Gaguinho jogou o taco em cima da mesa e reclamou alto, em tom de desabafo, para que a corriola ouvisse.
"É bonito isso?"
Todo mundo ficou na encolha, esperando o que viria a seguir. E veio. Gaguinho insistiu na ladainha.
"É bonito isso?"
O silêncio no Bilhar do Papai era tanto que deu para ouvir alguém puxando a descarga no banheiro do fundo do salão. Ninguém abriu o bico. Gaguinho estava mordido. E não era para menos. Tinha encarado dois dias e duas noites cozinhando um pato gordo em banho maria e, no fim da batalha, quem estava na panela era ele. Repetiu o bordão choroso, indignado, cheio de ressentimento.
"É bonito isso?"
E Gaguinho foi em frente. Disse que o malaco tinha entrado no Papai com a maior pinta de pangaré, pedido um partido bacana e berimbau e que, na hora do vamos ver, matava mais do que a catapora. Falou que ia chamar a polícia, porque aquilo tinha sido um assalto à mão armada, um roubo.
"Diz aí, Paraná? É bonito isso?"
A pergunta, inesperada, deixou o negrão em papos de aranha. Apesar dos seus dois metros de altura e cento e muitos quilos. Olhos vermelhos e insones, Paraná esboçou um sorriso meio sem jeito e lascou a mumunha manjada.
Disse que o jogo era jogado, que tem o dia da caça e o do caçador, etc e tal e o escambau. Mas, apesar de ter caprichado na baba de quiabo, não convenceu nem um pouco ao velho malandro. Afinal, Gaguinho estava no prejuízo. Em 48 horas ininterruptas de pano verde tinha perdido uma nota quase tão preta quanto Paraná: dez mil pacotes. Uma fortuna.
Gaguinho era cobra criada, taco fortíssimo, tarimbado, afeito às grandes paradas, não tremia nem vacilava. Pelo contrário. Sabia das coisas, era um professor de picardia e desacato. Já tinha rodado o mundo em volta da mesa verde. Muitas vezes.
Então, como explicar sua derrota para um sem-pernas daqueles? Um zé-ninguém que, sem essa nem aquela, tinha se atrevido a descer as escadas do Papai para impor aquele vexame logo a ele, o Gaguinho falado, taco de responsa, conhecido e respeitado em todas as biroscas e muquifos de São Paulo? Gaguinho destilava sua raiva. Em voz alta.
"É bonito isso?"
Do outro lado da mesa, Mariana, o grande vencedor, fumava um cigarro sem pressa, disfarçando sua ansiedade. Mineiramente, pensava nos bolsos pesados, repletos de notas e folhas de cheques. Ao cruzar as pernas, sentiu o peso do relógio, nada menos do que um Omega de ouro, que tinha ganhado na última partida. Jóia.
Assim, entre uma tragada e outra no Continental sem filtro, Mariana, matutava um jeito de sair dali, sem dar na vista.
“Preciso me mandar deste cafôfo nem tão rápido que pareça debandada, nem tão devagar que pareça desaforo”, pensava.
E tinha bons motivos, pois Gaguinho parecia um leão. Estava bravo. Para valer.
"O que é que eu vou dizer lá em casa, hein negão? Que o meu velho amigo Paraná me arrumou um joguinho roubado, uma moleza, uma teta macia e que, no fim das contas, quem ficou a nenhum foi o Gaguinho aqui? É bonito isso?"
Enquanto Gaguinho espumava, Paraná se aproximou de Mariana e cochichou qualquer coisa em seu ouvido. O mineiro fechou a cara e sacudiu negativamente a cabeça. A corriola ficou na moita, intrigada, querendo saber que conversa era aquela. Gaguinho também.
"Qual é a marmota, Paraná?"
O negão ficou pálido, mas não teve tempo de responder. Mariana se adiantou. E abriu o jogo.
"A marmota é que o moreno ali quer que eu dê uma estia* pra ti... Ô Gago, se eu tô bem lembrado, foi tu quem disse que essa nossa parada era sem estia, sem choro nem vela, que aquele que perdesse que fosse chorar na cama que é lugar quente, tô certo? Então, não tem essa de estia! O justo é o combinado. Ou tu vai dar uma de rato e roer a corda?"
Gaguinho engoliu a seco o papo do adversário. Depois, devagar, foi se chegando para o lado do outro, até parar cara a cara com ele. Dava para ouvir o silêncio no salão imenso. Se fizesse um sinal, Mariana estaria frito. Ou assado. Talvez morto. A corriola não costumava perdoar quem se atrevia a baratinar algum taco da casa. Nunca.
Mas Gaguinho fez algo muito diferente. Surpreendeu a todos quando estendeu a mão para o parceiro. Simples assim. Sem dizer palavra. Mariana entendeu o recado. E agradeceu. Num segundo, virou o conhaque barato e, subindo a escada de dois em dois degraus, desapareceu na noite fria. Fora salvo pela coragem.
O silêncio era ainda absoluto, quando Gaguinho se debruçou na mesa. Paraná suava frio, apesar do tamanho. Ele também tinha caído na mineirice do malandro. Logo ele, mula velha. Azar. Seu erro custou caro a Gaguinho. Em dinheiro e orgulho.
"É bonito isso?"
De repente, Paraná viu que estava no meio da malandragem. Cercado. Viu Gaguinho pegar a bola sete. Viu a habilidade do jogador para fazer a bola preta girar por toda a mesa até voltar à sua mão, obediente.
Viu os olhares furtivos, em código, trocados pela corriola ressabiada. Viu a sete rolar pelo pano verde e voltar mais uma vez para Gaguinho. Então, viu (ou pensou que viu) uma coisa brilhar do lado direito de sua cabeça. Depois, não viu mais nada.
*Estia: gíria do jogo; significa a devolução ao perdedor de 10% da soma
total das apostas; essa prática, porém, costuma ser combinada antes
do jogo começar.
Carlão Bittencourt é redator publicitário e cronista,
autor de "Pela Sete - Breves Histórias do Pano Verde"
(2003, Editora Codex),
um mergulho no universo dos salões de bilhar de São Paulo,
e escreve toda semana em LEVA UM CASAQUINHO.
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