A pretexto do lançamento da autobiografia da jornalista feminista Gloria Steinem "Minha Vida Na Estrada" (Bertrand Brasil, 392 páginas, R$49,90), LEVA UM CASAQUINHO resgata o clássico texto em forma de diário com suas aventuras ao longo de quase dois meses como coelhinha de um Clube Playboy, conforme publicado na revista novaiorquina SHOW de Maio de 1963.
SEXTA-FEIRA, 25
25/01/1963
Passei a tarde inteira inventando uma história
pessoal para Marie. Compartilhamos o mesmo apartamento, o mesmo telefone e as
mesmas medidas. Embora ela seja quatro anos mais nova do que eu (eu já passei
do limite de idade para ser Coelhinha), Marie e eu comemoramos nossos
aniversários no mesmo dia e estudamos na mesma escola e na mesma faculdade. Mas
ela não se deixou escravizar pelos estudos — não, não Marie. Depois de um ano
ela me largou, me empurrando pelo caminho que me levaria a um bacharelado, e
embarcou num vôo charter para a Europa. Ela não tinha um centavo, mas curtos
períodos trabalhando como garçonete em Londres, como dançarina em Paris e
secretária em Genebra foram o bastante para bancar seus verões de rata de praia
e suas outras escapulidas. Ela voltou para Nova York no ano passado e trabalhou
temporariamente como secretária. Três amigos em comum concordaram em dar fortes
recomendações pessoais. Todos que a conhecem a adoram.
Amanhã é o grande dia. Marie sairá deste caderno
pela primeira vez e entrará no mundo real. Estou de saída para comprar uma
malha para ela.
SÁBADO, 26
26/01/1963
Hoje vesti as roupas mais teatrais que pude
encontrar, enfiei a malha numa bolsinha e caminhei até o Playboy Club. E
impossível não vê-lo. O discreto prédio de escritórios e a galeria de arte que
ocupavam o local foram transformados num reluzente retângulo de vidro. O
interior acarpetado de laranja é claramente visível, de fora, com uma
moderníssima escadaria flutuante espiralando clube acima pelo centro. O efeito
geral é alegre e surpreendente.
Atravessei em direção ao clube onde um homem de
meia-idade, vestindo uniforme de guarda particular, sorriu e chamou:
– Pst, pst, pst, pst, Coelhinha… — Ele ergueu o
dedão e apontou para a porta de vidro à esquerda. — As entrevistas são lá
embaixo, no Playmate Bar.
O interior do clube estava iluminado com tal
dramaticidade que levei alguns segundos para me dar conta de que estava fechado
e vazio. Desci uma pequena escadaria e fui cumprimentada por uma tal Srta.
Shay, uma mulher magra, de seus trinta anos, que encontrava-se atrás de uma
escrivaninha no bar escuro.
— Coelhinha? —perguntou, asperamente. — Sente-se
ali, preencha este formulário e tire o casaco. — Pude ver que duas das mesas já
estavam ocupadas por outras garotas curvadas sobre o lápis. Olhei para elas com
curiosidade. Eu chegara bem no meio do horário de entrevistas, esperando ver o
maior número possível de candidatas, mas havia apenas três. — Tire o casaco — a
Srta. Shay repetiu. Ela me examinou atentamente enquanto eu o fazia. Uma das
garotas se levantou e caminhou até a escrivaninha, os saltos altos de acrílico
estalando contra seus calcanhares, emitindo segurança e charme.
— Me diga uma coisa — ela disse. — Você vai querer
as medidas com ou sem sutiã?
— Com — respondeu a Srta. Shay.
— Mas eu sou maior sem — a garota contrapôs.
— Está certo — disse a Srta. Shay, um tanto
enfadada. — Sem.
Outras duas garotas desceram as escadas. Tinham uma
aparência de frescor, não usavam maquiagem.
— Coelhinhas? — indagou a Srta. Shay.
— Não exatamente — disse uma, mas a outra pegou uma
ficha. Os cabelos longos e os mocassins denunciavam o status de universitárias.
O formulário de solicitação de emprego era curto:
endereço, telefone, medidas, idade e os três últimos empregos. Terminei de
preenchê-lo e resolvi ganhar tempo lendo um prospecto intitulado SEJA COELHINHA
DO PLAYBOY CLUB! O folheto continha, ern sua maioria, fotos: uma foto em grupo
mostrava Coelhinhas “escolhidas de todos os cantos dos Estados Unidos” rodeando
“o presidente do Playboy Club e editor da revista Playboy, Hugh M. Hefner”; um
close de uma Coelhinha servindo um drinque a Tony Curtis “um devoto do Playboy
Club que em breve estrelará um filme de Hugh M. Hefner intitulado,
apropriadamente, Playboy”; duas Coelhinhas sorridentes ao lado de Hugh M.
Hefner no “Playboy Show, exibido em cadeia nacional”; Coelhinhas distribuindo
exemplares da revista Playboy num hospital para veteranos de guerra “em um dos
inúmeros projetos comunitários dignos dos quais participam as Coelhinhas”; uma
Coelhinha loura, de pé, diante de uma senhora de aparência maternal, a “Mamãe
Coelha”, oferecendo “conselhos pessoais”; e na última página uma garota de
biquíni, agachada no convés de um iate com a bandeira com o coelhinho da
Playboy. O texto: “Quando você se tornar uma Coelhinha, seu mundo será alegre,
divertido e sempre excitante”. Citava um salário médio de duzentos dólares por
semana.
Mais uma garota desceu as escadas. Ela usava óculos
de armação azul e um casaco muito menor do que ela. Eu a observei enquanto
perguntava, nervosa, à Srta. Shay se o clube aceitava garotas de dezoito anos.
— É claro que sim — respondeu a Srta. Shay. — Só não
podem trabalhar no turno da meia-noite.
Entregou uma ficha para a garota, olhou as pernas
gorduchas e não pediu que tirasse o casaco. Mais duas garotas entraram no bar,
uma vestindo legging rosa e a outra legging roxo.
— Nossa, esse lugar é um estouro — disse Rosa.
— Se achou isso aqui um estouro, devia ver a casa de
Hugh Hefner em Chicago — disse Roxa. A Srta. Shay olhou para elas com
aprovação.
— Não tenho telefone — disse Armação Azul com
tristeza. — Posso dar o telefone do meu tio? Ele também mora no Brooklyn.
— Pode, então — disse a Srta. Shay. Ela pediu para
que me aproximasse, indicou um local a uns três metros de sua escrivaninha e
pediu para que ficasse ereta. Fiquei.
— Eu quero tanto ser coelhinha — disse Armação Azul.
— Li a respeito disso numa revista, lá na escola.
A Srta. Shay me perguntou se eu realmente tinha 24
anos.
— Está muito velha — ela avisou. Disse a ela ter
achado que passaria por um triz. Ela concordou com a cabeça.
— Meu tio passa o dia inteiro fora — disse a garota
—, mas eu irei para a casa dele e passarei o dia inteiro ao lado do telefone.
— Faça isso então, querida — disse a Srta. Shay e
virou-se para mim: – Tomei a liberdade de marcar uma hora para você na quarta-
feira às seis e meia. Entre pela entrada de serviço e vá até o sexto andar.
Procure a Srta. Burgess, a Mamãe Coelha. — Concordei e ela acrescentou: — Você
tem certeza de que não se inscreveu antes? Uma outra Marie Ochs veio aqui
ontem. Fiquei perplexa. Como poderia Marie ter escapado das páginas de meu
caderno? Eu tive uma fantasia de trinta segundos baseada em Pigmalião. Ou será
que havia uma outra Marie Ochs? Possível era, mas não provável. Decidi partir
para a valentia.
— Que esquisito — murmurei. — Deve haver algum
engano.
A Srta. Shay deu de ombros e sugeriu que eu
trouxesse um maiô ou uma malha na quarta.
— Posso ligar para cá? — perguntou Armação Azul.
— Não faça isso, querida — disse a Srta. Shay. —
Deixe que nós ligamos para você.
Deixei o clube preocupada com a expectativa de vida
de Marie Ochs. Será que eles descobririam tudo? Será que eles já sabiam? Quando
cheguei à metade do quarteirão, encontrei as duas universitárias. Estavam
encostadas num prédio abraçando o próprio corpo, às gargalhadas. E de repente
eu me senti bem melhor a respeito de tudo aquilo. Tudo, talvez, menos imaginar
Armação Azul, em estado de alerta, sentada ao lado do telefone do tio.
QUARTA-FEIRA, DIA 30
30/01/1963
Cheguei ao clube, pontualmente, às seis e meia e os
negócios pareciam estar a todo vapor. Os clientes faziam fila, na neve, para
entrar e vários transeuntes encontravam-se do lado de fora, com o rosto colado
na vidraça. O ascensorista, um porto-riquenho bonito com jeitão de Rodolfo
Valentino, me enfiou no elevador com dois carregadores negros uniformizados,
cinco clientes de meia-idade, duas Coelhinhas a caráter e uma matrona robusta
vestindo vison. Paramos no sexto andar.
— É aqui que eu fico? — perguntou a matrona.
— É claro, amorzinho — disse o ascensorista. — Se
quiser virar Coelhinha.
Risos.
Olhei ao meu redor. Iluminação suave e tapetes macios
haviam sido substituídos por blocos de cimento sem pintura e lâmpadas
penduradas dos bocais. Havia uma porta marcada OELHINHAS; dava para ver o
contorno onde antes houvera um “C”. Um aviso, escrito à mão num pedaço de
cartolina rasgada, dizia: BATAM!! Por favor, meninas. Dá para cooperar?!!
Passei pela porta e entrei num corredor iluminado e cheio.
Duas garotas passaram por mim. Uma vestia apenas a
calcinha de um biquíni e a outra vestia meias arrastão de trama delicada e
saltos altos lilás. Ambas entraram correndo na sala de figurinos à minha
direita, berraram seus nomes, pegaram seus uniformes e voltaram correndo.
Perguntei à responsável pela Srta. Burgess.
— Querida, acabamos de lhe entregar um presente de
despedida.
Outras quatro garotas saltitaram sala adentro
pedindo suas fantasias, golas, punhos e rabinhos. Vestiam meias-calças e salto
alto e nada da cintura para cima. Uma delas parou para examinar o quadro no
qual havia uma lista de “Coelhinha da Semana”.
Dirigi-me à outra extremidade do corredor. Dava para
um camarim enorme cheio de armários de metal e diversas fileiras de mesas.
Havia bilhetes colados aos espelhos (“Alguém quer trabalhar no Nível B no
sábado?” e “Vou dar um festão na quarta em Washington Square, todas as
Coelhinhas serão bem-vindas”). Havia cosméticos espalhados pelas bancadas e
três garotas sentavam-se lado a lado colocando cílios postiços com uma
concentração de iogue. Parecia uma caricatura do camarim de artistas de teatro
de revista.
Uma garota de cabelos muito ruivos, pele muito
branca e uma fantasia de Coelhinha de cetim preto deu as costas para mim e
aguardou. Entendi que queria que eu puxasse seu zíper, uma tarefa que levou
vários minutos de puxa e estica. Era uma garota grandalhona, de aparência um
tanto rude, mas a voz que me agradeceu era pequenininha como a de uma criança.
Judy Holliday não poderia ter feito melhor. Perguntei a ela a respeito da Srta.
Burgess.
— Sei. Ela está no escritório — disse Vozinha de
Bebê indicando uma porta de madeira com uma portinhola de vidro. — Só que a
nova Mamãe Coelha é Sheralee.
Através do vidro pude ver duas garotas, uma loura e
uma morena. Ambas pareciam ter vinte e poucos anos e não eram nada parecidas
com a matrona do prospecto. Vozinha de Bebê puxou e esticou mais um pouco.
—Este uniforme não é o meu — explicou. — É por isso
que está difícil de colocá-lo. — Ela se afastou estalando os dedos e
cantarolando baixinho.
A morena saiu do escritório e se apresentou como a
Mamãe Coelha, Sheralee. Eu disse que a confundira com uma Coelhinha.
— Cheguei a trabalhar para o clube quando inaugurou
no mês passado — disse. — Mas agora vou substituir a Srta. Burgess. — Ela
indicou a loura que experimentava um conjunto bege de três peças, provavelmente
seu presente de despedida. — Terá de aguardar um instante, querida.
Eu me sentei.
Às sete eu já tinha assistido a três meninas
eriçarem os cabelos até parecerem algodão doce e outras quatro encherem o sutiã
com lenços de papel. Até às 19:15, eu já havia conversado com outras duas
candidatas a Coelhinha, uma bailarina e uma modelo de meio expediente do Texas.
Às 19:30 testemunhei a maior crise da vida de uma Coelhinha que enviara a fantasia
para a lavanderia com a aliança de noivado presa com um alfinete pelo lado de
dentro. Às 19:40 a Srta. Shay subiu para avisar que “Não há mais ninguém além
de Marie”. Às oito eu estava certa de que ela esperava pelo gerente do clube
para que ele dissesse que haviam descoberto minha verdadeira identidade. Às
20:15 finalmente fui chamada e estava nervosa além da conta.
Esperei enquanto Sheralee olhava minha ficha.
— Você não tem cara de 24 anos.
Bem, acabou por aqui, pensei.
— Parece bem mais jovem.
Sorri, incrédula. Ela tirou diversas polaróides de
mim.
— É para os arquivos — explicou. Ofereci a história
que eu criara é datilografara com tanto esmero mas ela a devolveu sem nem
olhar.
— Não gostamos que nossas garotas tenham histórias —
ela disse com firmeza. — Só queremos que você se adeque à imagem da Coelhinha.
— Ela me mandou para a sala de figurinos.
Perguntei se devia vestir a malha.
-— Não perca tempo com isso — disse Sheralee. —
Queremos ver a imagem da Coelhinha.
A chefe de guarda-roupa mandou que eu me despisse e
começou a procurar um uniforme do meu tamanho. Uma garota entrou às pressas com
uma fantasia nas mãos, berrando por ela como um soldado ferido talvez pedisse
auxílio médico.
— Estourei o zíper — ela chorava. — Espirrei!
— E a terceira vez esta semana — disse a chefe de
guarda-roupas.
— Parece até epidemia.
A garota se desculpou, encontrou outra fantasia e
saiu.
Perguntei se um espirro realmente podia romper uma
fantasia.
— E claro que sim — ela assegurou. — Garotas resfriadas
normalmente precisam ser substituídas.
Ela me deu um uniforme de cetim azul. Estava tão
apertado que o zíper prendeu na minha pele quando ela foi fechá-lo. Ela me
mandou segurar a respiração enquanto tentava outra vez. Após conseguir deu um
passo atrás para me examinar com olhos críticos. A fantasia era tão cavada que
expunha meu quadril, assim como dez centímetros de bumbum branco. As barbatanas
da cintura teriam feito Scarlett O’Hara desmaiar e a estrutura como um todo
fora desenhada para puxar todas as carnes do corpo na direção dos seios. Eu
estava certa de que seria perigosíssimo me abaixar.
— Nada mal — declarou a chefe de guarda-roupa e
pôs-se a enfiar um imenso saco plástico na parte de cima da fantasia. Colocou
uma faixa com orelhinhas de coelha em torno de minha cabeça e um semicírculo de
material macio preso com um gancho no local mais arrebitado da parte traseira
da fantasia. — Muito bem, querida. Agora coloque os saltos e vá mostrar a
Sheralee. Olhei no espelho e a imagem da Coelhinha olhou para mim.
— Você está uma graça — disse Sheralee. — Encoste
naquela parede e sorria bem bonito para ver o passarinho.—Ela tirou várias
outras fotos com a polaróide.
A ruiva com voz de bebê entrou para avisar que ainda
não encontrara uma fantasia que coubesse. Uma minúscula lourinha vestindo cetim
lilás tirou o rabinho e se empoleirou na mesa.
— Olha — começou — , não ligo para os deméritos, já
recebi cinco. Mas eu não ganho pontos por trabalhar horas extras? Sheralee
pareceu desconcertada e dirigiu-se a Voz de Bebê:
— As garotas novas acham que as garotas de Chicago
recebem tratamento especial e as mais antigas não treinam as novas.
—Deixa que eu treino estas pestinhas — disse Voz de
Bebê. Mas me arruma uma fantasia.
Eu me vesti e esperei. E prestei atenção:
— Ele me deu trinta pratas e eu só fiz comprar
cigarros para ele.
— Abaixa aí, meu docinho, e se enfia nesta fantasia.
— Ah, sei lá. Acho que ele fabrica Leite de Magnésia
ou coisa parecida.
— Você sabia que tem gente que comete suicídio com
estes sacos plásticos?
— Aí o babaca pede Cortinas de Renda. Alguém lá já
ouviu falar em Cortinas de Renda?
— Eu disse a ele que nossos rabos eram de asbesto e
ele quis queimar o meu para ver se era verdade.
— Semana passada ganhei trinta pratas de gorjeta.
Grande coisa.
Sheralee me chamou de volta ao escritório.
— Então você quer ser Coelhinha — ela disse.
— Oh, sim. Gostaria muito — respondi.
— Bem… — Ela fez uma pausa significativa. — Nós
também queremos que seja!
Fiquei perplexa. Não haveria mais entrevistas?
Investigações?
— Chegue amanhã às três. Vamos tirar as medidas e
pedir para que assine algumas coisas. — Eu sorri e senti uma exultação tola.
Descendo as escadas e subindo Fifth Avenue. Saltitante
eu vou, sou uma Coelhinha!
QUINTA-FEIRA, DIA 31
31/01/1963
Agora tenho duas fantasias de Coelhinha: uma de
cetim laranja e outra azul-rei. A escolha de cores e a qualidade do cetim são
quase as mesmas dos catálogos de material esportivo. Os corpinhos das
fantasias, pré-cortados para caber em corpos e seios de tamanhos variados, são
experimentados na mesma hora. Aguardei, de pé, no piso de cimento, com os pés
descalços e uma calcinha de biquíni. A chefe de guarda-roupa me deu um
tapetinho de banheiro.
— Não dá para deixar uma Coelhinha novinha em folha
pegar gripe — foi o que disse. Perguntei se ela poderia seguir a linha do meu
biquíni; a fantasia que eu experimentara no dia anterior era mais cavada do que
qualquer uma que eu vira em fotografias. Ela riu. — Olha, querida, se você acha
que aquela estava cavada, devia ver umas que usam por aqui.
A fantasia foi aparada e apertada até estar com
cinco centímetros a menos do que minhas medidas em todos os locais, menos no
busto.
— Aqui você vai precisar de espaço para enchimento.
Quase todo mundo enche. E é aqui que você guarda as gorjetas. Chamam de “caixa
forte”.
Uma garota de cabelos negros e muito pó-de-arroz,
vestindo uma fantasia verde, parou à porta.
— Meu rabinho está caído — ela disse, arrumando-o
com um dedo. — Esses malditos clientes não param de puxar.
A chefe de guarda-roupa entregou-lhe um alfinete de
fralda.
— E melhor arrumar um rabinho mais limpinho do que
este, meu anjo. Vai arrumar um demérito se andar por aí com um rabinho
maltrapilho destes.
Outras garotas apareceram pedindo fantasias,
marcando o nome num caderninho preso ao balcão. Descobri que não era permitido
sair do prédio com a fantasia e que cada uma pagava dois dólares e meio pela
manutenção e lavagem da mesma. As Coelhinhas também pagavam cinco dólares por
um par de meias-calças pretas e podiam receber deméritos se usassem meias
rasgadas. A chefe de guarda-roupa me deu amostras de ambas as fantasias e me
disse para mandar pintar os sapatos para que combinassem com a roupa. Perguntei
se o clube pagava a pintura dos sapatos.
— Você enlouqueceu, meu bem? Esse lugar não dá
dinheiro para nada. E certifique-se de que são saltos dez. Vai arrumar um
demérito se usar mais baixos.
Eu me vesti e fui ver a Mamãe Coelha. Sheralee
estava sentada à escrivaninha. Com os longos cabelos presos, parecia ter
dezoito anos. Ela me entregou um formulário rosa-choque no qual estava escrito
“Solicitação para Coelhinhas” e uma maletinha de plástico marrom com a
miniatura de uma garota nua e THE PLAYBOY CLUB escrito em laranja.
— Esta é a bíblia da Coelhinha — ela me disse muito
séria. — Quero que me prometa que vai passar o fim de semana inteiro
estudando-a.
O formulário tinha quatro páginas. Eu já inventara
grande parte das respostas para a minha biografia mas algumas das perguntas
eram novas. Eu estava saindo com algum cliente do clube, se estivesse, qual o
nome dele? Nenhum. Pretende sair com algum cliente? Não. Tem ficha na polícia?
Não. Deixei o espaço destinado ao número de seguridade social em branco.
Subi um lance de escadas e entreguei o formulário à
Srta. Shay. A sala de chão de cimento estava pontilhada de escrivaninhas. Mas a
da Srta. Shay, como diretora de pessoal, ficava num canto. Ela vasculhou o
formulário e tirou mais polaróides de mim.
— Traga o cartão de seguridade social amanhã, sem
falta.
Eu me perguntei o que fazer sobre o fato de Marie
Ochs não possuir um. Um homem atarracado de terno azul, camisa preta e gravata
branca fez um gesto na direção de uma garota gorducha que se encontrava logo
atrás dele.
— O Sr. Roma disse que eu a trouxesse aqui e eu
ficarei muito grato por qualquer coisa que puder fazer por ela—ele disse,
piscando.
— Em casos de extrema recomendação pessoal — disse a
Srta. Shay com enorme indiferença. — Nós fazemos a entrevista imediatamente.
— Ela fez sinal para Sheralee que levou a garota
para baixo.O homem pareceu aliviado.
Uma ruiva, acompanhada de dois homens, se aproximou
mas a Srta. Shay pediu-lhes que aguardassem. O mais jovem deu um soquinho
brincalhão no queixo da ruiva e sorriu.
— Você não tem com o que se preocupar, benzinho. —
Ela o olhou com desdém e acendeu um cigarro.
Assinei um formulário de imposto de renda, vale
refeição, um recibo referente aos vales, um formulário de solicitação de
emprego, um outro de seguro e uma autorização para a divulgação de fotografias
para qualquer finalidade — publicidade, editorial ou outra — que escolhesse a
Playboy Clubs International. Um jovem em mangas de camisa, com aparência
bastante apressada, entrou para dizer à Srta. Shay que os dois homens que
trabalhavam no porão iam pedir demissão. Eles haviam esperado receber 75
dólares por seis dias de trabalho e iam trabalhar apenas cinco por sessenta.
Estavam descontentes e tinham famílias para sustentar.
-Não posso mudar coisa alguma — ela disse,
secamente. — Eu me limito a pôr em prática as decisões do Sr. Roma.
A Srta. Shay grampeou duas fotos polaróides à minha
solicitação de emprego e entregou-me os meus horários.
— Amanhã, irá ao Larry Matthews para lhe auxiliarem
com a maquiagem. Este fim de semana é para estudar a bíblia da Coelhinha e
marquei um horário na segunda para você fazer um exame médico.— Ela chegou para
frente e disse em tom de confidência:—Um exame completo. Segunda-feira é o dia
da palestra da Mamãe Coelha e do Papai Coelho. Terça-feira é dia de Escola de
Coelhinhas e quarta você treinará no próprio bar.
Eu perguntei se a consulta podia ser feita com meu
próprio médico.
— Não. Você precisa ir ao nosso médico para um exame
especial. É obrigatório para todas as Coelhinhas.
A Srta. Shay me mandou assinar um último formulário,
uma requisição para que uma cópia do registro do nascimento de Marie Ochs fosse
enviada para o Playboy Club. Eu o assinei, esperando que o estado do Michigan
demorasse um pouco para descobrir que Marie Ochs não existia.
— Enquanto isso, vou precisar ver sua certidão de
nascimento. Não podemos permitir que trabalhe sem que a vejamos. Concordei em
enviar uma carta urgente para casa para que a enviassem.
É claro que não me permitiriam servir bebidas
alcoólicas ou trabalhar à noite sem provar que era maior. Por que não pensei
nisso antes? Bem, o futuro de Marie talvez fosse curto mas talvez ela
conseguisse ao menos terminar a Escola de Coelhinhas.
TERÇA, DIA 12
12/02/1963
Duas das minhas colegas da Escola da Coelhinha,
Gloria e a assistente de mágico, juntaram-se a nós na Sala de Almoço. Peguei-me
explicando como servir o rosbife e como convencer os clientes de que estava
malpassado, bem-passado ou ao ponto, embora estivessem todos, na verdade,
idênticos.
Era dia do aniversário de Abraham Lincoln e o
movimento estava fraco. Ouvi a Coelhinha sem enchimento explicar que gostava de
homens mais velhos porque “eles te dão dinheiro”.
— Saí uma vez com um velho que conheci no clube e
arrumei mais duas Coelhinhas para os amigos dele. Sabe que ele me deu um cheque
de cem dólares só porque foi com a minha cara?
A Coelhinha sem enchimento explicou também que um
dos executivos da casa lhe havia dado setecentos dólares para comprar um
vestido.
— Eu tinha quinhentos dólares e comprei um vestido
de 1.200 -e ele me levou a uma festa vestindo o tal vestido.
Uma Coelhinha de cabelos escuros disse que conhecia
o mesmo cara de Chicago.
— Você e todo mundo — disse a Coelhinha sem
enchimento.
— Se você fosse contar todas as Coelhinhas que
saíram com o cara…
A Coelhinha de cabelos escuros estava pensativa.
— Nós tivemos um caso muito louco durante três
semanas. Foi loucura mesmo. Eu deveria saber que não ia dar em nada…
— Todas as garotas acham que vai dar em alguma coisa
— disse a Coelhinha sem enchimento em tom de consolo. — Mas nunca dá.
— Conversaram sobre o apartamento imenso do
executivo, sobre sua fortuna e impulsos românticos. Ele me pareceu um
exterminador.
Sem Enchimento se levantou para servir um cliente e
a Coelhinha de cabelos escuros olhou para ela com desdém.
— Duvido que ele tenha dado setecentos dólares para
ela – declarou com firmeza. — Ninguém arranca um centavo dele.
QUARTA, DIA 13
13/02/1963
Completei a lista de enchimentos de decotes:
1. Lenços de papel
2. Sacos plásticos
3. Algodão
4. Rabos de Coelhinhas
5. Espuma
6. Lã de carneiro
7. Absorventes íntimos cortados ao meio
8. Lenços de seda
9. Meias de ginástica
Descobri também que não só podemos sair com clientes
Número Um como com qualquer um a quem estes nos apresentem. Podemos sair também
com quem quer que conheçamos nas festas de Vic Lownes. Mas, no entanto, há
limites para esta pesquisa.
SEXTA, DIA 15
15/02/1963
A Sala de Almoço estava cheia de homens bebendo sem
parar porque é sexta-feira. Carreguei pratos de rosbife e a alternativa
especial de sexta-feira: truta. Coelhinha Gloria estava de pé, com uma bandeja
cheia de xícaras esperando que a cafeteira fosse enchida.
— Sabe o que nós somos? — perguntou, indignada. —
Garçonetesl
Sugeri que nos juntássemos ao sindicato.
— Sindicatos só servem para tirar o seu dinheiro e
não deixar que você trabalhe dois turnos — disse Vozinha de Bebê.
A assistente de mágico estava servindo uma mesa ao
lado da minha e concordava, sinceramente, com um cliente que dizia que nossas
fantasias eram “tão inteligentes e realçam tão bem as formas femininas”. Ela
tentava tanto fazer as coisas com “graça”, como mandava a bíblia, que não era
nada eficiente como garçonete. Ao nos programar com o que era, nas palavras de
uma outra Coelhinha, “um glamourzinho de merda”, o clube muitas vezes se
prejudicava.
Foi meu último dia de almoços e isso me deixava
muito contente. De alguma forma, os puxões nos rabinhos, as cantadas, os
beliscões e os olhos esbugalhados eram bem mais deprimentes quando o sol
brilhava além das paredes daquela sala sem janelas.
Encontrei Sheralee em seu escritório e contei a ela
a história que eu escolhera porque deixava as portas abertas caso eu precisasse
de mais informações: minha mãe estava doente e eu precisava passar algum tempo
em casa.
— Justo agora que estamos com uma falta enorme de
Coelhinhas! —ela exclamou, consternada, e perguntou quando eu estaria de volta.
Eu disse que não sabia, mas que ligaria. Ela me
entregou o salário da primeira semana: 35,90 dólares pelas duas noites na Sala
de Estar. Perguntei a respeito da primeira noite na chapelaria.
— O treinamento não é remunerado — ela disse.
Protestei que não fora treinamento. — Vou falar com o contador — concordou, sem
muita convicção.
QUINTA, DIA 21
21/02/1963
Quase uma semana se passou. Liguei para Sheralee
para dizer que voltara para buscar algumas roupas mas que precisava pedir
demissão. Ela me implorou para trabalhar no bar mais uma noite. Por algum
motivo (será que eu aprenderia alguma coisa nova?) eu me peguei aceitando.
SEXTA, DIA 22
22/02/1963
Mas foi exatamente a mesma coisa:
CHEFE DE SETOR: “AS suas mesas são aquelas: quatro
de quatro e três de dois”.
CLIENTE: “Se você é minha Coelhinha, posso levá-la
para casa?”
BARMAN: “Eles não param de mudar o tamanho das
doses: sobe, desce, desce e sobe. É de enlouquecer”.
COELHINHA: “Trabalhei na festa.privé da LoLo Cola e
ganhei seis latas de brinde. Grande coisa”.
CLIENTE: “Estou no Hotel New Yorker. Quarto 625.
Você vai lembrar?”
HOMEM: “Se mocinhas fossem grama, o que seriam os
mocinhos?”
COELHINHA: “Deixa eu ver… Cortadores de grama?”
HOMEM: “Não. Gafanhotos!”
Aviso na parede da despensa:
ESTE É O SEU LAR. NÃO JOGUE BORRA DE CAFÉ NA PIA.
SERVENTE: “Tem dinheiro saindo pelos lados da sua
fantasia, meu anjo”,
COELHINHA: “Ele é mesmo um cavalheiro. Trata você
bem, quer tenha dormido com ele ou não”.
Eram quatro da manhã quando entrei na Sala da
Coelhinha para tirar a fantasia. Uma loura bonita juntava duas cadeiras para
dormir. Ela prometera substituir outra garota no almoço, depois de oito horas
no bar, e não teria tempo de ir até em casa. Perguntei por que ela fazia uma
coisa dessas.
— Bem, a grana não é ruim. Ganhei duzentos dólares
na semana passada.
Finalmente eu encontrara alguém que ganhava o mínimo
do salário prometido. Mas para isso ela trabalhava sem parar.
No escritório de Sheralee havia um quadro com uma
lista das cidades onde seriam inaugurados os próximos clubes (Pittsburgh,
Boston, Dallas e Washington) e um papel amarelo intitulado O QUE É UMA COELHINHA?
“Uma Coelhinha do clube”, dizia o texto, “assim como
a Coelhinha da revista é… linda, atraente… Nós faremos o que estiver em nosso
poder para transformar você, Coelhinha, na garota mais invejada da América por
trabalhar no lugar mais glamouroso e excitante do mundo.”
Entreguei minha fantasia pela última vez.
— Tchauzinho, querida — despediu-se a loura. — Te
vejo nos quadrinhos.