Agora era desfazer as malas e entrar no clima
londrino... que, diga-se de passagem, era de congelar. Adoro! Minutos após a
chegada na casa, conhecemos a Helena, de Floripa, e a Rhayza, mineirinha de
Uberlândia (que faz o melhor bolo de cenoura com cobertura de chocolate do
mundo!), duas meninas lindas e doces, que estavam no quarto em frente ao nosso,
e nos deram as boas-vindas. Em seguida, passeei um pouco com o Rodrigo pelas
redondezas, fizemos nossas primeiras compras no Sainsbury’s, supermercado que
nos fazia poupar muitas libras, já que os restaurantes de Londres eram um luxo
do qual não poderíamos desfrutar diariamente.
E mais gente foi chegando: a Tati, curitibana como o
Rodrigo, e que dividiria o quarto David Bowie conosco; e a Isabella, vinda de
Tocantins, que madrugaria comigo diariamente, pois iríamos toda manhã juntas
para a aula na Stafford House. Todos jovens, bonitos e cheios de gás. Eu, a
peça vintage, depois de um banho complicado (é um pouco complexo decifrar o
dialeto dos chuveiros ingleses, bem diferentes dos do Brasil) deitei cedo e
dormi feito uma pedra.
Ao longo do dia seguinte, eu, Tati e Rodrigo
decidimos conhecer o trajeto que teríamos que fazer diariamente, a partir da
segunda-feira, para ir às nossas escolas. Mesmo com a garoa que nos acompanhou
por quase todo o tempo, me apaixonava mais a cada passo dado na capital
inglesa. O povo de lá, ao contrário do que eu achava, é muito bem-humorado e
gentil, com raras exceções, que só confirmam a regra. Descobrimos estar
pertinho, então aproveitamos para conhecer uma London Eye* lacrimejante – ela
pela garoa, eu pela emoção de ver Londres lá de cima. Turistamos muito, até os
pés doerem.
Na volta para casa, ouvi um sotaque delicioso vindo
do andar de cima. Ao subir, vi um rapaz de costas conversando com as meninas do
quarto em frente ao meu. Assim que escutou meus passos, se virou e, com seus
olhos muito azuis e um sorrisão de menino, me deu um oi alegre que só, e que
volta à minha mente até hoje, sempre que nos falamos pelo whatsapp: “Sou o
Léo!”
De dentro do quarto, ouvi pela primeira vez a voz de
menina da Syl, namorada/amor da vida dele e que viria a ser meu xodó:
"Ôin!" Meu amor por eles foi à primeira vista. Não sei se porque
sinto que os conheço há muito tempo, se é por causa do sotaque nordestino que
me remete às minhas raízes, ou por conta da sintonia energética... O fato é que
eu olho para eles e vejo tanta beleza, muito além da física (embora eles sejam lindíssimos
fisicamente), que me encanto e reapaixono toda vez que os ouço e recebo as
últimas notícias direto de Maceió.
Todos decidimos descer, porque a Syl iria fazer o
jantar dela e do Léo e queríamos ouvir todos os detalhes da viagem que haviam
acabado de fazer por Paris, Amsterdam e Roma. Ali eu identifiquei de pronto um
“contador de causos”. Léo é engraçadíssimo contado as histórias e graças a ele
e à Syl, por várias noites ri até a barriga doer. A partir daquele instante,
nascia um hábito que nos permitiu criar o vínculo responsável por manter muitos
de nós sãos pelo período que ficamos longe de casa. Todas as noites nos
reuníamos na sala para compartilhar nossas experiências do dia, da vida, as
bobagens que pensávamos, as situações inusitadas e dramáticas, que logo viravam
piadas, e as agruras (que vou contar por aqui aos poucos, em outros textos).
Rodrigo logo percebeu isso e pediu: “gente, não podemos deixar de curtir esses
momentos... vamos fazer sempre um esforço para nos reunirmos toda noite?” Prometemos
a ele que sim. E cumprimos.
Em poucos dias, Bia e Fred chegaram e se uniram a
esse propósito. A Bia é paulista como eu, mas da cidade de Campinas. Meiguice
pura. O Fred foi mais um paranaense na minha vida e no quarto (3 a um para
eles!), mas de Londrina (ou, como ele gosta de chamar: Little London). Um cara
de quem me aproximei muito e por quem também desenvolvi um carinho profundo,
por várias coincidências que fomos descobrindo pouco a pouco. Além do mesmo
quarto, éramos da mesma escola e da mesma classe. Não passei um só dia na sala
de aula sem rir muito com ele, que vivia fazendo piadas e zoando outros alunos
em português, para que só eu compreendesse. Depois ele traduzia para o inglês,
para que todos entendessem, sempre censurando as melhores partes... óbvio que
todo mundo achava que eu era meio abobada por rir tanto de coisas tão mais ou
menos. Algumas histórias da infância dele também aprofundaram nossa
identificação. Mas a mais marcante, sem dúvida, era a luta constante para nos
protegermos do mundo cão, cada um com suas armas. Às vezes, a arma poderia ser
um humor ácido, um tanto além da conta. Desculpem, amigos... nem sempre é
possível resistir.
Depois chegaram: Camila, a mato-grossense
observadora, e as três amigas de Maringá; Vitória, Ana Flávia e Andressa.
Pronto, o time estava completo (com os personagens de um dos causos mais
engraçados que eu já ouvi na vida. Aguardem).
Nos primeiros dias, o Rodrigo ficou down**. Ele
tinha embarcado para Londres na virada do ano. Passou pela primeira vez na vida
o Ano Novo sozinho. Teve uma experiência ruim na escala em Madri, que incluiu
um café da manhã com feijão doce (ele mostrou a foto e o aspecto da comida era
horrível, mesmo!). Sentia saudades dos pais, de casa... se perguntava se havia
feito a escolha certa, se estava preparado para aquela experiência. Pensou
inclusive em voltar para o Brasil logo de cara. No começo, achei que era por
causa da idade, da inexperiência. Então, decidi adotá-lo. Eu sabia que ele
tinha se esforçado muito para estar ali e não o deixaria desistir. Eu o
lembrava o tempo todo que ele merecia aquele momento, que na realidade era um
prêmio da vida, uma grande oportunidade de crescimento. Ele passou a chamar
“Beth” como quem chama pela mãe. Admito que às vezes enchia meu saco (e me
lembrava o motivo de eu nunca querer ter filhos). Ele descobriu, então repetia
“Beth, Beth, Beth, Beth...” só por repetir, por longos minutos, para me
irritar, como toda criança alguma vez na vida já fez com a mãe. Mas na maioria
das vezes era sério, para pedir socorro, mesmo. E, óbvio, eu socorria.
Uma noite, enquanto retirávamos o lixo da casa –
cada dia os moradores de um dos quartos da casa tinham essa responsabilidade –
Rodrigo me disse que havia falado com a mãe dele sobre mim. Ela havia lhe
pedido para me agradecer pelo que eu estava fazendo pelo filho dela. Usou o
termo ‘anjo bom’ para dizer que Deus havia me colocado no mesmo quarto. Eu
segurei a lágrima e continuei tentando fechar o saco de lixo, com a vista
embaçada. Ficou claro, ali, que na vida a gente segue uma via de mão dupla. Mas
por mais que eu me esforçasse, nunca conseguiria ficar quites e retribuir todas
as coisas boas que receberia.
Quinze dias depois, era o Rodrigo, já completamente
recuperado da bad***, que me aliviava a mente e me fazia gargalhar por horas
com suas palhaçadas, antes de dormirmos (eu não conseguia dormir porque a onda
de gargalhadas voltava o tempo todo). Ele fez isso sem saber que eu havia
chorado escondida poucos minutos antes. Quando peguei aquele avião para
atravessar o oceano, eu caí na grande besteira de me sentir autossuficiente de
novo. Essa é uma armadilha que volta e meia me pega. Mas a vida sempre se
encarrega de me trazer de volta para o prumo.
Foi a minha vez de entrar na “bad”. Ela bate em todo
mundo que está longe de casa e sozinho, em algum momento, não tem jeito. Por
mais que se ame viajar, por mais que as experiências, conhecimentos e
descobertas empolguem e tomem a maior parte dos seus pensamentos ao longo do
dia, tem hora que dói, não importa a idade ou o tipo de experiência que se
tenha. Não dizer boa noite pessoalmente para o Marcus doía. Não poder caminhar
algumas quadras para visitar meus pais, doía. Então me dei conta de que a vida
é essa mistura agridoce. A gente sempre tem que largar uma coisa para receber
outra. E quando se dá conta, formou-se uma miscelânea de notas tristes e
alegres, que dão uma cadência ímpar para cada caminhada. Parece piegas, e é...
mas é lindo.
Não me arrependo por um segundo só de ter vivido
esta experiência. Mas é fato: se você não tiver alguém ali do lado, para
estender a mão, ao menos nessa hora... sinto muito. Naquele momento eu tinha o
Rodrigo. Por isso era ele o meu terceiro anjo. Ele tinha convocado a turma para
os momentos “em família”, que salvaram muitos de nós, tenho certeza. Entre uma
gargalhada e outra, eu ficava imaginando como ainda somos parecidos com nossos
ancestrais. No frio – seja ele devido ao clima, ao estado emocional ou aos dois
-, nos reunimos em volta da fogueira (ou aquecedor) e compartilhamos a comida e
a vida. Abrimos nosso coração, ainda dolorido ou já curado, e dividimos as
dores e as alegrias do caminho, fazendo graça para deixar tudo mais saboroso.
Óbvio que me vem à mente uma música quando me lembro
desses amigos, desses momentos: Bitter Sweet Symphony. Porque a vida é, sim,
uma Sinfonia Agridoce.
E é uma delícia.
Glossário (porque ninguém é obrigado a entender
inglês):
*London Eye = ao pé da letra: "Olho de
Londres". É uma roda gigante (gigante mesmo!), bem famosa, que foi
inaugurada na virada do ano de 1999. É, na verdade, um grande mirante
giratório. Lá de cima a gente tem uma visão inesquecível, praticamente da
cidade toda.
.
**Down = “pra baixo”, “deprê”.
.
***Bad = nesse caso, “bad vibes”; más vibrações,
"ficar mal", triste.
Obs.: Aos que ficaram curiosos, segue a letra de
Bitter Sweet Symphony (Sinfonia Agridoce)
de Richard Ashcroft, gravada por sua banda The Verve
Cause it's a bittersweet symphony this life
Trying to make ends meet, you're a slave to the
money then you die.
I'll take you down the only road I've ever been down
You know the one that takes you to the places where
all the veins meet, yeah.
No change, I can't change, I can't change, I can't
change,
but I'm here in my mold, I am here in my mold.
But I'm a million different people from one day to
the next
I can't change my mold, no, no, no, no, no, no, no
Well I never pray,
But tonight I'm on my knees, yeah.
I need to hear some sounds that recognize the pain
in me, yeah.
I let the melody shine, let it cleanse my mind, I
feel free now.
But the airwaves are clean and there's nobody
singing to me now.
You know I can change, I can change
I can change, I can change
But I'm here in my mold
I am here in my mold
And I'm a million different people from one day to
the next
I can't change my mold
No, no, no, no, no.
Can't change my body
no, no, no.
So, I'll take you down the only road I've ever been
down
Been down
Ever been down
Have you ever been down?
Aportuguesando:
Pois esta vida é uma sinfonia agridoce
Tentando fazer tudo dar certo, você vira escravo do
dinheiro, depois morre.
Eu vou te levar pela única estrada onde já estive
Você sabe, aquela que te leva ao lugar onde todas as
veias se encontram (💓)
Sem mudanças, eu não posso mudar
Eu não posso mudar
Mas estou aqui em minha forma, estou aqui no meu
molde
Mas sou um milhão de pessoas diferentes de um dia
para o outro
Não posso mudar minha forma, não, não, não, não.
Bem, eu nunca rezei
Mas hoje estou de joelhos, sim
Preciso ouvir alguns sons que identifiquem a dor em
mim.
Vou deixar a melodia brilhar, limpar minha mente, me
sinto livre agora
Mas as ondas do ar estão limpas e ninguém canta para
mim agora.
Sabe, eu posso mudar
Eu posso mudar, eu posso mudar
Mas estou aqui em minha forma
Estou aqui no meu molde
E eu sou um milhão de pessoas diferentes de um dia
para o outro
Não posso mudar minha forma
Não, não, não, não, não.
Não posso mudar minha forma
Não, não, não
Não posso mudar meu corpo
Não, não, não
Então eu vou te levar pela única estrada onde já estive
💓
Já estive
Onde já estive
Você algum dia já esteve lá? (ou: Você já ficou
triste?).
(publicado originalmente em
CONVERSAS E DISTRAÇÕES
em Maio de 2016)
Beth
Soares nasceu em Santos SP,
é
jornalista e editora no Ateliê de Palavras
ao
lado do maridão Marcus Vinícius Batista,
colabora
para o website JORNALIRISMO,
para
o blog CONVERSAS & DISTRAÇÕES
e agora também para LEVA UM CASAQUINHO
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