Friday, January 19, 2018

FACE POEMAS (por Flávio Viegas Amoreira)


AS ABELHAS SOLETRAM FLORES NO INVERNO


”ribeirão saído do mar
casco carcomido
o barco persegue o prumo
da primavera sem eixo
o horizonte dum verso
atalaia
sei que ao val
marujos não mais voltam ao porto
cada segundo é a dicção duma ortografia
em escala engolindo seu oposto
numa tarde de outubro vi a aurora
no anoitecer:
trocada a noite pelo dia:
alvorecer enquanto o sol esvai docemente”



CAVALO AZUL

 [ - poema musicado pelo maestro e compositor Gilberto Mendes em CD, outubro de 2010, para o coro da Osesp e a soprano Martha Herr ]

“Não cansei negar meus laços
Para esse feroz precipício
De pentimentos a vil poeira
No que dores e sorrisos
Sinto arder peito aflito
Antecipo o raiar nas vagas
Tenho o rumor da sorte

A vós da rebentação
- aviso o temor insano
Jaz a pomba na oliveira
Que transida pobre suspira-me
Em silvos de emoção
Perpassa os planos infindos
Do excelso universo
E , por vales e veredas,
O canto se dissolve.

Soam naves de auroras
Que delírio de ranger e pranto
Clamam anjos de encantos
Quando serena alma à morte
Quem ainda ao mundo tem apego?
Mesma sepultura dor e egoísmo
Vai o candido amor sem castigo
Liberto o espelho de narcisos
E o amor liberto dos amargurados
Lírios, espelhos e nascentes
Para o eterno são chamados
Não cante dor, os poemas
Cessem pressentimentos
Floradas polinizam vento
Acaso e razão beijam.

Onde, quando, pelo Tempo
Dores, prantos, rastros, só

Onde a sorte? Por quê a sina ?
Nem as nuvens do horizonte
Restam algum do céu tão cinza.

Ó enormes crinas sem halo
Libertas da dor e travo nunca mais sombra nua
Só Oceano vasto....”



POEMA PORTO

“Sobrevivi ao naufrágio da paixão
encerrei todas viagens além-mar esperando no mesmo porto de partida
o amor é um barco não mais à deriva
agora tornei-me eu mesmo o cais

fugi ao fogo de minhas quimeras
não eram sonhos, eram tempestades sem murmúrio

que seja condenado mil vezes pela culpa que não carrego
mas nunca me julguem pelo arrependimento daquilo que deveria e não cometi por medo do desejo que hoje me aponta o dedo sem mais Amor que não vivido....

no verão quedei as velas
no verão estaquei as âncoras
no verão fiz-me albatroz num penhasco tosco
agora tornei-me eu mesmo cais e desterrado marinheiro

chegado o outono e quando soar o sino , não estiveres por perto
o templo ainda reverbera em ti o sentido daquele instante
não mais consolação / ainda assim o silêncio compartido ecoa dum maio
que também partia depois da magia duma noite sem retorno

não tens mais aquele maio / nem mais aquela precisa noite
volta-te ao mar da tua origem : a ele pede reflexos que retenham a lembrança: que as vagas contenham nos ondas o pó do teu destino

quando o inverno diz mais uma vez solidão
mais uma vez solidão no inverno : responde terno,
tiveste num maio pausa ao tormento;
foste o homem com seu amado
das ruas em silêncio / do vinho ainda em teu hálito,
cálamo num casto leito
paixão em teu repouso

a Vida não é entendível
compreender no vácuo do absurdo
no gesto donde escreve amor sem mais amor para ser lido
não mais carta que te chegam, mas outrora a linha do horizonte promete Aurora

foste apartado do meu Tempo / mas desde o copo ‘a boca nenhum amargor
rescende à ranço

poeta, esvoaço
é a manhã que me sopra e preenche o lastro
a fala dos anjos que crêem nas páginas ainda em branco
vai! por quem quiseres e aceita que a folha siga

como o acaso que arde ainda em brasa
torna-te ode / elegia
eras um corpo, Amor
agora erra como poema na estante
só amanhece no rosto que move a escrita

longe é onde a ausência é menos que o desespero
impossível é estado da desistência precipitado pelo medo

Poesia é a razão sobrevoando de asas soltas o Eterno
é amor de caso pensado;
se amas, mergulha, nada deve ser deixado pela metade
nem o naufrágio se tanto queiras....

hoje estou livre da paixão do teu corpo
embarcou um Oceano em mim....”

 POEMA AO OLHO DE DEUS

“A linguagem é quando rompemos sodomizados
por um Deus imagético de estrelas em sustenido
só Deus é capaz de gozar ejaculando
adjetivos reticentes

essa paixão epidérmica pela palavra
me puxa feito quem se deleita
fornicando entre as ondas dum mar bravio de violáceas
escamas

resisto mesmo naufragando de mim

se somos rosto fugaz do Devir
que seja o Verbo rebento
um rosto que resta diluído pelo acaso passageiro das esferas na água oca dos espelhos opacos

Deus penetra-me sem estrofes
réstia / fresta
trepadeira da alma em tronco
fungos entrecortados de veios de açucena
permeiam o pulmão do mundo exalando arbóreo oxigênio por alvéolos incandescentes
que estiletam o ar de setas trespassando o acaso....

duas forças competem entre minhas costelas dilaceradas de significados exangues: longe e nunca....
toda poesia de minhas entranhas nisso se contêm quedas da violação de meus sentidos eviscerados
longe e nunca....

aí ! emasculado do divino: escrevo
orgasmo cósmico entre a rosa túmida
entre minhas ancas tortas como a órbita de Urano

criar é um ato anti-natural
viver é apenas passar por apuros entre lúcida do vazio e o nada

existir é um travo semântico de nossos membros e células consumindo-se no esforço insano de desatar o absurdo
poesia é então o elaborado sêmen infértil dum vício solitário perpetuado por signos / gestos ou insondáveis rebentos de galáxias distantes dum agora contínuo mesmo sem mais o meu e teu gosto...
é preciso mastigar o que escreve nas coisas por nós
o pensamento criativo liberta: o ex-pensamento é o encontro da palavra com o mundo: Poesia
não esquece a bagagem, mesmo que o destino seja o nunca
ele nasce com o invólucro sedoso e nos despacha com pano sem nenhum apuro
esse amontoado, esse chamado, destino....
a vida é um nada imperdível / nascer ao lado do mar, desde os mais antigos ancestrais, foi sina de ser vocacionado para a sondagem...a inquietação alternando profundidade: todo disparate me soa verdade do Oceano em mim.
Eu ´causo-me´ espécie as vezes.
Não saber quem sou foi meu primeiro estalo para sentir-me escritor, para fazer-me poeta. A vida para mim? é fazer tudo por acreditar / tudo está por acreditar ....
Esse esforço insano por crer / ainda assim nessa lida nunca me senti tão convencido mais comigo.... estava disperso até da minha sombra, essa sorrateira que também deve ser trazida e tragada ao conversar com minha luz. Ensimesmo.
Três horas.... a madrugada é uma senhora deflorada parindo mil auroras porvir enquanto imagino alguém matutando num hotel em Adis-Abeba ou Tókio no instante pleno que eu também exista.... sempre há alguém vibrando nosso mesmo Tempo: esse amor longínquo diz-me com intuição voltada ao hemisfério ocidental do meu corpo e toda vontade do meu dorso, que terei um inverno afetuoso aquecido pela face doutro rosto
onde a entrega só é possível depois de feito nosso acerto de contas...eu chamo o ponto P dentro de mim:
meu cerne por aflorar. Quanto mais desaprendo é o recomeço do sentido. Amas? É o enigma / respondes? é o anúncio do desacerto

o desejo vem na emergência de um esvaziamento extremo. Tenta o oco de ti: encontrarás um fóssil recheado de resquícios do que não foste. O homem sem alma foi descoberto nas ruas.... um poeta o identifica pela senha dos olhos de quem vê longe e denso.... de repente era uma multidão de desalmados ...enjaularam o poeta que sopra cantos como Orfeu: versos sem preocupação mais de se libertar. Você é a medida de quem ama; do que....busco o pássaro da noite / afasto-me dos espectros que ofuscam o paraíso terreno. A elaboração do luto nasce da fala / o que se perdeu recomeça no reinvento das cinzas”



FAROL SEM LUME

“Parti mirando-te de mim o cabo de ilha agra /
assim partindo nos distamos dos amores tidos
sabendo chegado o inverno ingente /
força me pediram os ventos
a nobre lida de largar-me sem mais contigo

a vida toda se justifica na tarde o brilho
enleado no olvido das esperas, sigo
segue junto o marinheiro
guilda rara dos viajantes
sóbrio / sobranceiro
seu delírio escorre
na torre de vigia
rente ao léu o tombadilho espreita
divisa algum murmúrio insolente de estrelas

faltam nessa aurora / o poeta exilado em sua gruta
o andante guia
Oceano basta ao profeta seu destino

O mar quando em teus braços estreito é noite de estio
na gasosa relva         

nauta sem redes ou moradia
vaga
despojando-te
dos dias em terra


a ti caminho
nada peço
além de ondaaaaaaaa
que não seja a reverberação do recomeço....”

 
Poeta, contista e crítico literário,
Flávio Viegas Amoreira é das mais inventivas
vozes da Nova Literatura Brasileira
surgidas na virada do século: a ‘’Geração 00’’.
Utiliza forte experimentação formal
e inovação de conteúdos, alternando
gêneros diversos em sintaxe fragmentada.
Vem sendo estudado como uma das vozes
da pós-modernidade literária brasileira
em universidades americanas e européias.
Participante de movimentos culturais
e de fomento à leitura, é autor de livros como
Maralto (2002), A Biblioteca Submergida (2003),
Contogramas (2004) e Escorbuto, Cantos da Costa (2005).




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