Tuesday, September 15, 2015

ENTREVISTA COM O CINEASTA SÉRGIO BIANCHI, HOMENAGEADO NO CURTA SANTOS DESTE ANO

por Ana Aranha e Cléber Eduardo
 para a Revista ÉPOCA 


O diretor paranaense Sérgio Bianchi, radicado em São Paulo desde os anos 70, sempre foi um provocador. Seus filmes são freqüentemente estruturados como soma de fragmentos ilustrativos dos descalabros e absurdos da sociedade brasileira. Seus alvos preferidos são a elite e o Estado, segundo suas imagens, responsáveis pelo vírus da amoralidade e da degeneração. Em seu filme "Quanto Vale ou É Por Quilo", por exemplo, ele não salva nem as vítimas (os pobres), contaminados pelas práticas e pela ideologia de seus 'opressores'. Por meio de uma série de fios condutores, Bianchi ataca ainda a indústria da boa ação, por meio da qual, além de se lavar a alma, gera-se empregos e movimenta-se a economia, sem, no entanto, interferir na vida dos supostos beneficiados (os pobres, outra vez). Quase ao final dois personagens definem o seqüestro como mecanismo de distribuição de renda e de justiça social. Leia abaixo íntegra da entrevista do diretor, marcada por suas interrupções e provocações. Preocupado com as generalizações de seu filme, que não relativiza nada ou ninguém, sobretudo o Terceiro Setor, Bianchi chegou respondendo antes de ser perguntado



Sergio Bianchi - O filme não é contra ONG. É contra o grande uso do mendigo e da criança abandonada como mercado. Isso é assustador.

Mas as ONGs não estão inseridas nisso?

Sergio Bianchi - Várias ONGs, várias sociedades de caridade, senhoras burguesas. Tem todo tipo de coisa, desde o primeiro time do Terceiro Setor, que fatura horrores. A idéia veio quando fui convidado a apresentar o Cronicamente Inviável em Praga. Me levaram para uma reunião internacional de uma ONG, Transparência Internacional, que é contra a corrupção. Eu nunca tinha visto mordomia como aquela. Nem as festas em Mônaco da família real são tão grandiosas. Eu senti a brincadeira. Em uma festa com quatro orquestras, cascatas de camarões, uma burguesia internacional inteira, eu senti aquilo e comecei a me interessar pelo tema. Foi aí que saquei que ali estava o novo mercado. E aí você vê um monte de gente se adaptando ao novo mercado. O Brasil tentou lançar no ano passado, o nosso presidente tentou lançar uma coisa mundial, quer dizer, vamos começar , as elites, a faturar em cima do pobre. Aqui no Brasil é muito mais, fechei o enfoque aqui, comecei a olhar ao redor e percebi que não é só a alta classe que faz esse jogo, mas a classe média também. Preciso fazer uma ressalva. Encontrei pessoas dignas também, que são sérias. Encontrei pessoas que a gente vê que são fobicamente a favor de cuidar dos outros.

Como foi o processo de pesquisa?

Sergio Bianchi - Eu não fiz uma grande pesquisa, mas fui aos lugares. Eu conheço muita gente, aí peguei colaboradores para me ajudar a esmiuçar as razões.

Os dados que você utiliza...

Sergio BianchiEu não fiz uma pesquisa profundíssima. Eu tirei dados de notícias de jornal, de relatórios. Foi meu roteirista que tirou, na verdade.

Você se coloca contra a idéia em si da filantropia ou contra o modelo da filantropia no Brasil?

Sergio Bianchi - Não, eu não sou contra ou a favor de uma coisa que existe. Eu sou contra o ato de usar o destituído como mercado, como o objeto em cima do qual você se sustenta. No meu raciocínio, você assim sustenta a permanência desses problemas ao transformar esses problemas em mercado. Se o Terceiro Setor ou a miséria desaparecer, gera uma quantidade enorme de desempregados.

É uma economia...

Sergio Bianchi - Sim, eu não sou contra bebidas. Se fecha a Coca-Cola, gera desemprego, então, isso gera uma situação de mercado em que se estabelece a permanência da coisa. Aí você ouve presidente falando...É a coisa mais assustadora. Por exemplo, selo. Os selos são ou temas ou flores, ou esportes, ano da independência, centenário do escritor. E o Brasil de repente faz um selo que é a miséria. Claro que é uma obra do Portinari. Mas começa a ser um produto, como se fosse uma característica cultural nossa. Aí começa a ter um monte de gente ganhando em cima dessa relação. Claro que tem todo tipo de pessoa. Tem os bandidos, tem os inocentes. Tem a lavação de dinheiro.

Você chegou a encontrar esses bandidos e madames que se sentem bem fazendo filantropia?

Sergio Bianchi - Eu não fiz uma pesquisa, assim...Mas acho que tem gente que pode lavar a alma, ser 'bom', sem se sujar.

Dentro da lógica do seu filme....

Sergio Bianchi - Veja bem, aquilo é uma história. Eu criei uma ficção baseada em fatos observados na realidade. Você pode ser contra ou a favor. Inclusive aquela ONG naturalista lá. Ela existe. Eu não vou dizer quem, mas tem gente que pega dinheiro da prefeitura, pega mendigo, põe na perua, faz andar 20 quilômetros e faz beberragens, estilo ayahuasca, para se purificar.

Dentro da sua história você faz um recorte que te coloca como um diretor que destoa do resto do cinema no Brasil. Você não vai para casos individuais. Você não vai para microcosmos, você quer falar do Brasil. Um recorte do país.

Sergio Bianchi - Não sei se é do país, são várias histórias ao mesmo tempo, que no fim montam um painel mais generalizado.

Mas de qualquer forma é um painel de uma parte do país hoje, não são dramas pessoais desconectados de uma conjuntura social e cultural. Você trabalha em cima de efeitos e sintomas.

Sergio Bianchi - É, eu gosto de ver as coisas sempre em nível de classe social. Eu não consigo ver qualquer realidade sem inserir o contexto da classe da qual aquela pessoa fala. Isso eu observo, não consigo não colocar. Algumas pessoas dizem que sou marxista. Não sei, mas eu não consigo ver de outro jeito.

Como havia dito, você é uma exceção no cinema do país.

Sergio Bianchi - Ah, mas o cinema no Brasil, tirando as raras exceções, está sempre procurando copiar o modelo colonizado americano. Em tudo. E agora, de dois anos para cá, copiou-se o virtual em tudo. Você tem um gasto na estrutura burocrática, as escolas tem todo o processo hollywoodiano. A Ancine tem todos aqueles departamentos, com todos os andares da burocracia necessária para uma grande estatal do cinema, só que você não tem o espaço. Fica a coisa mais louca e virtual possível.

Dentro desse painel que você faz, não existem as referências morais. Você está sempre explorando o pior do país..

Sergio Bianchi - Ah, você tem de qualificar o que significa o pior do país para você.

A falta de caráter sobretudo. Tanto no Cronicamente Inviável como nesse filme você não tem o referencial do caráter positivo. Ninguém presta, as pessoas são indiferentes ao mundo, só querem salvar o seu.

Sergio Bianchi - Nesse filme tem dois personagens que são positivos...

Mas no final esses personagens mudam. 

Sergio Bianchi - E você acha que tem outra solução? Com um revólver na cara, um personagem quer se salvar, não ser herói.

O filme trabalha na lógica de que as pessoas são produzidas pelo meio delas. Basta surgir a oportunidade em certa circunstância que elas passam a reproduzir a prática e a ideologia do opressor.: Tanto no Cronicamente Inviável, em que o narrador acaba revelando-se parte do jogo sobre o qual reflete, como nesse agora, em que a voz denunciante iguala-se aos denunciados.

Sergio Bianchi - Você quer me chamar de pessimista?

Quero dizer que nos dois filmes você termina num impasse, você termina com as referências morais do dando uma meia volta. Você coloca um muro na frente da única possibilidade do personagem que conduz os filmes. A consciência que conduz o filme. Então essa consciência torna-se cínica porque na verdade abre-se mão da consciência e opta-se pelo pragmatismo.

Sergio Bianchi - Mas dependendo da sua ideologia, a segunda opção do filme, a apologia vingativa de uma central de seqüestro pode ser uma saída positiva. Para mim não é porque eu não gosto de violência. Eu acho que eu me explico melhor contando o terceiro final que eu não pus.

Qual é?

Sergio Bianchi - Dá tudo certo.

O que é dar tudo certo?

Sergio Bianchi - A atriz Ana Torres, que tinha a pequena ONG, se torna ministra do Bem-Estar Social. O presidente vende ao mundo o projeto mercadológico de usar a miséria como mercado. E a elite passa a viver oficialmente numas de salvar os pobres e faturar em cima. O jogo da fome como um grande mercado internacional.

Qual é a sua posição pessoal?

Sergio Bianchi - Eu? Imagina! Não preciso ter. Acho que isso é uma boa praticidade para o cineasta, viu? Você pode falar o que quiser. Me considero à parte, me considero um observador.

Você não vê o seqüestro como uma forma de distribuição de renda?

Sergio Bianchi - Eu não vejo nada, o personagem é que vê.

É onde eu queria chegar...

Sergio Bianchi - Não, mas nessa eu não vou entrar. Se você faz um filme sobre não sei o que não quer dizer que eu seja não sei o que.

Mas também você não monta ingenuamente como plano final uma cena na qual alguém legitima o seqüestro como distribuição de renda.

Sergio Bianchi - Mas aí você está ignorando o terceiro final. Eu não consegui fazer. Seria o terceiro mesmo. Ia ser um aparte documental, gloriosa, nacionalista. Mas era muito caro filmar tudo isso.

Há duas vozes no final do filme muito contundentes. Uma é a do Lázaro Ramos quando fala do seqüestro como distribuição de renda. E essa voz do final, quando a personagem fala do seqüestro como uma possibilidade de justiciamento social.

Sergio Bianchi - Eu acho que são vozes de personagens inteligentes. O Lázaro Ramos é aquilo que não existe no Brasil. É o bandido popular inteligente. É um alerta: cuidado que de repente começa a aparecer mundos assim. . A minha intenção é provocar, eu sou muito bretchiano, não estou muito preocupado em achar soluções.

Na fala do Lázaro Ramos, você o iguala aos empresários corruptos, que estão lucrando com a filantropia.

Sergio Bianchi - No Cronicamente Inviável, havia a apropriação do texto da esquerda calhordamente. Ele se apropriou do texto mercadológico calhordamente. É o mesmo processo. Não está alimentado o mercado? Não faz o dinheiro circular? Então seqüestra.

Mas só quero dizer o seguinte: você como autor do filme tem total liberdade de colocar os discursos vários em momentos diferentes. Mas não os coloca inocentemente como palavra final do filme com um chamado a luta de classes.

Sergio Bianchi - Você quer me levar para aí, mas não vai me levar para aí. Você quer dizer que eu sou a favor. Eu não sou a favor, eu acho que é uma coisa que acontece, é observação da realidade e é muito possível acontecer. Você pode também chegar a conclusão de que é um alerta para a classe alta aprender a não ser tão incompetente, né? Pode ser tudo, a leitura do filme é enorme. Não estou fugindo da responsabilidade, não. Não estou defendendo a luta armada, não é isso de jeito nenhum. É a personagem. A saída dela.

Pelo que você observa aqui no Brasil, o governo Lula estimulando a solidariedade...

Sergio Bianchi - Eu acho que foi uma tentativa populista de faturar também em cima da miséria

Legitima o movimento?

Sergio Bianchi - Eu não sei. Mas, pelo que leio nos jornais, está havendo uma grande formação de empregos em cima disso, mas nada está funcionando. Mas eu não sei se isso é verdade, eu leio.

Você centra no Brasil, mas essa é uma questão mundial, não?

Sergio Bianchi - Mas no Brasil é pior. Transformar o bandido e o mendigo em mercado não pode. Não sei se isso se explica por moral ou ética, mas eu sou contra e fico realmente indignado. Há um limite. Não pode mexer nisso. Me falaram que, na China, caridade é crime.

Você usou na figuração muitos não atores?

Sergio Bianchi - Fiz testes. Não peguei gente assim, moradores de rua e menores abandonados. E ensaiei todo mundo. Teve só dois moradores de rua. Nesse filme, tive prazer em lidar com atores. Eu cresci nisso. Antes eu estava preocupado em dizer coisas.

Já que estamos falando de miséria. Você não acha que de certa forma...

Sergio Bianchi - Quer saber se eu também lucro?

Você não acha que de certa forma o cinema brasileiro está tentando construir sua imagem, principalmente lá fora, tentando também lucrar em cima da miséria? Tentando construir uma imagem que seja lucrativa em cima dos problemas, porque talvez seja isso que queiram ver da gente?

Sergio Bianchi - Tem essa turma sim, que quer ver o desastre. Várias vezes fui convidado, quando vem festival de cinema lá de fora, e quando descobrem que não sou desdentado, acham que não interessa. Procuram um desdentado e encontram um homem enorme, de olhos claros, então não se interessam por mim, porque não atendo as expectativas. Preferem uma coisa assim meio acabada. É, são ramos que faturam como os outros faturavam na época dos filmes alegres, da exaltação, do Brasil tropical. Tem um bando de gente que acha que tem de vender isso. Eu acho que tem de refletir a realidade, sabe? Eu acho que de oito anos para cá que o pessoal está querendo isso. O pior de tudo é quando a pessoa quer fazer filmes com uma realidade que não é nossa. Querem copiar o modelo americano. Primeiro que não funciona. A gente tem de beber é aqui.

Dentro desse modelo de financiamento do cinema brasileiro, não existe um certo paralelo entre o que você mostra no filme e esse papel do Estado, que delega o financiamento dos filmes às empresas que investem em uma imagem boa para si?

Sergio Bianchi - É uma coisa complicada, mas não interfere em nada.

Interferir não, mas investem para ter uma imagem social. Afinal, estão investindo em cultura. E não estão gastando nada, porque é imposto de renda.

Sergio Bianchi - Eu acho que a única revolução que de fazer na área cultural é prazo de validade. Entra um cara como secretário de cultura, entra com o ego dele, normalmente ele não é de cultura, é d e um partido menor que precisa ser contemplado com espaço. Ele não sabe administrar e cria um outro projeto, uma outra forma de administração. E no final, tudo é desmontado, menos os funcionários que ele contratou, é a burocracia na metástase. Eu peguei dinheiro de 12 estatais patrocinadoras. Eu só faço isso agora, durante seis meses. O dia inteiro é uma indústria de papel. Então eu só posso superar isso se eu super faturar o filme, pegar três vezes mais dinheiro e montar uma produtora com seis funcionários. Só que tudo é virtual. O filme vai ficar algumas semanas no Espaço Unibanco. Fizeram o processo ao contrário. Só que na hora que encrenca, ninguém vai admitir a quantidade de gente que ficou como intermediário. Acho que é o mesmo processo que ocorre no meu filme sobre a miséria. O problema não vai se resolver, porque gera uma quantidade enorme de desempregados. Hoje o problema do cinema brasileiro é que é muito mais fácil criar um fórum, um debate, do que resolver o problema. As pessoas estão eternamente em debate, você não encontra ninguém que não esteja viajando, participando de um fórum. O problema virou uma forma de sobrevivência. E muitos cineastas optaram por isso. 'Companheiros à luta, a luta continua'.

Na contabilidade do cinema, hoje, essa burocracia para se realizar filmes é cara?

Sergio Bianchi - Não quero cuspir em todo mundo. Tem gente muito legal que sobrevive a essa contingência negativa. O negativo é não ter espaço. Não há outra conversa.

Gasta-se muito com burocracia no cinema?

Sergio Bianchi - Aumentou muito. Tem o modelo laboterapia burguês. O MinC tem o concurso BO, de baixo-orçamento, para pessoas jovens e bem relacionadas, com 20 e poucos anos, todos doidos, sem necessidade de dinheiro para sobreviver. Aparecem coisas ótimas, mas é restrita a uma classe que pode trabalhar sem ganhar. E há aqueles cineastas que vivem da produção. Nós vivemos da produção, não há outro jeito. Aí, vem a paranóia, o capitalismo americano não deixa, sim, não deixa, mas deveria deixar? Ele faz bom negócio, quer mais é ganhar. Mas não quero falar de política cinematográfica. Isso é muito confuso. Por que entrei nisso?

Porque perguntei

Sergio Bianchi - Mas sou muito fora do jogo. Faz dois anos que não vou mais a lugar nenhum. Nem vou ver os filmes. Envelheci. Estou com 60 anos. E acho que não vai mudar. Essa gestão agora então é uma contratação só, estão inchando o Estado. É domínio do poder.

Você está falando em gestão federal?

Sergio Bianchi - Gestão do Brasil inteiro. Todos brigam pelo poder

Na gestão do Estado de São Paulo, com o Carlos Augusto Calil na secretaria da cultura, não se pode esperar um trabalho sério?

Sergio Bianchi - Não falarei do Calil, é meu melhor amigo. Tomara que ele sobreviva, que ele agüente. Ele é sério. Pega as coisas e faz funcionar.

Há espaço para pessoas sérias na estrutura social brasileira? Em seus filmes, você mostra que não

Sergio Bianchi - Só o erro dá dinheiro no Brasil. Adoro essa frase. O pior é que isso passou para as classes mais baixas economicamente. O baque da desesperança do novo rico passou para os pobres. Eu acho complicado. É a alma do lugar. Poder não é só o cargo, é impor a sua alma

Você começa o filme com um ex-escrava que se torna senhora de escravos

Sergio Bianchi - Ela faz o jogo do sistema.

É impossível não fazer o jogo do sistema?

Sergio Bianchi - Ai, que pergunta! Você quer que eu inicie uma revolução armada brasileira. Imagine que vou responder isso. É o filme. É o personagem que falou isso.

Mas você criou o personagem, ele não existe em si

Sergio Bianchi - Eu observei a realidade e criei o personagem. O cara que faz um filme sobre a guerra do Vietnã é responsável pela guerra do Vietnã?

Não. Mas ele pode legitimar ou não a Guerra do Vietnã

Sergio Bianchi - Ah, sou provocador, gosto das contradições. Isso não é de agora, é desde o primeiro filme. Sempre gostei de Bertolt Bretch. É minha área cultural, minha criação, me considero um artista. É esse o meu caminho.

Quais os artistas com os quais você mais se afina?

Sergio Bianchi - Não tenho isso. Não vou ao cinema faz quatro anos. Fiquei recluso. Patologia mesmo. Não conseguia sair de casa e, para ir ao cinema, tem de sair de casa

E em seus anos de formação?

Sergio Bianchi - Ah, neo-realismo italiano.

Pasolini?

Sergio Bianchi - Todos eles.

Glauber Rocha teve alguma importância para você?

Sergio Bianchi - Não, não. Mas também acho que eu não era tão elaborado assim para entrar no nível das idéias dele. Gostava, esteticamente, aquela coisa brasileira, esteticamente nossa.

Esse é seu filme mais elaborado, com desenho de som muito sofisticado, um montagem toda conceitual

Sergio Bianchi - Cortamos coisas de dar dó.

É seu trabalho com uma luz mais caprichada e enquadramentos mais rigorosos. Partiu para esse projeto com disposição em cuidar mais da forma?

Sergio Bianchi - Tenho retardo mental com a imagem. Em meus primeiros filmes, eu não mexia a câmera em nada. Depois, movi um pouco. No próximo, terá piruetas.

Mas foi pensado assim desde o início, essa maior elaboração agora?

Sergio Bianchi - Filmar é um caos. Ainda mais agora, que tem 37 funções, todos atrapalhando, te enchendo a paciência, produtor jogando dinheiro fora. Tive um cara simpático que fez o som, um cara que despedi, porque ele escolheu como locação todos os lugares que passavam avião. Uma alegria. Por incompetência ou por sacanagem escolheu uma rota de avião. Equipe é sempre complicado, tenho problemas. Tens os aliados, que ficam até o fim, que seguram a peteca, mas é complicado, é colonizado. As pessoas aprendem na faculdade o modelo americano, mas nós não temos o modelo americano. O método e a burocracia tornam-se mais importante que a realidade que você tem. Não existe continuidade de trabalho, a não ser fotógrafo e montador, então as pessoas são sempre jovens, sempre estão começando. Tem de chegar lá e trabalhar com o que tem na hora. Decido na hora.

Como se vive de cinema no Brasil? 

Sergio Bianchi - Depende da produção alternativa que te sustenta nos intervalos das produções. Que versão você quer que te conte?. Posso dizer que agencio halterofilistas para fazer programas, que vivo de rendas, que faço crochê, que sou agente secreto ou que sou mantido por uma ONG. Não falo de meu dinheiro e de minha vida pessoal.

Seus filmes falam para os espectadores apenas ou sobre eles também? 

Sergio Bianchi - É provocação, fazem pensar

Demorou quanto tempo para realizar o trabalho? 

Sergio Bianchi - Fiquei quatro anos filmando. Filmei em três etapas, parava por falta de dinheiro e isso encarece a produção. Má organização de dinheiro. O produtor executivo, que gerencia o dinheiro captado, é sempre um problema. Não estou acusando ninguém, mas é um problema, todos os meus filmes sofreram isso. Chega uma hora o dinheiro acaba. E cada parada exige uma reorganização de tudo. Isso não é uma indústria. Tudo é virtual. Não há seleção natural.

E você acredita em indústria do cinema no Brasil? 

Sergio Bianchi - Quando alguém fala em indústria do cinema no Brasil, ou é lesado mental ou é filho de poderoso. Não o provoque porque baba ou é bandido, daqueles que garfam o Estado. Não há interesse que haja indústria. O império americano não deixa espaço. Alguns países europeus criaram mecanismos de defesa, mas nós criamos uma casta de gente que vive do erro. E se você vai falar isso te matam.

Você anda muito pelo centro de São Paulo, onde você mora. É seu campo de observação e inspiração? 

Sergio Bianchi - Eu acordo às 4h30, 5h00, e tomo café em uma padaria, ali na Praça da República. As primeiras pessoas que vão lá são cobradores de ônibus, faxineiras, e como são as mesmas sete pessoas, todos os dias, há uma irmandade muito louca, muito legal. Não tem como não ficar amigo, íntimo, é uma família que convive muitos anos. É gozado de ver agora o movimento de desesperança com a falência do PT. Eles são pessoas com dinheiro apertado. Pegam ônibus lá no fim do mundo, tem toda uma violência pelo caminho, são assaltados por pessoas da mesma classe. Ali na padaria, da porta para fora, é um perigo. Tem todo aquele clima. Quando chega alguém, não sabemos se veio para assaltar, para matar. Tem viciado em crack, é fim de noite, início de manhã, mas tem essa interação. E ali, de dois anos para cá, só há desesperança, individualismo atroz. Os pobres não são burros, têm compreensão da realidade deles, têm posturas diante das coisas. Tudo o que existe nas altas classes está indo lá para baixo. Aceita-se que todos roubem. um individualismo assustador. Eles estão se devorando, não reconhecem mais o inimigo. Cronicamente Inviável falava disso.

Quanto Vale? também, com o paralelo entre matador e caçador de escravos. 

Sergio Bianchi - Essa coisa da não explicação correta do jogo da escravatura é um absurdo. Nosso presidente vai lá e pede desculpa na África. Não há culpados. Alguém precisava vender lá e alguém precisava comprar aqui. Culpa-se quem, o transporte? Quem que se culpa? São coisas muito loucas. É da cultura africana, que não tem propriedade privada, fazer escravos dos inimigos, depois vendê-los. O colonizador europeu apenas descobriu que podia ganhar dinheiro com essa prática cultural. Nos contos do Machado de Assis, a gente vê que as coisas não são exatamente como foram ensinadas para a gente.


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