MIJANDO NO BECO, O ESPÍRITO SANTO
E A ARTE DE FICAR INVISÍVEL
(1ª temporada, episódio 02)
Ainda estava no palco e alguém avisou que tinha que ir até o saguão da entrada do auditório para autografar o livro.
Disse que antes precisava ir ao banheiro. Nos bastidores escuros, vi um luminoso vermelho dizendo SAÍDA. Escapei por ali.
Realmente desesperado pra mijar, fiz xixi no beco atrás da faculdade onde havia feito a palestra, o workshop ou sei lá o quê.
Aliviado por esvaziar a bexiga, feliz por ter conseguido fugir da sessão de autógrafos e com medo de ser flagrado mijando quando deveria estar assinando livros, comecei a lembrar da loucura que me levou àquela situação, numa sequência de coincidências estúpidas, fatos improváveis e mal entendidos sem sentido.
Um velho amigo, com quem não mantinha contato há anos, me localizou no esconderijo onde tentava me aperfeiçoar na arte de ficar invisível.
Por e-mail e depois por celular, primeiro pediu desculpas por invadir minha “caverna”, depois perguntou se eu não estaria interessado em levantar alguma grana para continuar a bancar financeiramente a minha jornada espiritual rumo à invisibilidade.
Meses atrás, um antigo colega de uma editora onde trabalhou comentou que havia recebido uma encomenda de uma igreja onde havia um pastor pentecostal prodígio, na faixa dos 11 ou 12 anos. O garoto começava a fazer sucesso nos programas de rádio e televisão que a igreja mantinha em várias emissoras espalhadas pelo país.
Uma espécie de conselho superior da igreja, após “consultar o Espírito Santo”, decidiu que era hora de transformar o pastor prodígio em um poderoso líder espiritual, capaz de enfrentar e superar o nível de popularidade dos mais famosos pastores midiáticos do momento.
Afinal, um pré-adolescente que tinha o poder de falar em nome do Espírito Santo era, sem dúvida, um apelo de marketing muito forte.
O tal conselho concluiu que, para completar a estratégia de criar seu superstar neopentecostal, o pastor-prodígio precisava lançar um livro.
Não podia ser um livro parecido com os que dezenas de pastores andavam lançando nos últimos tempos.
O conselho achava que tais livros eram todos iguais, muito impregnados de citações bíblicas e redundantes menções a Deus e Jesus Cristo, mas distanciados do cotidiano onde os fiéis lidavam com seus problemas materiais, sentimentais, sensoriais, etc., etc.
Outro problema é que esses livros usavam uma linguagem muito “litúrgica”, ou algo que o valha. Então, o “pulo do gato” para turbinar a carreira do pastor-mirim seria uma espécie de livro de autoajuda explícita, com o aspecto religioso colocado sutilmente em segundo plano.
Pesquisas de instituições estrangeiras ligadas à igreja, além de algumas “revelações feitas diretamente pelo Espírito Santo”, haviam indicado que as pessoas estavam ansiando por um “neopentecostalismo de vanguarda”, seja lá o que isso significasse.
Haveria mensagens “evangelizadoras” baseadas em métodos de pensamento positivo simples, tipo os que apareciam nos calendários Seisho-No-Ie.
Seriam incluídas ainda algumas “citações científicas” coletadas de certas revistas femininas e programas vespertinos de TV, além de dicas para emagrecimento e outras “modernidades cotidianas”.
Isso traria o Evangelho para mais perto do dia a dia das pessoas. E tudo dito por um garoto iluminado que conversava diretamente com o Espírito Santo.
Resumindo, mais autoajuda secular de fácil assimilação e “menos Deus bíblico”, embora este continuasse sendo o “psicanalista supremo do Universo” e aquele que acabava realmente resolvendo as coisas, como os leitores acabariam descobrindo no final do livro.
Para fazer tudo isso acontecer, muito dinheiro estava sendo arrecadado para o projeto, por meio de generosas doações secretas de muitas pessoas importantes, no país e fora dele, cuja identidade ninguém seria capaz de imaginar.
O grande senão nessa história toda era que o colega de meu amigo estava se separando da esposa e, por causa disso, pretendia sumir para um lugar bem distante, tipo Austrália ou Groelândia. Sendo assim, não poderia aceitar a encomenda dos pastores, até porque já havia pedido demissão da editora que recebera a encomenda.
Encharcado de vinho, depois de ouvir a história de seu colega e de tentar consolá-lo um pouco a respeito da separação, meu amigo disse de repente: “Tenho o cara ideal para fazer esse troço funcionar. Só preciso saber se ainda está vivo e onde diabo se meteu.”
Os motivos que o fizeram lembrar do meu nome são até hoje um mistério, para ele e para mim.
De qualquer forma, meu amigo saiu do restaurante com a ideia fixa de que precisava me localizar de qualquer maneira. Eu era “o cara” certo pra escrever o livro de autoajuda da porra do pastor prodígio.
Como eu não estava vivendo no Polo Norte nem no Tibete, nem na Austrália nem na Groelândia, não foi tão difícil assim seguir meu rastro, após mandar alguns e-mails e dar alguns telefonemas.
No nosso primeiro contato telefônico, achei que ele estivesse chapado acima do normal ou tivesse virado o filme de vez, como se dizia antigamente quando alguém entrava em surto agudo.
Mas ele começou a contar que, no dia seguinte ao porre de vinho no jantar, ainda tremendo da ressaca, ligou para seu antigo colega de editora e perguntou como poderia conversar com os pastores.
Dois dias depois, durante uma reunião marcada em “caráter de urgência”, convenceu-os de que ele era a pessoa indicada para por em prática o projeto do pastor-mirim superstar. Afinal, já havia editado uma série de livros de autoajuda de sucesso “escritos” por pessoas famosas. Mais do que isso, conhecia o “cara” ideal para tocar a coisa.
Seja por interferência do Espírito Santo, por mera lógica mercadológica ou por algum acidente cósmico, os pastores compraram a ideia.
Só não entendia por que ele tinha lembrado de mim para fazer aquele tipo de trabalho.
Já havia escrito, por iniciativa própria ou sob encomenda, a respeito de inúmeros assuntos bizarros, mas jamais tinha feito qualquer coisa parecida com a que meu amigo estava propondo.
Além disso, havia pulado fora do circuito há tempos, avisando a quem interessasse que ia “mudar de vida”. Para os iniciados, isso significava que não planejava escrever mais porra nenhuma sobre porra nenhuma pelo resto da vida.
Contudo, irônica – ou tragicamente ou acidentalmente ou por obra do Espírito Santo, dependendo do ponto de vista -, eu me encontrava numa daquelas fases cíclicas de achar que minha passagem pelo planeta estava acabando de forma completamente irrelevante.
Estava de saco mais do que cheio de procurar a brecha e não encontrar porra de brecha nenhuma.
Além disso, meu dinheiro estava há tempos na reserva, quer dizer, o meu carro estava cada vez arriscado de parar na estrada, de noite e sem nenhuma alternativa de socorro, privado ou público.
Vai daí, resolvi continuar escutando o que meu amigo dizia ao telefone.
Aos poucos, comecei a imaginar que não devia ser assim tão difícil fazer o que ele estava propondo.
Na pior das hipóteses, eu acabaria desistindo no meio do caminho (uma das minhas especialidades em projetos mais ou menos longos) e voltaria pra minha caverna.
Ou, quem sabe, poderia, durante o processo, acabar virando o filme de vez, possibilidade que as cobras na cabeça sempre deixavam em aberto.
Sem deixar claro se aceitava ou não, comecei a colocar algumas condições absurdas que classifiquei como “inegociáveis”.
Não teria, em hipótese alguma, contato pessoal com o tal pastor-prodígio ou com qualquer outro representante formal ou informal da igreja deles. Os contatos, se necessários, só aconteceriam por escrito, via internet e sempre intermediados por meu amigo.
Meu amigo respondeu que eles iam achar esse tipo de coisa muito estranha, mas tentaria convencê-los de que esse tipo de “esquisitice” fazia parte do meu “sistema de trabalho” e era essencial para o bom andamento do projeto.
Despedimo-nos e ele ficou de entrar em contato novamente quando e se os detalhes avançassem.
um jornalista que tem preguiça de perguntar,
um escritor que não tem saco pra escrever
e um compositor que não sabe tocar.
(mesmo assim escreveu dois romances
e uma quantidade considerável de canções
ao longo dos últimos 40 anos - nota do editor)