Não fazia frio em Luanda, tampouco calor. O vidro da janela do banheiro estava aberto e o frescor do início do cacimbo não incomodava. Na África Meridional, existem duas estações: a das chuvas, que ocorre de outubro a abril, e a da seca, conhecida regionalmente como “cacimbo”, de temperaturas mais amenas. Abaixei a tampa e me preparei para mijar. Um mosquito cruzou a tábua da privada no exato instante em que o primeiro jato se desprendeu. Alvejado em pleno voo, o pernilongo foi arremessado de encontro à parede do vaso e escorreu para a superfície da água, ainda pouco misturada à urina. Direcionei o jato para o seu corpúsculo que flutuava, até ter a certeza de que estava liquidado, e pensei na possibilidade matemática de um mosquito ser abatido no ar por um jato de urina de alguém sonolento. Uma em mil... uma em um milhão. Afinal, eu não persegui o mosquito em seu voo. Nem tinha notado a sua presença. Ele que entrou na frente no momento exato em que eu desferia o primeiro jato. Muito azar do mosquito. Isso só acontece uma vez na vida. Na dele, com certeza.
Lembrei que eu tinha que ligar pro Felipe, meu filho mais velho. Ele que não esquecesse de jogar na mega sena no Brasil. Minha internet estava pra lá de luandense, não dava pra jogar de casa... e no celular, o 3G se arrastava. E o prêmio, acredite, acumulara em 115 milhões. Tinha transferido 380 reais... dava pra fazer um jogo de 9 dezenas. A chance de ganhar subia de 1 em 50 milhões para 1 em 590 mil. Eu sei que ainda seria difícil pra caralho. Mas eu tinha acabado de matar um mosquito em pleno voo com uma mijada... e sem mirar. Ou seja, podia ser o meu dia de sorte.
Luanda é a capital de Angola, um país pobre que amargurou uma história relativamente recente de 30 anos de guerra civil. Os negros reconquistaram seu país. E boa parte dos brancos (portugueses até então dominadores) vazaram para sua terra natal e alguns para a África do Sul e o Brasil. Mas, com a abertura da economia, os brancos voltaram... e trouxeram os amarelos. Os cerca de 400 mil chineses, mão de obra barata, se multiplicavam nas atividades menos nobres das obras de engenharia. Mas a sensação que se tinha é que não construíam apenas edifícios, pontes e estradas... mas uma torre de Babel. Além do português angolano malemolente e de acento lusitano, os dialetos umbundo, quimbundo e quicongo se misturavam ao inglês falado pelos executivos das multinacionais, ao português brasileiro dos odebrechtianos e ao mandarim de quem mais obedece do que fala.
Era sábado, dia de descanso. Como engenheiro, tinha o privilégio de viver num condomínio fechado em Talatona, excelente moradia. Tinha um salário do tamanho da saudade que sentia do Brasil, apesar de visitar a família de seis em seis meses. Vesti uma bermuda confortável e abri uma Cuca Ruiva, uma amber lager tradicional de Angola, e comecei a limpar os espetos da churrasqueira. A piscina estava azul e cristalina, à espera dos convidados. Eu não era um sujeito rico, mas a construtora me garantia uma moradia acima dos meus padrões brasileiros e eu não via mal nenhum nisso. Havia marcado um churrasco com os amigos da empresa por volta do meio dia. Ainda era cedo, teria tempo de preparar tudo com calma e tomar pelo menos umas 8 ou 10 Cucas.
Espetos lavados, cervejas a menos 6 graus, petiscos cortados. Abri a quarta Cuca e me recostei numa cadeira de praia pensando no e-mail de minha ex-mulher, mãe dos meus 5 filhos, me pedindo mais dinheiro. A pensão não era das mais robustas, mas tinha dúvida se deveria aumentá-la. Enquanto, de olhos fechados, fazia algumas contas de cabeça, poooffff: uma pasta asquerosa e fedida atingiu o meu rosto, inundando meus olhos, nariz e bigode. Corri para a pia da churrasqueira, lavei o rosto e usei o álcool de acender o fogo pra desinfetar o meu bigode. Parecia cocô de pombo. Corri para a piscina e olhei para o céu. Umas duas dezenas de cegonhas ainda sobrevoavam minha casa a uns 150m de altura ou mais. Porra, não é possível. Seria muito azar tomar uma cagada de cegonha na cara, no conforto da minha piscina. Pensei na possibilidade matemática de isso acontecer, mas logo desisti. Conta difícil, cheia de variáveis, que exigiria pesquisa científica e um mirabolante cálculo de probabilidade com amostragem, fatoriais, velocidade... impossível.
Sentia saudade dos meus filhos, do Rio de janeiro e até de minha ex-mulher. A vida em Luanda era uma merda, só valia o pé de meia. A campainha tocou... eram 11h10 da manhã. Quem seria tão cedo? Olhei pelo monitor da sala que mostra todas as câmeras da casa e vi a figura do porteiro acompanhado de um homem que eu nunca tinha visto na vida. Será que era convidado de algum convidado? Mas por que o porteiro não me avisou pelo interfone? Estranho.
Abri a porta e ouvi o estampido. O filho da puta me atirou na perna e entrou em minha casa arrastando o porteiro. O sangue esguichava, senti tontura. Só lembro de ver o porteiro amordaçado e amarrado na coluna da sala.
Acordei no quarto do hospital dois dias depois com o Felipe sorrindo e falando baixinho: “Porra, pai... que susto que você deu na gente”. Perguntei o que tinha acontecido e ele me falou do roubo, do tiro, da minha cirurgia e da viagem que fez sozinho por imposição da mãe. Achavam que eu ia morrer. Não sei porque, mas a primeira coisa que me veio à cabeça foi o jogo da mega sena. Peguei meu celular na mesinha e pesquisei no Google. Vi que não tinha acertado nem um número. Comentei com o Felipe e ele me disse que tinha sacado o dinheiro, mas que tinha esquecido de jogar. “Porra, pai... eu sabia que você ia ficar puto comigo então corri na banca do jogo do bicho do Jardim de Alah e joguei a grana toda no grupo da borboleta. Eu tinha sonhado com borboleta a noite toda. Deu na cabeça, pai. Você ganhou 6 mil reais, tá aqui a grana”.
Me deu uma fisgada na coxa que me fez contorcer inteiro. Olhei pro Felipe e falei pra ele ficar com mil reais e dar os outros 5 pra mãe dele.
Virei pro outro lado, fechei os olhos e só consegui pensar na borboleta. Borboleta na cabeça. Não é um mosquito, mas é o único inseto do jogo do bicho. Uma chance em 25.
Antonio Luiz Nilo nasceu em Santos,
e é redator publicitário e diretor de criação
há quase 30 anos,
com prêmios nacionais e internacionais.
Circulou a trabalho por todo o país,
com paradas prolongadas em Brasília,
Belo Horizonte e Salvador.
Publicou em 1986, o livro de poemas
"Poemas de Duas Gerações",
e, mais recentemente, o romance
"Ascensão e Queda de Pedro Pluma"
(disponível para venda em alnilo@gmail.com).
Além disso, atuou como cronista
para o diário Correio da Bahia.
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