, mas nunca deixo de olhar as montanhas que circundam a cidade inteira.
Todas as árvores, os pássaros, os sinos que tocam em campanários seculares, o
lago de Lecco na sua vastidão de águas, as gaivotas, os pombos. Ontem um pombo
quase pousou na minha cabeça. Levei susto e me maravilhei. Eles também tem
tempo pra isso. Até eles tem tempo.
Aqui
eu sou a francesa. Ou a brasileira. Ou a prima do Neymar (!!!!!)... A
escritora. A poetisa. Aquela que tinha o Café Blondel. A avó da cubaninha. Você
é tanta coisa. E essa dimensão de várias em uma só é muito Pessoa. E isso te dá
a cidade pequena.
O
unico problema é a mentalidade dos nativos. Esse sim é um pequeno problemão.
Mas fica pra próxima. Vale a pena, muito a pena, entender o universo psicológico
de quem vive esprimido entre as montanhas alpinas e o lago. Entender como essa
cidade nasceu, sua origem, sua tradição. Tudo isso explica uma certa limitação,
um certo materialismo, uma certa visão de vida quase banal, sem altos voos. Mas
também tem seu encanto.
Só
uma coisa foi muito difícil ultimamente: numa festa de rua, ha três dias atras,
entre músicas dos anos 70, 80 e 90, entre as milhares de músicas cubanas (como
diria minha irmã, você ouve uma musica cubana e já ouviu todas...), o dj tinha
à disposição so umazinha brasileira:
Michel Telò que cantava "ai se eu te pego..." Sim, tive que
beber um pouco mais do costume. E pensei ateéem fazer um livro: "Confesso
que bebi". E bebi muito. Mas dancei. Com duas salvadorenhas lindas, negras
como o ébano, e arrasamos com as nossas bundonas sudamericanas. Uma se chamava
Cherie e a outra Charlotte...ok, entendi tudo... mas nao tenho nenhum
preconceito. E elas nao estavam no horário de trabalho...
Ate
a próxima amici miei. Com mais consideraçoes de Lecco.
Bom
café da manhã pra todos. Um beijo.
Sole
Solange Menegale Piasentin nasceu no Rio de Janeiro e foi pra Brasilia aos 6 anos. Tem 58 anos. Cursou Letras na Unb, fez curso de extensão em Linguística na Universidade Clássica de Lisboa, professora de português e de italiano na UnB (Universidade de Brasília), funcionária no Consolado-Geral do Brasil em Milão (grandes merdas), e dedicou a vida toda à poesia, com livros publicados e vencedora de concursos em Roma e Pistoia. Vive na Itália ha 20 anos e hoje é proprietária/gestora do Café Blondel, um café literário que promove apresentações de livros, autores novos, peças de teatro, música, quartetos de jazz, duo de blues, encontros sobre mercado business, saúde, naturopatia, xamanismo, filosofia etc. De fato, faliu...
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