O quarto tinha
sido arrumado pela diarista que a acompanhou por cinco anos gentis, tudo
disposto com esmero sem tirar o jeito distinto de Augusta nesse mundo
indiferente. Pensei na meia dúzia de
vasos com antúrios na pequena sacada, a estante brilhava de uso e eu perguntei
ao zelador sobre os parentes distantes. Apartamento parecia ter o tamanho do
seu despojamento: lembrei do chá de
erva-doce nos dias frios e a cerveja preta no almoço; deveras ela dizia,
deveras.... Sábia não teve filhos não faltaram amantes nos anos antes do
recolhimento e nenhum apego a animais domésticos, ela era sábia melhor adjetivo
extenso a tudo que refletisse sua inquietação mansa. Seria tão somente eu a remexer seus
guardados....
- Ela deixou
para o senhor essa mobília espero que tenha uso ´Seo Alfredo´. Ela estimava sua família sua luta o carinho
da sua esposa...
- Levo a geladeira e fogão os moveis vão para
meu sobrinho que casa Dr. Rodrigo
- Me ajuda
abrir aquela cômoda e eu entrego a chave quando sair na portaria. Vez ou outra eu passo por aqui saber de
cartas e algum recado. Forte abraço
Alfredo.
Ela me acenava
rapidamente, por vezes encetávamos conversa, sabia que eu era ator, tinha ar de
dama inglesa, uma sobriedade indiferente, bebia no mesmo bar um delicado cálice
de campari seguido de aguardente isso aos sábados. Tudo nela contrastava com o
redor do mundo da esquina do comércio das coisas do bulício da cidade . Alguns
meses quando vim de Nova York já fizera amizade e conversávamos quando em dias
de chuva ou festas de final de ano. Tentara escrever poesia, fora
correspondente de guerra, era frugal nos
gastos por natureza nunca mesquinhez, recusou ajuda do governo de sua terra de
origem, escolhera o Brasil na cara e coragem e ponto final para todo risco, solidão,
falta de contato. Tirou ovário, quebrou o pulso, nunca recorreu a ninguém para quase nada. ´´Não
incomodo ninguém para não ser incomodada´´ - dizia com sorriso maroto. Passados
dois anos de convívio ela notara que eu também era um desgarrado do bando e me
confiara alguns pontos altos da vida: o amor por um pai carinhoso, a morte da
mãe na infância, uma irmã bem casada e nenhuma expectativa sobre seu futuro
além mar desde que se embrenhara na selva como missionária leiga duma ONG
humanitária. Usou eufemismo para dizer uma grande amizade por uma companheira
de viagem que se estabelecera no Rio de Janeiro. Fazia algum tempo não dava
notícia desde sua viuvez. Me solicitara ensinar-lhe mandar e-mails e o
rudimentar daquela internet que surgia em 1999 : ´´Não quero aprender esse
troço , mas sei importante, me ajuda nisso ´Rodrrrigo´ com o gutural de meu
nome acentuando o imperdível sotaque de alsaciana. Ela falava alemão
logicamente, arranhava italiano, se recusava ao inglês sem necessidade mesmo
tendo um jeito desleixado de Virginia Woolf, tentara aquarela razoáveis, me
dedicou algumas tapeçarias esmeradas mas principalmente reunira em muitos anos
versos que tinha certeza a fariam uma nova Emily Dickinson habitante das matas
brasileiras encerrada na velhice num quarto e sala na beirada do mar. Estiquei-me
naquele outono perto da sacada com luz intensa , desfiei os laços dos guardados de Augusta e
um calhamaço em linhas seguras de papel sulfite entre correspondências, outros
cadernos escolares e uma pasta recheada compunham seu inventário ao mundo que
nunca lhe dera sinal de apreço ou entendimento ao menos. No alto do livro
improvisado um título nítido como o sol prematuro que me acordara dessa
aventura: ´´Anabella´´.
Poeta, contista e crítico literário,
Flávio Viegas Amoreira é das mais inventivas
vozes da Nova Literatura Brasileira
surgidas na virada do século: a ‘’Geração 00’’.
Utiliza forte experimentação formal
e inovação de conteúdos, alternando
gêneros diversos em sintaxe fragmentada.
Participante de movimentos culturais
e de fomento à leitura, é autor de livros como
Maralto (2002), A Biblioteca Submergida (2003),
Contogramas (2004) e Escorbuto, Cantos da Costa (2005).
Este é seu mais recente trabalho publicado:
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