Uma
das tônicas da música brasileira da segunda metade do século XX é a de forma e
conteúdo servirem à ideia de mudança. Canções com letras em versos abertos e
estruturas modernas traduziram foneticamente o salto desenvolvimentista das
décadas de 1950 e 60, e a redemocratização dos 80 teve impacto forte no
ambiente pop brasuca . Duas canções-chaves desses momentos aproximam-se nos
formatos e temas de vontade de futuro: “Chega de Saudade”, de Tom Jobim e
Vinícius de Moraes; “Fullgás”, de Marina Lima e Antonio Cícero. Funcionam como
polaróides do que o crítico literário José Guilherme Merquior chamou de
“saudade às avessas”, ou seja, o sentimento de falta do que ainda não veio como
vetor para transformação.
Escritas por dois poetas que queriam rearranjar o contexto das letras de seus respectivos momentos, “Chega de Saudade” e “Fullgás” subverteram a prática comum . A música das décadas de 1950, com temas de tristeza e abandono, e de 1970, ainda com ranços ou de binarismo ideológico, ou sublimação sociopolítica, foi relida, respectivamente, por Vinícius de Moraes e Antonio Cícero de modo a renovar os motivos e perder a empostação. O amor ainda como tristeza, a política ainda como engajamento, mas tratadas de forma solar e individualista, algo que já tinha ocorrido pelos (e)feitos do Modernismo, no início do século XX.
“Chega de Saudade” (Tom Jobim, Vinícius de Moraes)
Vai
minha tristeza
E
diz a ela que sem ela não pode ser
Diz-lhe
numa prece
Que
ela regresse
Porque
eu não posso mais sofrer
Chega
de saudade
A
realidade é que sem ela não há paz
Não
há beleza
É
só tristeza e a melancolia
Que
não sai de mim, não sai de mim, não sai
Mas
se ela voltar, se ela voltar
Que
coisa linda, que coisa louca
Pois
há menos peixinhos a nadar no mar
Do
que os beijinhos que eu darei
Na
sua boca
Dentro
dos meus braços
Os
abraços hão de ser milhões de abraços
Apertado
assim, colado assim, calado assim
Abraços
e beijinhos, e carinhos sem ter fim
Que
é pra acabar com esse negócio de você viver sem mim
Não
há paz
Não
há beleza
É
só tristeza e a melancolia
Que
não sai de mim, não sai de mim, não sai
Dentro
dos meus braços
Os
abraços hão de ser milhões de abraços
Apertado
assim, colado assim, calado assim
Abraços
e beijinhos, e carinhos sem ter fim
Que
é pra acabar com esse negócio de você viver sem mim
Não
quero mais esse negócio de você longe de mim
Vamos deixar desse negócio de você viver sem mim
“Fullgás”
(Marina Lima, Antonio Cícero)
Meu
mundo você é quem faz
Música,
letra e dança
Tudo
em você é fullgás
Tudo
você é quem lança
Lança
mais e mais
Só
vou te contar um segredo
Não
nada
Nada
de mal nos alcança
Pois
tendo você meu brinquedo
Nada
machuca, nem cansa
Então
venha me dizer
O
que será
Da
minha vida
Sem
você
Noites
de frio
Dia
não há
E
um mundo estranho
Pra
me segurar
Então
onde quer que você vá
É
lá, que eu vou estar
Amor
esperto
Tão
bom te amar
E
tudo de lindo que eu faço
Vem
com você, vem feliz
Você
me abre seus braços
E
a gente faz um país
Você
me abre seus braços
E
a gente faz um país
Os
títulos deixam claro a relação negativa com questões de tradição. Moraes, em
“Chega de Saudade”, evoca um manifesto somente por seu título, enquanto
“Fullgás” condensa o termo “fugaz” com a expressão inglesa “full gas”,
expandindo as semânticas originais em sentido de urgência. Moraes espanta o
saudosismo, abrindo as portas para o país procurar seu lugar no mundo, e Cícero
reorganiza o futuro político, fechando as portas para o passado de chumbo
militar.
Ambas
as canções iniciam-se com pronomes possessivos na primeira pessoa e verbos na
segunda pessoa. O efeito de conexão com quem os ouve é imediato e mantido até o
fim. No caso de “Chega de Saudade”, há uma transição entre uma terceira pessoa
e o ouvinte, já que Moraes troca bruscamente os pronomes entre o terceiro e o
quarto versos, usando a ambiguidade do possessivo como ponte.
Os versos abusam de tônicas abertas e rimas deslocadas, que, por si só, tornam a melodia interna de ambas sincopadas e levemente desconjuntadas. A repetição de palavras é usada com o sentido de ênfase, para Moraes (“assim… assim…”), e de indefinição, para Cícero (“tudo… nada…”). Moraes prefere repetir pronomes na primeira pessoa, enquanto Cícero os suprime da conjugação de verbos e enfatiza o pronome na segunda pessoa. As letras funcionam como espelhos distantes de si mesmas e de seus momentos, ao mesmo tempo em que comunicam possibilidades de maneira clara e automática, ainda que extremamente modernas para seus contextos.
Em
um ensaio sobre “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, o crítico José Guilherme
Merquior propôs que o poema trata de futuro, e não de nostalgia. Segundo
Merquior, o que o poeta descrevia na comparação entre sua nação e o que via no
exílio seria a vontade de que seus sentimentos correspondessem à realidade.
Tratava-se, então, de uma ideia de futuro, na qual Dias descreveu o país que
gostaria que existisse, e não o que efetivamente era. A “saudade de futuro”
representaria uma força transformativa dentro da obra, e as letras de Vinícius
de Moraes e Antonio Cícero encaixam-se nesse ideal.
O
romantismo da década de 1840, a bossa nova de 1960 e o pop brasileiro de 1980
têm em comum o contexto de renovação de ideias e possibilidade para aberturas
comportamentais. Poesia, em livro ou canções, conecta esses sentidos de
mudança, e sua penetração popular indica o grau de legitimidade para ações
práticas. Entre o sólido e o fugaz, a saudade de futuro é uma marca da obra
popular de vanguarda no país.
Itamar Alves nasceu em Recife há 40 e poucos anos, foi criado em Santos e estudou no Colégio Canadá, onde foi aluno de Inglês do editor desta webpocilga aqui. Lembro que minha empatia por ele foi imediata. Fora da escola, viramos amigos. Diz ele que possui fotos perturbadoras minhas condensando secundárias no laboratório de Física, mas é pouco provável que as divulgue algum dia. Leciona Inglês e é um dos provocadores mais brilhantes que o Facebook já conheceu. No entanto, sou suspeito para falar disso. Julguem por sí próprios acompanhando os textos que Itamar envia para LEVA UM CASAQUINHO.
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