AS ABELHAS
SOLETRAM FLORES NO INVERNO
“”ribeirão
saído do mar
casco
carcomido
o
barco persegue o prumo
da
primavera sem eixo
o
horizonte dum verso
atalaia
sei
que ao val
marujos
não mais voltam ao porto
cada
segundo é a dicção duma ortografia
em
escala engolindo seu oposto
numa
tarde de outubro vi a aurora
no
anoitecer:
trocada
a noite pelo dia:
alvorecer
enquanto o sol esvai docemente”
CAVALO AZUL
[ - poema musicado pelo maestro e compositor
Gilberto Mendes em CD, outubro de 2010, para o coro da Osesp e a soprano Martha
Herr ]
“Não
cansei negar meus laços
Para
esse feroz precipício
De
pentimentos a vil poeira
No
que dores e sorrisos
Sinto
arder peito aflito
Antecipo
o raiar nas vagas
Tenho
o rumor da sorte
A
vós da rebentação
-
aviso o temor insano
Jaz
a pomba na oliveira
Que
transida pobre suspira-me
Em
silvos de emoção
Perpassa
os planos infindos
Do
excelso universo
E
, por vales e veredas,
O
canto se dissolve.
Soam
naves de auroras
Que
delírio de ranger e pranto
Clamam
anjos de encantos
Quando
serena alma à morte
Quem
ainda ao mundo tem apego?
Mesma
sepultura dor e egoísmo
Vai
o candido amor sem castigo
Liberto
o espelho de narcisos
E
o amor liberto dos amargurados
Lírios,
espelhos e nascentes
Para
o eterno são chamados
Não
cante dor, os poemas
Cessem
pressentimentos
Floradas
polinizam vento
Acaso
e razão beijam.
Onde,
quando, pelo Tempo
Dores,
prantos, rastros, só
Onde
a sorte? Por quê a sina ?
Nem
as nuvens do horizonte
Restam
algum do céu tão cinza.
Ó
enormes crinas sem halo
Libertas
da dor e travo nunca mais sombra nua
Só
Oceano vasto....”
POEMA PORTO
“Sobrevivi
ao naufrágio da paixão
encerrei
todas viagens além-mar esperando no mesmo porto de partida
o
amor é um barco não mais à deriva
agora
tornei-me eu mesmo o cais
fugi
ao fogo de minhas quimeras
não
eram sonhos, eram tempestades sem murmúrio
que
seja condenado mil vezes pela culpa que não carrego
mas
nunca me julguem pelo arrependimento daquilo que deveria e não cometi por medo
do desejo que hoje me aponta o dedo sem mais Amor que não vivido....
no
verão quedei as velas
no
verão estaquei as âncoras
no
verão fiz-me albatroz num penhasco tosco
agora
tornei-me eu mesmo cais e desterrado marinheiro
chegado
o outono e quando soar o sino , não estiveres por perto
o
templo ainda reverbera em ti o sentido daquele instante
não
mais consolação / ainda assim o silêncio compartido ecoa dum maio
que
também partia depois da magia duma noite sem retorno
não
tens mais aquele maio / nem mais aquela precisa noite
volta-te
ao mar da tua origem : a ele pede reflexos que retenham a lembrança: que as
vagas contenham nos ondas o pó do teu destino
quando
o inverno diz mais uma vez solidão
mais
uma vez solidão no inverno : responde terno,
tiveste
num maio pausa ao tormento;
foste
o homem com seu amado
das
ruas em silêncio / do vinho ainda em teu hálito,
cálamo
num casto leito
paixão
em teu repouso
a
Vida não é entendível
compreender
no vácuo do absurdo
no
gesto donde escreve amor sem mais amor para ser lido
não
mais carta que te chegam, mas outrora a linha do horizonte promete Aurora
foste
apartado do meu Tempo / mas desde o copo ‘a boca nenhum amargor
rescende
à ranço
poeta,
esvoaço
é
a manhã que me sopra e preenche o lastro
a
fala dos anjos que crêem nas páginas ainda em branco
vai!
por quem quiseres e aceita que a folha siga
como
o acaso que arde ainda em brasa
torna-te
ode / elegia
eras
um corpo, Amor
agora
erra como poema na estante
só
amanhece no rosto que move a escrita
longe
é onde a ausência é menos que o desespero
impossível
é estado da desistência precipitado pelo medo
Poesia
é a razão sobrevoando de asas soltas o Eterno
é
amor de caso pensado;
se
amas, mergulha, nada deve ser deixado pela metade
nem
o naufrágio se tanto queiras....
hoje
estou livre da paixão do teu corpo
embarcou
um Oceano em mim....”
POEMA AO OLHO DE
DEUS
“A
linguagem é quando rompemos sodomizados
por
um Deus imagético de estrelas em sustenido
só
Deus é capaz de gozar ejaculando
adjetivos
reticentes
essa
paixão epidérmica pela palavra
me
puxa feito quem se deleita
fornicando
entre as ondas dum mar bravio de violáceas
escamas
resisto
mesmo naufragando de mim
se
somos rosto fugaz do Devir
que
seja o Verbo rebento
um
rosto que resta diluído pelo acaso passageiro das esferas na água oca dos
espelhos opacos
Deus
penetra-me sem estrofes
réstia
/ fresta
trepadeira
da alma em tronco
fungos
entrecortados de veios de açucena
permeiam
o pulmão do mundo exalando arbóreo oxigênio por alvéolos incandescentes
que
estiletam o ar de setas trespassando o acaso....
duas
forças competem entre minhas costelas dilaceradas de significados exangues:
longe e nunca....
toda
poesia de minhas entranhas nisso se contêm quedas da violação de meus sentidos
eviscerados
longe
e nunca....
aí
! emasculado do divino: escrevo
orgasmo
cósmico entre a rosa túmida
entre
minhas ancas tortas como a órbita de Urano
criar
é um ato anti-natural
viver
é apenas passar por apuros entre lúcida do vazio e o nada
existir
é um travo semântico de nossos membros e células consumindo-se no esforço
insano de desatar o absurdo
poesia
é então o elaborado sêmen infértil dum vício solitário perpetuado por signos /
gestos ou insondáveis rebentos de galáxias distantes dum agora contínuo mesmo
sem mais o meu e teu gosto...
é
preciso mastigar o que escreve nas coisas por nós
o
pensamento criativo liberta: o ex-pensamento é o encontro da palavra com o
mundo: Poesia
não
esquece a bagagem, mesmo que o destino seja o nunca
ele
nasce com o invólucro sedoso e nos despacha com pano sem nenhum apuro
esse
amontoado, esse chamado, destino....
a
vida é um nada imperdível / nascer ao lado do mar, desde os mais antigos
ancestrais, foi sina de ser vocacionado para a sondagem...a inquietação
alternando profundidade: todo disparate me soa verdade do Oceano em mim.
Eu
´causo-me´ espécie as vezes.
Não
saber quem sou foi meu primeiro estalo para sentir-me escritor, para fazer-me
poeta. A vida para mim? é fazer tudo por acreditar / tudo está por acreditar
....
Esse
esforço insano por crer / ainda assim nessa lida nunca me senti tão convencido
mais comigo.... estava disperso até da minha sombra, essa sorrateira que também
deve ser trazida e tragada ao conversar com minha luz. Ensimesmo.
Três
horas.... a madrugada é uma senhora deflorada parindo mil auroras porvir enquanto
imagino alguém matutando num hotel em Adis-Abeba ou Tókio no instante pleno que
eu também exista.... sempre há alguém vibrando nosso mesmo Tempo: esse amor
longínquo diz-me com intuição voltada ao hemisfério ocidental do meu corpo e toda
vontade do meu dorso, que terei um inverno afetuoso aquecido pela face doutro
rosto
onde
a entrega só é possível depois de feito nosso acerto de contas...eu chamo o
ponto P dentro de mim:
meu
cerne por aflorar. Quanto mais desaprendo é o recomeço do sentido. Amas? É o
enigma / respondes? é o anúncio do desacerto
o
desejo vem na emergência de um esvaziamento extremo. Tenta o oco de ti:
encontrarás um fóssil recheado de resquícios do que não foste. O homem sem alma
foi descoberto nas ruas.... um poeta o identifica pela senha dos olhos de quem
vê longe e denso.... de repente era uma multidão de desalmados ...enjaularam o
poeta que sopra cantos como Orfeu: versos sem preocupação mais de se libertar.
Você é a medida de quem ama; do que....busco o pássaro da noite / afasto-me dos
espectros que ofuscam o paraíso terreno. A elaboração do luto nasce da fala / o
que se perdeu recomeça no reinvento das cinzas”
FAROL SEM LUME
“Parti
mirando-te de mim o cabo de ilha agra /
assim
partindo nos distamos dos amores tidos
sabendo
chegado o inverno ingente /
força
me pediram os ventos
a
nobre lida de largar-me sem mais contigo
a
vida toda se justifica na tarde o brilho
enleado
no olvido das esperas, sigo
segue
junto o marinheiro
guilda
rara dos viajantes
sóbrio
/ sobranceiro
seu
delírio escorre
na
torre de vigia
rente
ao léu o tombadilho espreita
divisa
algum murmúrio insolente de estrelas
faltam
nessa aurora / o poeta exilado em sua gruta
o
andante guia
Oceano
basta ao profeta seu destino
O
mar quando em teus braços estreito é noite de estio
na gasosa relva
nauta sem redes ou moradia
vaga
despojando-te
dos dias em terra
a ti caminho
nada peço
além de ondaaaaaaaa
que não seja a reverberação do
recomeço....”
Poeta, contista e crítico literário,
Flávio Viegas Amoreira é das mais inventivas
vozes da Nova Literatura Brasileira
surgidas na virada do século: a ‘’Geração 00’’.
Utiliza forte experimentação formal
e inovação de conteúdos, alternando
gêneros diversos em sintaxe fragmentada.
Vem sendo estudado como uma das vozes
da pós-modernidade literária brasileira
em universidades americanas e européias.
Participante de movimentos culturais
e de fomento à leitura, é autor de livros como
Maralto (2002), A Biblioteca Submergida (2003),
Contogramas (2004) e Escorbuto, Cantos da Costa (2005).
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