Wednesday, January 16, 2019

SATORI EM BAGDÁ (por JR Fidalgo)



Absurdo não é viver nessa guerra sem fim, mas sim sentir que não há nada a fazer sobre isso. Você está nas cordas. Os socos em sequência fazem você beijar a lona. O gosto do sangue se mistura à sensação de pedaços de dentes se mexendo de um lado para o outro na boca. Ainda assim você se levanta antes do juiz gordo e careca conseguir contar até dez. Dessa vez, vai ser diferente. Você vai, enfim, descobrir um jeito de acabar com a porra dessa guerra.

Mas logo você percebe que a coisa ficou ainda mais violenta. Então tenta arrancar as entranhas com as mãos. Apesar da dor insuportável, não consegue parar. Na guerra não há espaço para compaixão. É privilégio para fracos, covardes, desertores. E eles vivem te assegurando que você não é um deles. E eles sempre têm razão, porque já lutaram em mais guerras do que o número de anos que você já viveu até hoje. E você descobre que já não se lembra mais quantos anos já viveu até hoje. Tudo passou muito rápido.

No momento, porém, isso não tem importância, porque você acorda no dia seguinte, olha para o chão e procura por suas entranhas. Elas deviam estar bem ali, no chão, ao lado da sua cama. Mas não estão. Tudo está limpo, muito limpo. Até você está limpo. Limpo e inteiro. Ao que parece, suas entranhas ainda estão dentro de você.

Então você se levanta, pronto para continuar. Continuar a guerra. Começa a bater forte com a cabeça contra a parede do quarto. De repente percebe que já está bem em frente ao espelho do banheiro.  Cacos brilhantes de diversos tamanhos se espalham pelos ladrilhos, misturados com o sangue que esguicha do seu rosto.

Você perde algum tempo tentando recompor a imagem do seu rosto refletida nos pequenos caquinhos de espelho ensangüentados espalhados pelo chão do banheiro, mas logo desiste. Não há dúvida de que você está em desvantagem perante o inimigo. Precisa revidar de imediato. E revida.

Os dedos da sua mão direita se quebram em vários pedaços ao atingirem com toda a força possível a porta do guarda-roupa. A dor foi forte e você urrou como um gorila que esmaga os bagos contra o galho da árvore onde estava sentada a última fêmea do grupo ainda no cio.

O golpe, contudo, foi inevitavelmente necessário. Retaliar o ataque inimigo de imediato é vital para impedir que ele deduza que você está começando a ficar debilitado, vulnerável, mesmo que você, no fundo, saiba que é exatamente isso o que está acontecendo. Na verdade, você não está apenas muito debilitado e vulnerável. Você está literalmente fodido, mas esse é um segredo de estado que até mesmo seus últimos e poucos neurônios ainda ativos se recusam a revelar, mesmo sob a mais cruel e infinita das torturas.

É justamente nesse ponto que eles lhe garantem que a melhor defesa é um ataque. E claro, como sempre, eles devem saber do que estão falando. Já mataram muito mais gente do que vários terremotos e furacões, incendiaram vilas, povoados, fizeram cidades sumir dos mapas, acabaram com países e até exterminaram raças que hoje ninguém mais lembra que existiram, foram absolvidos em mil julgamentos de crimes contra a humanidade, condecorados com mil medalhas por atos de extremo heroísmo e inestimáveis serviços patrióticos prestados aos seus respectivos governos.

Então parece lógico que você precisa levar a sério o que eles dizem. Deve atacar o quanto antes, para evitar que o pior aconteça, embora você já não tenha a mínima noção do que seria esse pior que todos eles se esforçam tanto para evitar. De qualquer modo, você sabe que há uma guerra lá fora, ou aqui dentro, ou lá fora e aqui dentro, ou aqui dentro e lá fora. Afinal, você já não sabe mais onde os combates estão sendo travados nos últimos tempos, embora as explosões e os tiros pareçam a cada dia mais perto, lá fora e aqui dentro. Talvez mais perto aqui dentro do que lá fora. Ou talvez ao contrário. A cada explosão e a cada tiro sua noção de dentro e fora se alterna e se confunde em ritmo progressivamente alucinante, ou aliciante. Foda-se!

Seja como for, mesmo que essa guerra talvez nunca mais possa ser vencida ou justificada ou explicada – e você nem saiba direito onde ela está sendo travada neste exato momento -, ela precisa ser lutada até o último homem, até o último pedaço de dente cuspido da sua boca depois do último soco que te faz beijar a lona, até a última entranha arrancada de dentro de você por suas próprias mãos, até o último pedaço de dedo esmigalhado contra a porta do guarda-roupa, até a última gota do sangue misturado aos cacos brilhantes de espelho espalhados no chão de seu banheiro.

A melhor defesa é um ataque. E é óbvio que eles sabem do que estão falando. Então, só pra clarear um pouco as idéias, você engole alguns calmantes e anfetaminas, obviamente empurrados goela abaixo com água mineral. Vodca ou gim seria algo muito radical e você não quer saber de radicalismo, mas sim de um plano sutil que engane o inimigo a respeito da sua total, absoluta e inconfessável vulnerabilidade.

A melhor defesa é um ataque. Mas exatamente o que essa porra significa, você se pergunta, enquanto vomita na privada e percebe que uma razoável quantidade do vômito caiu também na sua camisa.

Já havia acontecido inúmeras vezes antes, mas era sempre estranho acordar com aquela sensação de que alguém estava armando alguma coisa perigosa para você, alguma coisa que poderia definitivamente foder com você de uma vez por todas.

No entanto, era melhor deixar isso pra lá por enquanto e se concentrar em trocar os curativos dos pulsos. Você não fazia isso há uns dois dias pelo menos e aquela merda podia acabar infeccionando e provocando problemas realmente graves.

Nada radical, nada radical, você repete em voz alta, enquanto tenta nervosamente desenfaixar os pulsos. Aliás, aquilo, dos pulsos, havia sido uma coisa realmente estúpida. Estupidamente burra e estupidamente radical.

Consegue primeiro retirar a atadura do pulso esquerdo, depois, do direito. Os cortes estão com aspecto razoável, embora ainda sem nenhum sinal de cicatrização.

Aperta os pulsos, tentando ver se consegue fazer sangrá-los de novo. Não parece uma idéia nem um pouco sensata, mas você continua fazendo isso, sentado na privada, enquanto, como sempre acontecia quando estava com sua bunda em cima de uma privada, se esforça ao máximo para tentar fazer com que seus intestinos funcionassem sem que uma grande e longa batalha precisasse ser travada para liberar o que precisava ser liberado, o que raramente acontecia. 

Não demora muito para que seus pulsos, pressionados alternadamente por você, primeiro o esquerdo, depois o direito, comecem a sangrar de novo, e bastante, no chão do banheiro, bem próximo à privada.

Logo, porém, você deixa de prestar atenção nas poças de sangue que se formam ao redor da privada, já que seus intestinos começam finalmente a se movimentar – e de forma rápida e violenta. Você começa a sentir então que sua bunda é constantemente molhada pelos respingos que a grande quantidade de bosta que sai do seu rabo provoca, ao bater com força na água do fundo da privada.

Conclui que terá que lavar o rabo no chuveiro, quando aquele bombardeio de merda finalmente acabar, o que parece já estar começando a acontecer, já que suas entranhas dão os primeiros sinais de que estam finalmente se acalmando.

Mas aí você percebe que, para lavar a sua bunda lambuzada dos respingos de toda aquela bosta que saiu do seu rabo, bateu na água do fundo da privada e voltou em pequenas gotas para o seu traseiro, você terá de sujar os seus pés, que estão descalços, naquele sangue todo que continua a escorrer dos seus pulsos para os ladrilhos do chão do banheiro, próximo à privada onde você continua sentado, sentindo suas entranhas irem lentamente se acalmando.


Talvez seja melhor ficar ali, imóvel, sentado na privada, esperando o resto do sangue escorrer dos pulsos. Pelo menos você não vai precisar lavar a bunda quando terminar de cagar, nem sujar os pés.



JR Fidalgo: um jornalista que tem preguiça de perguntar, um escritor que não tem saco pra escrever e um compositor que não sabe tocar. (mas que, mesmo assim, já escreveu três romances e uma quantidade considerável de canções ao longo dos últimos 45 anos)


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