Monday, September 28, 2020

SAUDADE DO FUTURO (por Itamar Alves)

 

Uma das tônicas da música brasileira da segunda metade do século XX é a de forma e conteúdo servirem à ideia de mudança. Canções com letras em versos abertos e estruturas modernas traduziram foneticamente o salto desenvolvimentista das décadas de 1950 e 60, e a redemocratização dos 80 teve impacto forte no ambiente pop brasuca . Duas canções-chaves desses momentos aproximam-se nos formatos e temas de vontade de futuro: “Chega de Saudade”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes; “Fullgás”, de Marina Lima e Antonio Cícero. Funcionam como polaróides do que o crítico literário José Guilherme Merquior chamou de “saudade às avessas”, ou seja, o sentimento de falta do que ainda não veio como vetor para transformação.

 

Escritas por dois poetas que queriam rearranjar o contexto das letras de seus respectivos momentos, “Chega de Saudade” e “Fullgás” subverteram a prática comum . A música das décadas de 1950, com temas de tristeza e abandono, e de 1970, ainda com ranços ou de binarismo ideológico, ou sublimação sociopolítica, foi relida, respectivamente, por Vinícius de Moraes e Antonio Cícero de modo a renovar os motivos e perder a empostação. O amor ainda como tristeza, a política ainda como engajamento, mas tratadas de forma solar e individualista, algo que já tinha ocorrido pelos (e)feitos do Modernismo, no início do século XX. 

“Chega de Saudade” (Tom Jobim, Vinícius de Moraes)

 

Vai minha tristeza

E diz a ela que sem ela não pode ser

Diz-lhe numa prece

Que ela regresse

Porque eu não posso mais sofrer

Chega de saudade

A realidade é que sem ela não há paz

Não há beleza

É só tristeza e a melancolia

Que não sai de mim, não sai de mim, não sai

Mas se ela voltar, se ela voltar

Que coisa linda, que coisa louca

Pois há menos peixinhos a nadar no mar

Do que os beijinhos que eu darei

Na sua boca

Dentro dos meus braços

Os abraços hão de ser milhões de abraços

Apertado assim, colado assim, calado assim

Abraços e beijinhos, e carinhos sem ter fim

Que é pra acabar com esse negócio de você viver sem mim

Não há paz

Não há beleza

É só tristeza e a melancolia

Que não sai de mim, não sai de mim, não sai

Dentro dos meus braços

Os abraços hão de ser milhões de abraços

Apertado assim, colado assim, calado assim

Abraços e beijinhos, e carinhos sem ter fim

Que é pra acabar com esse negócio de você viver sem mim

Não quero mais esse negócio de você longe de mim

Vamos deixar desse negócio de você viver sem mim 


“Fullgás” (Marina Lima, Antonio Cícero)

 

Meu mundo você é quem faz

Música, letra e dança

Tudo em você é fullgás

Tudo você é quem lança

Lança mais e mais

Só vou te contar um segredo

Não nada

Nada de mal nos alcança

Pois tendo você meu brinquedo

Nada machuca, nem cansa

Então venha me dizer

O que será

Da minha vida

Sem você

Noites de frio

Dia não há

E um mundo estranho

Pra me segurar

Então onde quer que você vá

É lá, que eu vou estar

Amor esperto

Tão bom te amar

E tudo de lindo que eu faço

Vem com você, vem feliz

Você me abre seus braços

E a gente faz um país

Você me abre seus braços

E a gente faz um país

 

Os títulos deixam claro a relação negativa com questões de tradição. Moraes, em “Chega de Saudade”, evoca um manifesto somente por seu título, enquanto “Fullgás” condensa o termo “fugaz” com a expressão inglesa “full gas”, expandindo as semânticas originais em sentido de urgência. Moraes espanta o saudosismo, abrindo as portas para o país procurar seu lugar no mundo, e Cícero reorganiza o futuro político, fechando as portas para o passado de chumbo militar.


Ambas as canções iniciam-se com pronomes possessivos na primeira pessoa e verbos na segunda pessoa. O efeito de conexão com quem os ouve é imediato e mantido até o fim. No caso de “Chega de Saudade”, há uma transição entre uma terceira pessoa e o ouvinte, já que Moraes troca bruscamente os pronomes entre o terceiro e o quarto versos, usando a ambiguidade do possessivo como ponte.

 

Os versos abusam de tônicas abertas e rimas deslocadas, que, por si só, tornam a melodia interna de ambas sincopadas e levemente desconjuntadas. A repetição de palavras é usada com o sentido de ênfase, para Moraes (“assim… assim…”), e de indefinição, para Cícero (“tudo… nada…”). Moraes prefere repetir pronomes na primeira pessoa, enquanto Cícero os suprime da conjugação de verbos e enfatiza o pronome na segunda pessoa. As letras funcionam como espelhos distantes de si mesmas e de seus momentos, ao mesmo tempo em que comunicam possibilidades de maneira clara e automática, ainda que extremamente modernas para seus contextos. 

Em um ensaio sobre “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, o crítico José Guilherme Merquior propôs que o poema trata de futuro, e não de nostalgia. Segundo Merquior, o que o poeta descrevia na comparação entre sua nação e o que via no exílio seria a vontade de que seus sentimentos correspondessem à realidade. Tratava-se, então, de uma ideia de futuro, na qual Dias descreveu o país que gostaria que existisse, e não o que efetivamente era. A “saudade de futuro” representaria uma força transformativa dentro da obra, e as letras de Vinícius de Moraes e Antonio Cícero encaixam-se nesse ideal.

 

O romantismo da década de 1840, a bossa nova de 1960 e o pop brasileiro de 1980 têm em comum o contexto de renovação de ideias e possibilidade para aberturas comportamentais. Poesia, em livro ou canções, conecta esses sentidos de mudança, e sua penetração popular indica o grau de legitimidade para ações práticas. Entre o sólido e o fugaz, a saudade de futuro é uma marca da obra popular de vanguarda no país.



Itamar Alves nasceu em Recife há 40 e poucos anos, foi criado em Santos e estudou no Colégio Canadá, onde foi aluno de Inglês do editor desta webpocilga aqui. Lembro que minha empatia por ele foi imediata. Fora da escola, viramos amigos. Diz ele que possui fotos perturbadoras minhas condensando secundárias no laboratório de Física, mas é pouco provável que as divulgue algum dia. Leciona Inglês e é um dos provocadores mais brilhantes que o Facebook já conheceu. No entanto, sou suspeito para falar disso. Julguem por sí próprios acompanhando os textos que Itamar envia para LEVA UM CASAQUINHO.


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