Thursday, May 19, 2016

ALORS... (por Marcelo Rayel Correggiari)



Posições políticas nos dias de hoje custam o fim de relacionamentos sociais e familiares que outrora se mostravam duradouros.

Por contaminação, os antigos debates estéticos sobre qualquer modalidade artística hoje são fontes inesgotáveis de colisão frontal. O lance de inserir qualquer ‘ideologia’, ou visão-de-mundo (em geral, naquela linha de “... o mundo segundo eu mesmo...”), em análises simples sobre um disco ou livro costumam criar severas desavenças.

Tempos atrás, em colóquio com a grande cantora e uma das maiores conhecedoras de música, cultura e vida francesas, Alice Mesquita, na presença do também sempre querido, e grande músico-instrumentista, Adinan Moraes, a artista meio que sentenciou o cenário pelas bandas de lá: a música francesa, aquela francesa, francesa mesmo, já não existia mais há algumas décadas.

Solucionando a colocação e pondo os pingos nos ‘i’s: a tradição da música francesa, seus traços característicos, uma música nativa feita por compositores nativos, símbolo das noções conhecidas daquela nacionalidade, deram lugar aos ‘produtos de mercado’, com uma forte abordagem ‘business’ nascida e criada nos Estados Unidos.

A França resistiu o quanto pôde à essa antecipação da ‘globalização’. Entretanto, ao abrigar imigrantes de antigas colônias, as formas de expressão passaram a se diversificar numa velocidade que o país até tentou incorporar, mas o processo de assimilação apagou justamente os traços anteriores da musicalidade que ali existia.



Bingo! Depois dos EUA, o país do rap é... a França! Não há ‘rapeadores’ mais criativos e musicais, em quantidade e qualidade, do que os franceses. Chegam a superar, em certos instantes, os próprios Estados Unidos. É coisa de maluco! Seja pela pegada sulista do Zebda, passando pelo Massilia Sound System e o Alliance Ethnik, ou pelo melodioso (e perto do genial!) Doc Gyneco, o rap francês é de cair o queixo, embalar corações e botar as cabeças para funcionar.

O que também se aplica ao rock do Noir Desir e ao pop rasgado, mas bom de palco, dos cinquentões do Indochine. Um traço comum nesses artistas: foram à luta sem mudar de idioma. Nomes consagrados de comunicação direta na língua local: alegria dos estetas e felicidade dos(as) alunos(as) de francês.

Contudo, a miscigenação e a presença de uma diversidade cultural pulsante nos jovens quase sempre com um smartphone no bolso costumam causar certos danos. Foi a população crescer e os últimos pilares que ainda resistiam começaram a ruir. Um deles foi o idioma.

Uma bola cantada pelo ‘melting pot’ comandado nos anos 1980-1990 pelo catalão Manoel Chao e seu inesquecível Mano Negra. A língua inglesa se imporia como necessidade de mercado ultramarino. Muita fragmentação cultural em território curto e a nacionalidade facilmente daria lugar a ‘dinheiro no bolso’.

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Mesmo em inglês, é possível curtir as baladas do The Enjoys ao lado de artistas de alto quilate como a cantora Zaz. Se já não é possível resgatar a música francesa com seus traços ancestrais, ainda há qualidade de repertório, composição e produção no que se ouve na França hoje em dia.

É bom não se esquecer que para aquilo que um artista se propõe a fazer, o resultado pode sair tremendamente a contento, ainda que você não goste ou curta um determinado estilo musical. Nessa seara, esta brava Mercearia traz à baila “Hope”, do duo francês Hugo Laboulandine & Alexandre Massé, que respondem pelo singelo nome de Montmartre.


“Hope”, do Montmartre possui algo inegável como ‘força de produto’: a tal ‘música de trabalho’ (ou aquela que mais se destaca em contato com a plateia). Nesse caso, “Out of Violence” ‘pega de jeito’, com uma letra pop devidamente encaixada à uma linha melódica carinhosamente amigável. A abordagem leve e dançante da faixa se origina das bases eletrônicas de bateria, baixo e sintetização em número certo e a serviço de chamar o(a) ouvinte para a pista de dança ou aumentar o volume do rádio pela manutenção de uma harmonia que não joga contra a melodia.

Em “Out of Violence”, número de instrumentos certo num equilíbrio perfeito de mistura desses elementos em favor da harmonia: simples, mas completamente bela. Mérito do Montmartre: menos é mais! Os meninos sabem que esse negócio de arrebentar o conduíte na parede pode ser uma grande sacanagem com o pedreiro.


Lançado mês passado, “Hope” mantém o ritmo em sua terceira faixa, “White Fields”, canção excelente para aquecer a pista de dança. Aliás, as três faixas de abertura do álbum, “Hope”, “White Fields” e “Out of Violence” mantém a proposta inicialmente indicada pelo duo francês: canções que ‘criam o clima’ para deixar o coração alegre.

Como tudo nesse mundo é longe do perfeito, as escorregadelas começam com a faixa 4 e 5, “Our Time is Now” e “Inside of Me”, respectivamente. Surge a proposta mais ‘pop’ do duo, com entrada de uma linha de guitarra e baixo mais acústico. Nada que comprometa seriamente o conjunto do disco/cd, mas as melodias começam a sofrer com arranjos questionáveis e uma espécie de ‘canções para encher linguiça’ (o grupo tinha um EP porreta e decidiu completar o LP com mais algumas canções meio que tiradas a fórceps).

A salvação da lavoura começa a partir da faixa 6, “Bring it Back” (com o Beat Assailant). Junto com as faixas 7, “Some Kind of Everything”, e 8, “So Special”, formam a fase ‘funkeada’ do álbum. Com destaque para “So Special”, com perfeito encaixe da linha de baixo e lição de casa do bom e velho funk norte-americano devidamente feita. Em “Bring it Back”, um suave ‘riff’ de guitarra dá o tempero de uma outra faixa desse recente trabalho do Montmartre que levanta qualquer pista de dança, além de flertar com um rap mais melódico.

Esse trecho do álbum, só para dar uma idéia ao(à) querido(a) freguês(a) dessa sacolejante Mercearia, seria como colocar no mesmo palco o também francês Daft Punk com os ingleses do Jamiroquai: fica parado quem quer. São três faixas, com as três iniciais, que valem o investimento da aquisição do cd/lp.

A partir da faixa 9, “I’ll Be Waiting”, até o final do disco, a faixa 12, “Earth”, começa a parte do disco ‘papo-cabeça-descolado-veja-como-somos-transadíssimos’ e uma experimentação questionável entra em campo. Dizemos, aqui, questionável bem mais pelo arranjo e covardias harmônicas pouco instigantes ou desafiadores para paladares mais exigentes do que pela coragem de pô-los em prática. Aquela parte de uma obra artística que dá para viver sem.


No caso do(a) freguês(a) ser um(a) roqueiro(a) inveterado(a), siga o conselho do compositor Lobão sobre ‘easy-listening’: “(...) é uma merda (...)” [sic]. Exceto o beijo-na-boca com a Disco nas três primeiras faixas e o inconfundível funk na 6, 7 e 8, há um risco sério de ‘easy-listening’ para inclinações a posturas mais ‘pegajosas’ ou ‘pesadas’ quanto à preferência sonora.

O trabalho é muito bom, mas carece de certa uniformidade musical (a masterização e qualidade de gravação são muito boas). Montmartre acaba fazendo mais história com seus vídeo clips, de alguma relevância cinematográfica e de direção de arte, do que com a possibilidade de apresentar um LP sem altos e baixos.

Principalmente por conta das quatro últimas faixas do álbum. Seria bom se decidirem: ou partem para uma proposta compatriota ‘a la’ Daft Punk (também em língua inglesa), ou terão de comer muito feijão-com-arroz para, um dia, soarem iguais aos franco-suíços do Cassius.


Bom, voltando àquela noite quando Alice Mesquita sentenciou sobre o desaparecimento da música francesa...

Entre uma e outra fatia de pizza, e o ouvido atento do Adinan (que só ficou observando a conversa), discordei da nobre cantora pelo conhecimento mais recente do que se anda fazendo em termos de música mais ‘popular’ em terras francesas. Contudo, mão à palmatória: não se faz mais música na França como antigamente.

Tudo acabou indo pelo ralo do ‘produto de mercado’, um novo público menos atento pintou pelas bandas de lá e as influências definitivamente deram meio que fim na natureza da música francesa. Nada, volto a dizer, que invalide a qualidade do que se faz por lá hoje em dia: há muita, mas muita coisa boa sendo produzida, com uma qualidade técnica que não deve nada a ninguém.

Porém, deixemos tal tarefa para o(a) querido(a) freguês(a) dessa farinhante Mercearia. Afinal, sempre faremos votos de que desacordos como a que tivemos com a querida Alice, e não a música francesa, terminem em pizza.



Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 47 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO


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