Virginia
Woolf sabia como unir as mulheres contra a violência e a guerra: um novo tipo
de educação, para uma nova e revolucionária faculdade feminina.
(publicado
em O Estado de S. Paulo em
16 de março de 2019)
Quando
tomo conhecimento de uma cafajestada dos filhos do presidente, eu me lembro de
Virginia Woolf – de quem eles, assim como o pai, não devem ter medo, pois
talvez nem de nome a conheçam. Quando soube da prisão dos assassinos de
Marielle e Anderson, terça-feira passada, também me lembrei de Virginia Woolf.
Não por causa de seu lesbianismo, mas por suas irrefutáveis reflexões sobre a
tendência dos homens à prática e à curtição da violência.
As
mulheres podem não ser de Vênus, mas muitos homens, definitivamente, são de
Marte e de morte. Quantos atentados e chacinas, como a de Suzano, foram
praticados por mulheres, nos últimos tempos? Ou melhor, em qualquer tempo. Será
que alguém ainda duvida que a maioria esmagadora dos haters em atividade na
internet seja do sexo masculino? A gente conhece miliciano e feminicídio, mas
nunca ouvi falar de miliciana e masculinicídio.
Quem
sabe por uma diferença de glândulas, de hormônios, ou por deformação
psicológica causada pela educação, o fato, estatisticamente comprovado, é que o
homem mata mais – gente e animais. Existe uma estreita conexão entre
masculinismo e militarismo, entre patriarcado e regimes ditatoriais, argumentou
Virginia Woolf em Três Guinéus, que, acho, só agora será traduzido aqui, e pela
mesma editora (Autêntica) que há dias lançou uma pequena antologia de textos
feministas dela: As Mulheres Devem Chorar... Ou se Unir Contra a Guerra –
Patriarcado e Militarismo.
O
reticente título é insípido, mas isso é o de menos. Muito bem organizado,
traduzido e enriquecido com notas contextualizadoras de Tomaz Tadeu, o livro
entrelaça em 160 páginas um conto (de 1920), uma palestra (de 1931), duas
cartas fictícias e um ensaio de 1930. O conto, Society (que tanto pode
significar sociedade como associação), antecipa certos temas mais tarde desenvolvidos
em Os Três Guinéus e Um Teto Todo Seu, e um deles é a necessidade de as
mulheres pesquisarem as razões últimas da dominação masculina.
A
palestra foi para uma guilda destinada a promover o acesso das mulheres ao
mercado de trabalho. O ensaio examina o papel da classe operária no processo de
transformação social e o relacionamento nada paternalístico (ok,
maternalístico) da escritora, “filha de um pai instruído”, com as mulheres de
uma classe social inferior à sua.
“Embora
muitos instintos sejam tidos, em maior ou menor grau, como comuns a ambos
sexos, guerrear tem sido, desde sempre, hábito de homem, não da mulher”,
escreveu Virginia, respondendo à consulta de um fictício “homem instruído”
sobre qual seria a melhor maneira de evitar a guerra. A consulta foi feita há
exatos cem anos, com os traumas e as feridas da Grande Guerra ainda latejando e
a desconfiança geral de que outra sobreviria – o que afinal ocorreu 20 anos
mais tarde, quando Hitler, outro varão (e ex-soldado) incendiou a Europa.
Resulta
dessa indagação uma estimulante conversa sobre as pessoas e a política, a
guerra e a paz, o barbarismo e a civilização. Pinçando trechos de memórias de
soldados e do poeta britânico Wilfrid Owen (morto em ação, uma semana antes da
assinatura do armistício), Virginia mostra como os homens procuram, no ato de
guerrear, alguma glória, alguma necessidade, alguma satisfação, que as mulheres
nunca sentiram. Mas a elas não cabe apenas chorar em casa, à espera de um
cadáver trazido dos campos de batalha. Virginia sabe como uni-las contra a
violência e a guerra: um novo tipo de educação, para uma nova e revolucionária
faculdade feminina.
Quem
desconfiou que as ideias dela sobre “o tipo de educação que se faz necessário”
me trouxeram à memória aquele colombiano obscurantista entronizado no
ministério da Educação, desconfiou certo.
Virginia
tinha em mente uma faculdade experimental, ousada, construída de acordo com
diretrizes próprias, “não com pedras esculpidas e vitrais”, mas algum material
barato, para evitar, sinta a ironia, o acúmulo de poeira e a perpetuação de
paralisantes tradições. E nada de capelas, museus e bibliotecas com limitado
acesso a determinados livros.
Nela
“não se ensinaria a arte de dominar outras pessoas, de mandar, de matar, de
acumular terra e capital, artes que exigem muitíssimas despesas
extraordinárias, soldos, uniformes e cerimônias”. Só haveria lugar para o que
pode ser ensinado de maneira barata e praticado por pessoas pobres, tais como
medicina, matemática, música, pintura e literatura. Vale dizer, a arte das
relações humanas, de compreender a vida, a mente e os hábitos de outros povos,
a arte de combinar, miscigenar, jamais segregar, explorando, em suma, as formas
pelas quais “a mente e o corpo podem ser postos a cooperar, a descobrir que
combinações novas produzem totalidades novas na vida humana”.
Professoras
seriam recrutadas tanto entre as pessoas que sabem viver quanto entre as que
sabem pensar. A competição seria abolida. As pessoas que gostam de aprender por
aprender iriam para lá com prazer. Musicistas, pintoras e escritoras dariam
aulas cobrando pouco, porque elas também iriam aprender. Seria livre a
associação entre as pessoas, não mais divididas pelas “deploráveis distinções
entre rico e pobre, inteligente e estúpido”, em que “todos os diferentes graus
e tipos de mente, corpo e alma seriam considerados dignos de dar sua
contribuição”.
Virginia,
quero crer, anteviu a educação sonhada por Paulo Freire e Darcy Ribeiro. Aqui
seria massacrada, diariamente, pelos Cro-Magnons das redes sociais.
Sérgio Augusto
(Rio de Janeiro, 1942)
é um
jornalista e escritor brasileiro.
Começou sua
carreira como crítico de cinema
na Tribuna da
Imprensa, em 1960.
Trabalhou
também no Correio da Manhã,
no Jornal do
Brasil, na Folha,
e nas revistas
O Cruzeiro,
Fatos &
Fotos, Veja, IstoÉ e Bravo!,
além dos
semanários O Pasquim, Opinião e Bundas.
Desde 1996,
ele escreve para o Estadão.
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