A Lua Crescente passou e a Lua Cheia se acabou ontem à noite. Sobre muitos dos que habitam a Terra elas terão deixado seus rastros indeléveis, que não se pode apagar. Perdidos a esmo por aí, alguns ainda devem caminhar trôpegos e bêbados, sem sequer imaginar que trem os atropelou. E se há dúvida sobre isso, há para ver o episódio “O mal da Lua”, que está no filme Kaos, dos Irmãos Taviani, que acabaram de ganhar em Berlim um Urso de Ouro pelo já esperado filme César deve morrer. Eles adaptaram contos de Luigi Pirandello em Kaos, em cujo livro diz: “Ao virar-se para correr até a casa, Sidora percebeu, aterrorizada, a Lua Cheia, abrasada, violácea, enorme, recém-saída das lívidas alturas da Crocca”.
Pois essa Lua temível que se vê fulgurante no filme é ainda mais poderosa quando está em seus tons avermelhados e com cornos e os espalha sobre os humanos, graças aos desnorteios físicos e psicológicos que provoca. Sob seus efeitos, quem recebe seus eflúvios perde as estribeiras, seduz, deixa-se seduzir, dança, ama, bebe intensamente. Os homens transformam-se em bisões bufantes, as fêmeas se transtornam em cio e saem a dar. Os cornos da fúria espalham-se sobre as cabeças de todos, que bufam cheios de vitalidade ou dor de amor, em situações que acometem a todos na vida. São nessas horas intensas que a questão se coloca e parece haver apenas um sentido: quem ama e se entrega deve trazer para a vida o amor com aquela impostura só encontrável num Camus, quando diz, em Sísifo, que só há uma questão que importa discutir: o suicídio; ou a morte, por outros nomes, já que o suicídio é uma imposição antinatural, falseada; nesse caso, ela poderia se dar pelo amor, que é um desejo de aniquilação no outro e com o outro, fulminante.
O amor, sob essa Lua terrível, afinal transforma-se numa metáfora da consumação, da entrega ao absoluto, do fim do que é concreto, corporal e físico para a diluição no etéreo, no desaparecimento que se antevê, que sempre se avizinha e coloca aquele que ama à beira do abismo. Até mesmo quando não se sabe o que é o amor, como é o meu caso, afinal o amor é uma invenção feminina e um homem nunca o alcançará em sua plenitude, levado de arrasto por um canto que ouve vindo de uma região que lhe é incógnita.
Obcecado por ver sua fêmea perder-se, cegada por uma luz que não distingue, resta apenas a um homem assim vitimado ganir de dor, depois que ele mesmo já bufou em situação inversa. Assim como os machos podem ser um ou outro, a fêmea acometida se transforma em outra e busca um que a fecunde. Somente quando a Lua Cheia passa, ela se acalma, voltando à docilidade antevista nos olhos, ou à ressaca extenuada, que agora pode ser compartida...
Nesses momentos a imaginação faz crescer tudo nas cabeças influenciadas pela Lua. O outro, amante já idealizado, é ainda mais potencializado para que o desejo se amplifique. Sendo amantes ambos imaginados, somente reduzem-se ao que são quando a Lua perde sua intensidade e eles se encontram e se consomem em suas cicatrizes, verrugas e falhas que surgem quando a luz arrefece e se veem, então, num outro tipo de nudez, desta vez como humanos saídos de sua animalidade.
Ademir Demarchi é santista de Maringá, no Paraná,
onde nasceu em 7 de Abril de 1960.
Além de poeta, cronista e tradutor,
é editor da prestigiada revista BABEL.
Possui diversos livros publicados.
Seus poemas estão reunidos em "Pirão de Sereia"
e suas crônicas em "Siri Na Lata",