Eu o avistei enquanto esperava na fila do sorvete. O caminhar era lento, balançando para os dois lados, como o faz há 26 anos, quando o conheci no demolido prédio da Comunicação, na Pompéia, em Santos. O andar é compatível com a serenidade que, às vezes, abafa a pressão das redações jornalísticas onde convivemos por mais de 10 anos. Nunca o vi gritar com alguém, mesmo quando as notícias ferviam.
Ricardo
Goya estava acompanhado de três primos. Como ele não me viu, matei os filtros
sociais e gritei:
—
Goya, vai subir! A Ponte vai subir!
Meus
filhos me olharam assustados. Minha esposa me cutucou para chamar minha atenção
pelo escândalo no meio do shopping center. Goya reagiu com o riso curto de
sempre (“hehe”) e veio em minha direção. Não nos encontrávamos há um ano. Desde
que sai das redações e passei a militar no Jornalismo de outras formas, nossos
encontros ficaram mais esporádicos.
Após
o abraço, engatamos uma conversa sobre futebol. A Ponte Preta, time de coração
dele, pode voltar à série A do Campeonato Brasileiro. A reação é espantosa:
oito vitórias e um empate nos últimos nove jogos. Uma vitória sobre o Avaí,
concorrente direto, em Florianópolis, e o retorno acontecerá.
Goya
é o único torcedor da Macaca que conheço. O único descendente de japoneses
torcedor da Ponte que conheço. O único levantador de vôlei do Atlanta, clube da
colônia de Okinawa, que conheço. O melhor editor de esportes com quem
trabalhei. Um dos jornalistas mais corretos com quem pude conviver e aprender.
Goya
foi meu parceiro de reportagem na primeira e na segunda matérias que escrevi na
vida: 1) pescadores que se tornaram coveiros em Santos, por conta da crise
econômica no Governo Collor. 2) um perfil dos candidatos a vice-prefeito de
Santos, em 1992. Goya é único!
Na
sequência, perguntei sobre o trabalho. Veio a má notícia, que me deixou sem o
que dizer a ele.
—
Estou de licença. Coloquei um marca-passo no coração. Cheguei a ficar na UTI.
Arritmia. Agora, estou bem!
Dialogamos
rapidamente sobre a rotina de afastamento do trabalho. Nós nos despedimos, ele
retomou o passeio com os primos e eu permaneci na fila do sorvete em promoção.
Passei
a semana inteira remoendo esse encontro e adiando a elaboração desta crônica. O
texto saltou para todos os lados na minha cabeça, mas me faltou coragem de
colocá-lo em pé.
Vê-lo
me fez lembrar o quanto depositamos nas costas do trabalho o distanciamento de
amigos que foram muito próximos e importantes ao longo de certas fases da vida.
Tenho tentado essa mudança desde 2016 e, por conta disso, cafés e visitas em
casa se tornarem praticamente semanais. Goya, peço desculpas, “escapou” dessa.
Vê-lo
me injeta uma dose cavalar de saudades, não dos tempos que se esvaíram com a
idade e os caminhos traçados, mas das conversas que poderiam ter nascido se não
nos preocupássemos tanto com compromissos urgentes no curto prazo e
irrelevantes quando os observamos com distância segura. Memórias, perspectivas,
compartilhamento de experiências. Hoje, este pacote é essencial para minha
sanidade.
O
encontro casual no shopping e a Ponte Preta ressuscitaram um dos episódios mais
malucos que vivi por causa do futebol. Há mais de 20 anos, a Ponte estava na
mesma situação, na boca da caixa para voltar à elite do Brasileirão. Prometi ao
Goya que o levaria em Campinas para o último jogo, contra o Naútico, de
Pernambuco.
Cumpri
a promessa. A viagem me permitiu testemunhar o acesso da Ponte e me rendeu,
além de uma multa por excesso de velocidade, uma crônica. Este texto foi o
único prêmio literário que ganhei. (aqui, o link da crônica)
Neste
sábado, dia 24, a Ponte Preta pode retornar à primeira divisão do futebol
nacional. No shopping, Goya oscilou entre o desânimo e a esperança escondida
nos bolsos.
—
Pôxa, a Ponte é especialista em falhar no último jogo.
Tentei
animá-lo. Comentei com outro amigo, o Léo, de Maceió, que seria sensacional se
Ponte e CSA subissem. Nenhum jogo se compara a qualquer amizade, mas ... vencer
ajuda como pílula de felicidade.
Gostaria
que o Goya não assistisse à partida, mais por razões emocionais e cardíacas,
claro, do que por não poder levá-lo ao jogo decisivo.
Adoraria
viajar à Floripa, pois acredito que damos sorte à Macaca nos momentos
essenciais de sua história. A Ponte Preta condiz com minha predileção por times
sofridos, para quem nada vem de bandeja ou 1 a 0 se comemora como goleada.
A
Ponte, subindo ou não, sempre me conduz às lembranças de convivência com seu
torcedor único, o Goya.
(publicado originalmente em
CONVERSAS E DISTRAÇÕES
em Novembro de 2018)
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