CAPÍTULO XVIII
Após dois dias sem luz, João finalmente conseguiu arrumar algum dinheiro para solicitar à empresa de eletricidade que fosse feita a religação, o que só aconteceu um dia e meio depois. Quando, por fim, conseguiu ligar novamente o computador, encontrou novos textos de Jeremias em sua caixa postal
Afinal, que sentido havia naquela dissertação sobre bocetas, assunto do último e-mail de Jeremias? Que lugar aquilo poderia ocupar no enredo da história que Jeremias insistia em querer contar?
A fragmentação dos textos, o frequente descompasso temporal das situações que descrevia, as charadinhas idiotas, tudo isso já tinha virado rotina, quer dizer, João já tinha se conformado com o fato de que, se ia continuar metido naquilo, quem determinava o ritmo era Jeremias, e não ele. Mas aquela história de bocetas… Tudo bem, ele também adorava bocetas, mas e daí?
“E sobre o que é essa história?”
“É difícil explicar.”
“Mas você não tem nem uma vaga ideia do enredo da história?”
“É que tudo ainda está muito fragmentado. Ele muda de assunto de repente, depois retoma um outro assunto que tinha abordado vários e-mails antes. Além disso, vive introduzindo situações novas. É tudo muito caótico.”
“Bem, na verdade, saber do que trata a história que esse tal de Jeremias está querendo contar não tem a mínima importância. O importante aqui para nós é saber como é que você está se sentindo em relação a isso tudo.”
“Eu estou me sentindo perdido, angustiado, mas ao mesmo tempo excitado. Vou da depressão à euforia em fração de segundos. Será que eu sou um daqueles sujeitos com distúrbio bipolar. Afinal, muita gente hoje em dia tem esse negócio aí. Vai ver que eu tenho também.”
“Distúrbio bipolar não está em questão no momento. O que eu estou perguntando é como você vem se sentindo a respeito dessa coisa de seu amigo, que você não via nem tinha notícias há tantos anos, ter reaparecido do nada, através do seu correio eletrônico, dizendo que você precisava escrever uma história que ele queria contar.”
“Eu já disse.”
“Disse o quê?”
“Como eu estou me sentindo. Eu acho que estou pirando. Eu não consigo pensar em mais nada a não ser nessa tal história, aonde ela vai levar, o que significa, quando vai chegar o próximo e-mail do Jeremias, será que o e-mail vai se referir a mais um trecho de algo que já abordou antes ou ele vai começar um novo assunto, será que estou organizando direito a ordem dos textos que ele já me encaminhou ou já mexi e remexi tanto naquilo tudo que a história que estou escrevendo já não é mais a história de Jeremias, mas uma história que eu mesmo estou inventando.”
“João, no telefone, quando você me implorou para eu atendê-lo ainda hoje, você me disse que andava tão obcecado com esse negócio de história que não estava conseguindo fazer mais nada. Explique melhor isso, por favor.”
“É o seguinte, faz quase um mês que eu não consigo trabalhar nos textos que eu já devia ter entregue às pessoas que me contrataram. Para alguns dos meus clientes, eu disse que havia ficado doente, mas já estava melhor e logo terminaria o serviço solicitado. Então eles me deram novos prazos. Outros, porém, tinham urgência da coisa e simplesmente cancelaram os pedidos e foram procurar outras pessoas para fazer o que eu devia ter feito e não fiz.”
“Você percebe como essa história toda está afetando a sua vida?”
“De que história você está falando, da história do Jeremias ou da minha história?”
“De como a história do seu amigo Jeremias está afetando a sua história, a sua vida. Nem trabalhar você está conseguindo trabalhar. Isso está ficando grave. A minha sugestão, como seu terapeuta, é que você esqueça tudo, delete todos os e-mails do Jeremias que chegarem, finja que esse tal de Jeremias jamais manteve contato de novo, faça de conta que ele morreu e que toda essa coisa de contar história, escrever a história, tudo isso não passou de um surto, um pesadelo que precisa ser esquecido.”
“Não é fácil.”
“O que não é fácil?”
“Fingir que Jeremias já morreu e que a história que ele quer contar nunca existiu.”
“Essa história pelo menos tem alguma coisa que seja interessante?”
“Tem”.
“O que, por exemplo?”
“Bocetas”.
CAPÍTULO XIX
Aconteceu um dia, quando Jeremias limpava as gaiolas das chinchilas. Percebeu, de repente, que tinha de assumir totalmente o que ele era – ou pelo menos assumir totalmente o que ele sentia ser -, justamente para tentar descobrir, talvez pela primeira vez desde que começou a respirar em cima do planeta, quem ele realmente era. Afinal, àquela altura, definitivamente não conhecia aquele sujeito que via toda a manhã no espelho do banheiro, quando acordava naquele lugar.
O primeiro passo nesse sentido era assumir integralmente o seu corpo, isto é, sentir o seu corpo, sentir seus ombros encurvados sem fazer qualquer tentativa para endireitá-los, sentir sua cabeça latejando no ritmo da pulsação do seu sangue dentro das suas veias, sentir seus pulmões se esforçando para captar o máximo de ar possível dentro dos limites mínimos permitidos pela absurda quantidade de cigarros consumidos durante décadas, enfim, sentir, sentir e sentir, por mais angustiante, frustrante e dolorido que isso fosse.
Não tinha a mínima idéia do que aquela súbita necessidade de autoconhecimento, surgida do nada e impregnada pelo cheiro forte do cocô das chinchilas, significava. Mas era melhor do que nada. Sentir-se ao máximo pelo máximo de tempo. Talvez fosse, enfim, uma maneira de fazer alguma coisa diferente e não enlouquecer enquanto estivesse ali.
Como, durante todo o dia, os internos tinham uma extensa programação a cumprir, Jeremias decidiu que iria concentrar seus exercícios de autoconhecimento sensitivo, ou seja lá o que fosse aquilo, no período em que cuidava dos animais da fazenda, tarefa que sempre fazia sozinho, a não ser, é óbvio, pela presença dos bichos.
Naquele verão, todos, de repente, perceberam que eram artistas. Alguns tocavam violão, outros cantavam, outros pintavam, outros começaram a escrever livros, outros descobriram uma súbita habilidade para fazer artesanato…
Para Jeremias, Carlos e Júlio, a coisa começou quando, todas as noites, passaram a se reunir para ouvir a coleção de discos de vinil que Júlio acumulara desde a adolescência. Acompanhados por intermináveis baseados, eles quase sempre varavam as madrugadas e o toca-discos só era desligado pouco antes do amanhecer.
Os três só falavam de música, comiam música, dormiam música, trepavam música, cagavam música. Em pouco tempo, todas as pessoas do grupo também foram contaminadas. Jeremias não se lembrava de quem foi o primeiro, mas alguém compôs uma música e logo depois todos estavam compondo suas músicas, sozinhos ou em parceria com os outros. Com harmonias primárias, as canções falavam, em geral, das várias facetas do delírio calmo que caracterizava aqueles dias quentes e compridos.
Um dia Carlos entrou na casa de Jeremias e, violão em punho, mostrou como, ouvindo um disco ao vivo de Richie Havens, havia descoberto como afinar o violão em mi aberto, ou cebolão, como aquele tipo de afinação era então também conhecida. Jeremias, que tentava aprender as primeiras posições em seu recém-comprado violão, adorou a nova forma de tocar e, no dia seguinte, quando foi até a casa de Carlos, mostrou as três canções que havia composto durante a madrugada passada.
Cris e Mô também entraram numas de compor e já tinham várias canções falando sobre “coisas de mulher”. Júlio, que era o único que ainda não havia composto nada, desencantou quando, numa uma rápida viagem aos Estados Unidos, onde foi comprar roupas indianas para revenda (um bom negócio na época), trouxe de lá uma Fender, “a guitarra do Hendrix”.
Alex apareceu mais ou menos por essa época, cabelos encaracolados, óculos redondos, sorriso fácil. Quando Alex pegou num violão, todos os outros perceberam o que era realmente tocar. Ele tinha o tal do dom, mas seria também a primeira baixa sofrida pelo grupo.
Foi ele que sugeriu que aquelas pessoas formassem uma banda. Foi ele também que encontrou um local, nos altos de um armazém caindo aos pedaços, no centro da cidade, para que a “banda” começasse a ensaiar. Foi ele também que um dia se trancou nesse lugar e ficou dedilhando sua guitarra velha até que seus dados sangrassem, e só saiu de lá porque Júlio arrombou a porta, arrancou a velha guitarra de suas mãos e o mandou embora.
Depois disso, Alex falava cada vez menos e, sempre que podia, se isolava do resto do pessoal, abraçado ao seu violão, que ficava dedilhando compulsivamente por horas, até que alguém, novamente, o obrigasse, geralmente à força, a se separar do instrumento.
Numa quinta-feira nublada, chegou a notícia. A família de Alex o tinha internado numa clínica psiquiátrica. Nunca mais ninguém teve notícias dele durante aquele e vários outros verões depois.
Nina foi a segunda a pirar. A princípio, ninguém notou nada de diferente. Nina sempre falou muito e sempre gostou de anfetaminas. Portanto, o fato de ela estar falando muito não era algo que chamasse a atenção de ninguém. Só que, aos poucos, as pessoas começaram a perceber que Nina não parava de falar nunca. E ninguém conseguia mais interrompê-la, já que sempre arrumava um jeito de retomar o assunto sobre o qual estava discorrendo e o emendava com outro, outro e outro, e tudo se transformava num monólogo sem fim.
Mas o que realmente preocupou as pessoas foi o surgimento daquelas manchas roxas em várias partes de seu corpo. A princípio, como Nina andava pra cima e pra baixo com um gringo que ninguém conhecia direito, cogitou-se a hipótese do cara estar batendo nela, talvez até com seu consentimento – quem sabe eles curtissem uma de sadomasoquismo ou coisas do tipo.
Um dia, porém, Jon, o gringo que andava com ela, procurou Jeremias e Carlos pra se queixar que não sabia mais o que fazer com Nina. Ela só falava, falava e falava, e agora tinha entrado numas de que ele precisava levá-la para a Bélgica, para apresentá-la aos pais dele. Jon não pensava em voltar para a Bélgica, com ou sem Nina, mas cada vez que ele tentava explicar isso a ela, Nina começava a chorar convulsivamente e dizia que ia se matar.
Jeremias e Carlos perceberam que Jon estava mesmo assustado e, para tranqüilizá-lo, disseram que iriam conversar com Nina.
“Legal, mas como é que a gente vai conversar com ela, se ela não ouve ninguém, só fala?”, perguntou Carlos, logo que o gringo foi embora.
“Sei lá, só que a gente precisa dar um jeito. O problema não é só com o gringo, não. Ela tá deixando todo mundo maluco, já reparou?”, disse Jeremias.
“Tá, velho, tá mesmo. Eu pelo menos fico piradinho. E as manchas? Já reparou como estão ficando cada vez maiores e mais escuras.”
“Pois é, e o que a gente faz?”
Depois de uma consulta geral a todos os envolvidos – e sem que ninguém pensasse em qualquer outra alternativa menos pior -, a decisão comum foi, a contragosto geral, levá-la de volta à casa dos pais.
Nunca mais ninguém teve notícias de Nina, nem aquele e nem em outros verões depois.
Após aquela espécie de iluminação enquanto limpava a gaiola das chinchilas, Jeremias decidiu, não sabia bem por qual motivo, que faria absolutamente tudo o que as pessoas ali faziam. Não perguntaria por que, apenas faria e esperaria acontecer o que tivesse que acontecer, se é que havia alguma coisa para acontecer.
Se as pessoas lá rezavam, ele também rezaria. Se as pessoas lá liam textos bíblicos, ele também leria. Se as pessoas lá passavam boa parte do dia lendo e escrevendo sobre as suas vidas em grossos cadernos, ele também leria e escreveria. Se as pessoas ficavam naquele lugar por um longo tempo, até que ganhassem condições de voltar para o mundo lá fora, ele também ficaria ali o tempo que achassem que fosse preciso para ele.
Jeremias não decidira agir daquela maneira porque acreditasse que aquilo tudo daria algum resultado, mas sim porque entrara numas de fazer tudo exatamente ao contrário do que havia feito, no passado, quando foi, por várias vezes, enclausurado em lugares parecidos com aquele onde se encontrava agora. Talvez, se fizesse tudo ao contrário, os resultados também seriam ao contrário, ou seja, talvez a coisa desse certo.
E, como não tinha absolutamente qualquer outra alternativa, simplesmente começou a deixar a coisa rolar.
Bem, é lógico que Jeremias também cogitou a possibilidade de que estivesse ficando louco de vez, mas, na pior das hipóteses, aquilo serviria para matar o tempo pelo menos durante a semana que começava naquela segunda-feira.
Depois, bem depois, ele veria o que podia ser feito, embora estivesse cada vez mais convencido de que, na situação em que se encontrava, não havia muito o que fazer.
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JR Fidalgo: um jornalista
que tem preguiça de perguntar,
um escritor que não tem saco
pra escrever e um compositor
que não sabe tocar.
(mas que, mesmo assim,
já escreveu três romances
e uma quantidade considerável
de canções ao longo
dos últimos 45 anos)