A crítica tem certos cacoetes que irritam profundamente autores talentosos em busca de suas próprias vozes.
Se um autor qualquer, por um acaso, escreve um romance ambientado no Sul dos Estados Unidos, por exemplo, e gosta de trabalhar com personagens recorrentes, pronto: já é motivo para algum crítico apressadinho qualquer estabelecer comparações com William Faulkner -- mesmo que, em termos estilísticos, não exista a menor semelhança entre os dois.
Richard Ford tem sido comparado constantemente a Faulkner desde seu romance de estréia, "A Piece Of My Heart". Tem sido comparado a John Updike também, por voltar de tempos em tempos a um mesmo personagem-protagonista, Frank Bascombe, que, apesar de ser um americano comum de classe média, não tem a menor semelhança com o Rabbit de Updike.
Por sorte, Richard Ford não se aborrece mais com comparações sem pé nem cabeça. Aos 71 anos de idade, premiadíssimo e sem a menor paciência com as futricagens do meio literário americano, ele segue seu caminho produzindo romances deliciosos onde revela as entranhas da vida americana com uma grandeza artística assombrosa.
"Canada" é o mais recente romance de Richard Ford editado aqui no Brasil, pela Editora Estação Liberdade. Está chegando às livrarias com três anos de atraso em relação ao lançamento nos Estados Unidos. Confesso que não chequei a tradução para o português (de Mauro Pinheiro), pois li o romance no original em Inglês dois anos atrás. Mas, considerando que as edições da Nova Liberdade costumam ser bem cuidadas, presumo que a edição seja confiável.
"Canada" é uma road novel trágica passada nos anos 1960 sobre um casal de gêmeos que são levados ilegalmente para o Canada depois que seus pais -- um ex-piloto da Força Aérea e uma Professora -- se envolvem num assalto a um banco, e são pegos. Nessa fuga para o Norte, os personagens ficam cada vez mais solitários e sem rumo. Curiosamente, em "Canada", o Norte deixa de ser metáfora para o equilíbrio e vira uma estrada para a perdição.
Dell, o menino protagonista e narrador de "Canada", fica impactado pelo fato de seu pai ser um bandido capaz de matar pessoas. Para ele, o fato dele ter roubado um banco é o que menos importa. O que importa é desde quando ele tem a alma de um assaltante de bancos, e seus filhos não conseguiram perceber. Para Dell, que achava conhecer bem seus pais, descobrir que seu pai e sua mãe eram uma versão de Montana para Bonnie & Clyde foi um golpe baixo.
Pois o impacto que essas revelações provocam em Dell são o verdadeiro cerne de "Canadá". A fuga para que não caiam num orfanato e sejam adotados por desconhecidos, e a solidão implacável decorrente dessa fuga, servem apenas para manter os irmãos em movimento enquanto são corroídos pelas incertezas e pelo desespero.
Essa foi a primeira e única vez em seu carreira que Richard Ford usa uma criança como narrador. E é nesses momentos que vemos claramente que estamos diante de um grande escritor. Ford entra de cabeça na alma do menino. Em momento algum no livro estamos diante de uma voz adulta. É o universo visto pela ótica de um menino brutalizado pela vida. O resultado é uma prosa exuberante, delicada, assustada, intensa, extrema...
"Canada" é, com certeza, o melhor romance já escrito por Richard Ford -- o que, considerando seu pedigrée, não é pouca coisa.
Ouso até dizer que "Canada" é superior em termos literários a qualquer romance escrito por John Updike ou William Faulkner -- dois contistas de gênio, mas romancistas não muito convincentes.
"Canadá" é um triunfo artístico indiscutível. Dá orgulho de ser contemporâneo de um grande escritor como Richard Ford.
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