Os fios estão bem na sua frente. Vermelho,
azul e verde. Você sabe a sequência em que devem ser desconectados para,
digamos, evitar acidentes. Vcoê foi treinado para isso.
É tudo uma questão de lógica, você pensa,
enquanto observa os fios: um azul, outro verde, outro vermelho. Incrível como
ainda há gente que se confunde, e você não consegue entender como isso
acontece.
Não importa, você conclui: é tudo questão de
lógica.
Não há, portanto, motivo para esse suor frio
escorrendo da sua nuca pescoço abaixo. Como também não há razão para suas mãos,
de repente, estarem úmidas.
Não, nada disso está realmente acontecendo.
Você deve estar imaginando coisas. Uma breve alucinação, mero sintoma de um
possível e leve estresse. Sim, é somente isso.
Interessante, essa sensação nunca surgiu
antes. Você sempre foi lá, desconectou os fios, fechou a maleta e deu o fora.
Agora está aí, olhando fixamente para esses fios, hipnotizado. Vermelho, azul,
verde e amarelo.
Amarelo? Não, não há nenhum fio amarelo.
Apenas um verde, outro azul, outro vermelho. Só três fios, três: um azul, outro
vermelho, outro verde. Três e somente três, e não quatro, e nunca amarelo.
Tudo é uma questão de lógica, apenas e tão
somente lógica. Amarelo, azul, vermelho. Espere! Você disse azul,vermelho e
amarelo? E onde está o verde? O verde! Apenas três fios, lembra? Três,
nenhum deles amarelo.
Afinal que diabos está acontecendo? E essa
merda de suor gelado ainda deslizando de sua nuca pescoço abaixo? E essas mãos
úmidas? E esse fio amarelo?
Porra, não há nenhum fio amarelo aí, você
esqueceu? Só vermelho, azul e verde. Lógica, questão de lógica. Três, apenas
três, três fios amarelos. Não! Amarelo, não. Apenas três fios, azuis, vermelhos
e verdes. Nove, no total.
Ei, você está se perdendo de novo. Volte a
fita, vá com calma. Apenas três fios, esses três fios que estão aí, nas suas
mãos, bem próximos à sua cara. Você precisa desconectá-los na sequência correta
para, digamos, evitar acidentes. Uma questão de lógica, pura e simples lógica.
Você foi treinado para isso.
Então você puxa primeiro o segundo fio
amarelo, depois o primeiro fio amarelo e, por fim, o último fio amarelo.
Incrível, tão simples que até uma criança
seria capaz de fazer. Claro, se as crianças tivessem um senso mínimo de lógica.
Você respira fundo, bem fundo, e continua
respirando fundo, ritmadamente, cada vez mais fundo e mais ritmadamente, até
sentir seus batimentos cardíacos voltarem ao normal.
Sua nuca não está mais fria e úmida, suas mãos
estão secas. Uma intensa e arrebatadora sensação de paz e totalidade envolve
você como um grande casulo aquecido.
Pronto, passou.
Tudo está bem agora.
Interessante, esse sentimento nunca
surgiu antes também. Você sempre foi lá, desconectou os fios, fechou a maleta e
deu o fora. E, por falar nisso, onde a maleta? Ela devia estar bem aí, ao seu
lado, ao alcance da sua mão direita, mas não está. Sua mão tateia o vazio até
tocar alguma coisa gosmenta, pegajosa.
Como tudo ficou escuro quando você desconectou
o último fio amarelo, você não consegue ver onde está sua maleta, nem
identificar essa coisa gosmenta e pegajosa que você tocou, depois apertou e
agora está grudada em sua mão direita.
Com a mão esquerda, você tenta limpar sua mão
direita, mas elas acabam ficando grudadas. Quanto mais você tenta afastá-las,
mais elas ficam presas uma na outra.
O estranho é que isso não chega a incomodar
muito, pelo menos não tanto quanto a sensação de que suas pernas, do nada,
pareceram crescer alguns metros, talvez muitos metros, entre seus pés e suas
virilhas.
Então você percebe que essa sensação de pernas
elásticas não pode ser real, porque, na verdade, você não consegue sentir
seus pés e, assim, não há como saber se suas pernas cresceram muitos metros
entre seus pés e suas virilhas, até porque você descobre que também não
consegue sentir suas virilhas.
Você aperta os olhos e tenta enxergar alguma
coisa, quem sabe sua maleta, através da escuridão, mas não consegue ver um
palmo diante no nariz. Aliás, você gostaria, neste momento, de coçar seu nariz,
apenas porque sabe que isso é impossível, já que suas mãos estão grudadas.
Mas, espere um pouco. Estranho, suas mãos
agora não estão mais grudadas. Então você tenta tocar seu nariz com a ponta do
indicador da mão direita, mas você não consegue ter a noção exata de para onde
encaminhar seu dedo em direção à ponta do seu nariz. Seu polegar vaga no
escuro, de um lado para o outro, para cima e para baixo, até, de repente, tocar
naquela coisa pegajosa e grudenta que você já tocou antes, com sua mão direita.
Você fica com raiva e enfia o dedo bem fundo
na coisa pegajosa e grudenta e sente como se a sua mão toda estivesse sendo
sugada para dentro dessa coisa nojenta. Agora metade de seu braço direito já
está dentro da coisa. Você tenta puxar o braço, mas percebe que está
completamente sem forças.
Você começa a desconfiar que algo muito sério
está acontecendo.Tenta repassar os fatos a partir do momento em que puxou
o último fio amarelo e tudo ficou escuro, mas não consegue lembrar de
absolutamente nada, embora tenha certeza de que tudo aconteceu minutos ou mesmo
segundos atrás.
Você sente um gosto horrível na boca. Oh, não,
a coisa pegajosa e nojenta está agora grudada em seus lábios, o que signifca
que sua mão direita, seu braço direito e pelo menos metade do seu rosto já
foram sugados pela coisa. Mas você não sente dor, apenas um terrível enjôo e
vontade de vomitar, vomitar muito. Mas como vomitar com os lábios grudados por
essa coisa nojenta?
Você procura se controlar. E, curiosamente,
tenta fazer isso pensando nos fios que há pouco você desconectou, os três fios
amarelos. Espere um pouco, não havia nenhum fio amarelo, lembra? E você
desconectou três fios amarelos. Como isso é possível?
Fique calmo, fique calmo, você implora para si
mesmo, mas algo nojento está subindo como um míssil a partir de seu estômago em
direção à sua boca. E sua boca está grudada pela coisa nojenta, e o míssil está
subindo, e sua boca está grudada, e o míssil está subindo…e você desconectou os
três fios, três fios amarelos, mas não, não poder ser, não existia nenhum fio
amarelo, lembra? Então, como é possível?
O míssil, a sua boca grudada, a coisa pegajosa
e nojenta, as luzes se acendendo de novo, fortes, muito fortes, um grande
clarão, sua maleta voando em direção…em direção de onde?
Não, não importa, nada disso importa agora. É
tudo uma questão de lógica, pura e simplesmente lógica.
E, afinal, acidentes acontecem…