Estava
lá, pichado na parede do velho armazém de café abandonado: “Eu te amo, Ana
Marlow”.
Quem
seria Ana Marlow, e quem estaria apaixonado por ela?
Será
que Ana Marlow ainda estava viva? E quem pichou aquela frase na parede do
armazém abandonado, ainda estaria vivo?
Ou
será que Ana Marlow era apenas uma musa imaginária de algum vagabundo louco que
vivia por aquelas ruas?
Impossível
saber quem era Ana Marlow ou mesmo se ela existia. No entanto, era um nome
bonito. “Ana Marlow, a rainha do gueto!”
Ele
pensava essas bobagens quando resolveu fazer uma coisa que não fazia há muitos
anos: sentar numa praça. E aquela era a principal praça da área central da
cidade.
Como
era hora do almoço, havia bastante gente circulando pela praça, a maioria, com
certeza, pessoas que trabalhavam por ali.
Então
ele começou a refletir sobre a função das praças nas cidades.
Concluiu
que as praças eram lugares onde a gente sentava para não fazer absolutamente
nada, ou apenas para ver as pessoas passarem, ou somente para pensar, como ele
estava fazendo naquele momento.
Mas
as praças também eram locais onde a gente ia para encontrar outras pessoas.
E
em outros tempos, ele lembrou, as praças também serviam para as pessoas
realizarem manifestações, a favor ou contra determinadas coisas.
Percebeu,
então, que as praças, principalmente nas cidades maiores, estavam perdendo sua
função, já que poucas pessoas as utilizavam para sentar e não fazer absolutamente
nada, nem para ver as pessoas passarem, nem para pensar, nem para encontrar as
outras pessoas, nem para se manifestarem a favor ou contra alguma coisa.
As
praças estavam se transformando em simples locais de passagem ou em lugares
onde se dava um tempo até a hora de voltar para o emprego, como acontecia
naquela praça, onde ele agora estava sentado.
Mas
que diabo queria dizer aquilo?
“Compreenda
a influência do humano em tudo”.
A
frase estava estampada na camiseta de um rapaz que passava pela praça acompanhado
de uma garota. Nunca tinha visto nenhuma camiseta com aquilo escrito. Aliás,
nunca tinha visto aquilo escrito em nenhum lugar.
“Compreenda
a influência do humano em tudo”.
Se
fosse a influência do divino, seria fácil de entender. A camiseta estaria quem
sabe divulgando algum movimento religioso ou coisa parecida. Mas a influência
do humano?
Quem
estaria exaltando – ou criticando, o que também era possível – a influência do
humano em tudo?
Saber
essa resposta não era, com certeza, a preocupação do funkeiro que passava logo
a seguir por ali, ouvindo um “proibidão” no seu celular.
O
cara deu uma sentada num dos bancos, esperou o “proibidão” terminar, fechou o
celular e saiu andando.
Doido
por doido, ele se identificava mais com o sujeito que arrastava um saco de lixo
preto de um lado pra outro da praça, reclamando em voz alta não se sabia do que
nem pra quem.
Reparou,
então, que apenas os doidos – e sempre havia vários deles nas praças – ainda
davam a devida importância às praças das cidades, já que, em geral, faziam
delas seus territórios de resistência e sobrevivência.
Se
continuasse a elaborar teorias como aquela – e principalmente se começasse a
acreditar nelas -, em breve acabaria transformando uma das praças da cidade no
seu território de resistência e sobrevivência.
Portanto,
resolveu levantar-se e continuar caminhando.
Já
tinha refletido bastante sobre praças, vagabundos e loucos.
Era
hora de cuidar da vida e isso significava ir a uma farmácia comprar os
medicamentos que nos últimos tempos era obrigado a ingerir diariamente.
Estava
fazendo seu pedido ao balconista da farmácia quando percebeu um vulto se
aproximando à direita.
O
homem insistia em que ele lhe desse um trocado. Ele disse que não tinha.
O
homem continuou insistindo.
Ele,
irritado com o assédio, repetiu em voz alta que não tinha trocado, “porra!”.
O
homem finalmente se afastou.
Ele
continuou pedindo os remédios, depois foi até o caixa e pagou.
Diabos,
por que não dera um trocado ao sujeito?
Ele
não tinha trocado mesmo, justificou-se.
Mas
ele sabia que não era isso.
Ele
sabia que não dera um trocado ao homem porque sempre se sentia acuado com
aquele tipo de situação e sempre reagia de forma agressiva.
Saiu
da farmácia e foi até a padaria da esquina tomar um café, ainda ruminando a sua
atitude diante do pedinte da farmácia.
Enquanto
tomava o café, percebeu o homem da farmácia se aproximando do caixa e depois do
balcão.
“Uma
pinga, já está paga”, disse ele ao copa, que rapidamente o serviu.
O
homem entornou rapidamente o álcool na garganta, virou as costas e saiu da
padaria.
O
homem finalmente havia arrumado um trocado.
Ele
acabou seu café e foi embora.
Em
geral, pensou ele, as pessoas ficariam satisfeitas de terem negado uma esmola
que se transformaria em cachaça no balcão mais próximo.
Ele,
porém, continuava se culpando por não ter dado o trocado ao homem que o
abordara na farmácia.
Ele
sabia que aquele homem precisava desesperadamente matar a sua sede.
Contudo
– e apesar de tudo -, ele tinha de continuar caminhando.
Então,
quando se dirigia à livraria, cruzou com um colega dos tempos de faculdade, que
fingiu não conhecê-lo.
Normalmente,
ele agradeceria por aquilo, já que ele próprio vivia evitando cumprimentar
pessoas com as quais não ia muito com a cara nas ruas.
No
entanto, não sabia bem por que, naquele momento a atitude do ex-colega de
faculdade o irritou, fazendo-o murmurar baixinho entre os dentes para o sujeito
que passava: “Babaca de merda!”
Depois,
lembrando dos ensinamentos da sua mãe e das reflexões do seu terapeuta,
questionou-se se, por acaso, sua hostilidade contra o ex-colega de faculdade
não era motivada pelo fato do sujeito ter se dado bem melhor na vida do que ele,
no quesito dinheiro.
Mas
logo chegou à conclusão de que não gostava de playboys, fossem eles ricos,
pobres ou marcianos.
Aí
perguntou a si mesmo: “E o que diabo vem a ser um playboy?”.
“Ora,
você sabe muito bem do que estou falando”, respondeu, dando-se por satisfeito
com a própria resposta.
Entrou
na livraria e se tocou de que não fazia a mínima idéia do motivo que o levara
até ali.
Ficou
por um tempo observando os livros nas prateleiras e, de repente, chegou à
conclusão de que definitivamente não gostaria de livrarias.
Então
se perguntou por que diabos vivia entrando em livrarias e por que insistia em
escrever livros. Afinal, onde ele imaginava que talvez seus livros um dia
talvez pudessem ser vistos e comprados a não ser em livrarias?
Dessa
vez não tinha nenhuma resposta satisfatória para suas próprias perguntas. Por
isso continuou andando, agora em direção à praia.
Sentou-se
num dos bancos próximos à areia, ajustou os fones do mp3 e ficou olhando o mar
no meio da tarde de sol.
Sentiu-se
um idiota ali, sentado naquela praia, naquele meio de tarde, com uma seqüência
de músicas antigas dos Rolling Stones entrando, uma após outra, pelos buracos
dos seus ouvidos.
Aos
poucos, porém, começou a se sentir bem, muito bem mesmo.
Estava
no local certo, na hora certa, fazendo a coisa certa.
Então,
pensou: “Onde andará Ana Marlow?”
JR
Fidalgo: um jornalista que tem preguiça de perguntar, um escritor que não tem
saco pra escrever e um compositor que não sabe tocar. (mas que, mesmo assim, já
escreveu três romances e uma quantidade considerável de canções ao longo dos
últimos 45 anos)