Descia aquela ladeira que leva a Pinheiros vindo da Estação Sumaré: um prédio baixo art-decô com uma rosa escandalosamente aberta e sóbria na entrada. É um canto menos glamouroso da rua da moda de São Paulo: desse traço do interior na megalópole com feira sábado de manhã e eu que amo uma feira livre para curar ressaca da noite passada com Ted Malone. Percebo que férias significavam não fazer a barba todo dia, andar com jeans surrado porque essa onda não passa e despojar-me existencialista entre cestas de caju e bananas suspensas. Voltar ao estúdio organizar os livros dormir para refazer-me e esperar Ted em nosso ambiente com motivos florais javaneses ventilador de teto e um ar de Somerset Maugham paulistano refeito até esticar na padoca no entorno da Praça Calixto no burburinho das primeiras louçarias de antiguidade repostas com sua faina do tempo Ted era o triunfo do ´lenhador´ vintage já entrado nos cinqüenta e ampla extensão de penugem grisalha por sobre o peito digno. Algo estranho em todo crepúsculo de sábado, algum atavio judaico em mim que já era descalço de espírito, anarco-ecológico, descarregando toda carga sobressalente que não fosse arte, sexo e janelas abertas na noite escarlate. Onde foram parar meus narguilés? Minha boina basca jogada entre fascículos velhos da New Yorker e pasme o leitor em meio tantos brics-bracs não curto animais domesticáveis. Meu sofá velho ainda me sustenta e onde cabem livros de cabeceira e meus chamegos com Ted Malone assistindo juntos filmes noir B bebericando martini esquecendo o avanço da direita o aquecimento global a crise migratória numa fronteira remota aos nossos dedos entrelaçados. Nossos caprichos eram meticulosos dado que fomos aprendendo amar para nunca dar azo ao tédio nunca saciar a sofreguidão de nosso querer e toda essa papagaiada que a carne atribui aos sentimentos elevados do espírito. Nossa transcendência era um roçar de artelhos filetes de suor a higidez de seus membros a lassidão da minha entrega a feitura sobranceira de nossas trepadas ao som dum adágio em solo de clarinete de Mozart.... fumamos sem tragar na Praça do Pôr do Sol, corrigimos nossa pronúncia em alemão escasso, algumas latas de Heineken porque não tínhamos mais idade para vinho chapinha. Bom, diziamos: “Como é incrível viver com quem se curte tudo sem diferença de sexo! Deixa eu mijar também, vamos assistir um western, lava as sungas no box! Um éden adâmico tão somente com guimbas de baseado e o mijão borbulhante de malte no mesmo boteco divinamente ordinário. Esses avarandados longos com porta corrida granulada clarabóias e a vertigem de algumas trepadeiras pendendo pela sacada o ventinho perpassando por nossas ex-vergonhas porque Ted Malone precisa de bem pouco para ser feliz ao meu lado. Um sustenido allegro de Mozart entre cascas de tremoços entre os tacos a efígie de Marlene Dietrich um beijo de cansaço para pedir água aos corpos lassos. Nosso paraíso de Marlboro nessa intimidade de machos. Sabemo-nos pelo silêncio dos poros.
Poeta, contista e crítico literário,
Flávio Viegas Amoreira é das mais inventivas
vozes da Nova Literatura Brasileira
surgidas na virada do século: a ‘’Geração 00’’.
Utiliza forte experimentação formal
e inovação de conteúdos, alternando
gêneros diversos em sintaxe fragmentada.
Participante de movimentos culturais
e de fomento à leitura, é autor de livros como
Maralto (2002), A Biblioteca Submergida (2003),
Contogramas (2004) e Escorbuto, Cantos da Costa (2005).
Este é seu mais recente trabalho publicado:
Eu gostei muito. Quero aprender esse ritmo.
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