por Bruno Carmelo
para AdoroCinema
Duas mulheres fogem do hospício. A premissa representa um prato cheio para o humor pastelão, mas o filme italiano possui um ponto de vista particular em relação ao tema: primeiro, ele deseja mostrar que os problemas da dupla poderiam acontecer a qualquer um, ou seja, a loucura pode atingir todas as pessoas, de todas as classes sociais. Segundo, o diretor Paolo Virzì defende que o mundo das pessoas “normais” é muito menos interessante do que o universo ilusório das protagonistas.
Como na maioria das comédias sobre duplas, as personalidades são opostas: Beatrice (Valeria Bruni Tedeschi) é rica, arrogante e nunca para de falar; Donatella (Micaela Ramazzotti) é pobre, introvertida e não pronuncia uma palavra sequer. Apesar dos delírios de grandeza ou da depressão profunda, elas são mais lúcidas que as outras mulheres na instituição psiquiátrica. Assim, unem-se e escapam do local. Beatrice sonha com aventuras extravagantes, enquanto Donatella busca superar um trauma, sugerido pelo roteiro desde a cena inicial.
Após o cerebral Capital Humano, Virzí opta por uma calorosa obra de excessos. As cores são saturadas, as pessoas gritam e gesticulam, as ações se desenvolvem em paisagens paradisíacas, a música busca contagiar as personagens e o filme de modo geral. As protagonistas constituem caricaturas, assim como as demais “loucas” desta história, mas o roteiro está ciente de suas licenças em relação à verossimilhança, e nunca se leva a sério demais. Loucas de Alegria se desenvolve como farsa, ou talvez uma fábula sobre a dificuldade de permanecer lúcido no mundo contemporâneo. As atrizes estão confortáveis: Bruni Tedeschi delicia-se compondo uma diva herdeira de Norma Desmond, já Ramazzotti faz uma depressiva em estilo gótico, com bom trabalho de olhares.
O universo fantasioso determina a estrutura do projeto. Apesar de apontar ao road movie, com referência explícita a Thelma e Louise, o diretor apoia-se sobretudo no melodrama clássico, garantindo que cada conflito amoroso e familiar na vida de Beatrice e Donatella seja solucionado rumo ao final. O roteiro pode se apresentar dezenas de reviravoltas rocambolescas, que esticam a duração do filme, mas não demonstra ousadia na progressão linear e um tanto previsível. Mesmo assim, a conclusão é satisfatória em sua pretensão clássica-narrativa, com direito a uma cena final particularmente comovente.
Para além de questões cinematográficas, Loucas de Alegria pode ser questionado pela representação das doenças mentais. O filme defende a institucionalização forçada como melhor alternativa para pacientes com distúrbios mentais, algo questionado pelas reformas psiquiátricas há décadas. Neste sentido, ele soa menos libertário do que as impulsivas protagonistas poderiam dar a entender. Mas colocando essas questões à parte, o resultado revela-se otimista quanto à possibilidade de reinvenção de si e à constituição de novas formas de laços afetivos.
LOUCOS PARA VER A PLATÉIA RIR...
E CHORAR..
E RIR NOVAMENTE
por Andressa Gomes
para CCine 10
O filme anterior de Paolo Virzi, “O Capital Humano”, muito provavelmente foi o mais repercutido do diretor italiano – o qual já tem mais de três décadas de carreira. Fato é que “O Capital Humano”, cuja estreia se deu em 2013, não podia ser mais pontual: em meio à crise que se estende desde 2008, uma sátira ao capitalismo e à decadência moral provinda dele a partir da busca não só pelo lucro, mas também pelo status social (lembrando, claro, que a Itália compunha o polêmico grupo dos PIIGS, os mais arruinados países da União Europeia pela crise do neoliberalismo). O cinema italiano, por sinal, tem histórico riquíssimo quando falamos de longas que dialogam pronta e acertadamente ao momento sócio-político no qual foi produzido: o neorrealismo em meio ao pós-Guerra e o cinema de Ellio Petri em meio ao auge dos Anos de Chumbo na Itália são exemplos imediatos. Mas Virzì dirigiu também as dramédias “A Primeira Coisa Bela” e “O Crocodilo”, o que nos leva empiricamente à suposição de que é o diretor italiano muito frutífero ao transitar fluidamente entre a tragédia e a comédia, os aliando para formar um cinema cativante.
E, de fato, afirmar isso sobre Virzì não é nada errado. Porém, em seu novo filme “Loucas de Alegria” vemos isso? Antes de tudo, é necessário explicitar o quão constante é a alternância entre momentos de dramas intensos e alguns outros de comédia pastelona, algo proporcionado pela construção das duas protagonistas – as quais sustentam ao mesmo tempo que uma narrativa trágica como pano de fundo, uma interação das mais clássicas possíveis tendo como base a história do cinema pipoca (algo que já comentarei em breve). Mas dessa vez Virzì opta por algo mais melodramático e idealizado, fazendo referência a um cinema mais hollywoodianizado – coisa que fica nítida à citação que faz, por exemplo, à “Thelma & Louise” – e se distanciando assim da arte mais politizada que o consagrou 3 anos atrás. Tendo isso em vista, quanto a reposta que inicia este parágrafo devo dizer que “Loucas de Alegria” tem um efeito romanticamente cativante, embora em alguns poucos momentos não tenha um ritmo tão límpido como os de filmes do Jerry Lewis ou John Landis (dada essa veia americanizada de “Loucas de Alegria”).
O filme narra a história de Beatrice (Valeria Bruni Tedeschi, que já havia trabalhado com Virzì em seu filme anterior) e Donatella (Micaela Ramazzotti), duas pessoas que fogem do hospital psiquiátrico aonde estavam internadas e, a partir de então, tem de lidar com realidades significantemente distintas das quais gostariam de estar vivendo. Beatrice parece ser uma sátira da classe média tradicional de nossos tempos (no mundo, eu diria), com seu ódio e ojeriza notável à população de baixa renda e aos imigrantes refugiados ou pessoas de países não-desenvolvidos que à Europa imigraram em busca de oferta de trabalho, além da necessidade insuportável de Beatrice em ostentar e acumular status social (veja aí que Virzì abandonou a temática de “O Capital Humano”, mas nem tanto). Seria tremenda e exageradamente irônico dizer que “Beatrices” não são imagináveis no Brasil de hoje… Além disse, Beatrice é elétrica, extravagante e gritante, mostrando forte inspiração no estereótipo à “Narcisa Tamborindeguy”, por exemplo. Por outro lado, Donatella é uma pessoa de família periférica, cuja marginalização foi por diversas vezes sentida – não só em uma esfera econômica como também “moral” (repare nas aspas), uma vez que era striper e fugia completamente do arquétipo do “bela, recatada e do lar”. É o total oposto de Beatrice, uma vez que é carrancuda, angustiante, triste, depressiva. Eis a “interação das mais clássicas possíveis” que havia citado, as personas totalmente opostas colocadas pelo acaso em meio a situações bizarras, no estilo O Gordo e o Magro, Gene Wilder e Richard Pryor ou ainda Amy Pohler e Tina Fey.
Ainda falando da dupla de protagonistas, é possível dizer que as atuações de Tedeschi e Ramazzotti são um dos pontos altos do filme, se não o ponto alto. Se o longa gira em torno da romantização das suas tragédias em diálogo com o cativar de seus atos cômicos, é notório que atuações bem sucedidas seriam fundamentais nesse contexto. E a vitalidade de ambas em seus papéis foi suficiente para que, ao fim do filme, ambos os focos tenham sido bem tratados (mais o lado trágico, minoritário no filme, do que o cômico), sendo que o início do longa se foca muito mais em Beatrice mas, aos poucos, nos aproximamos da história de Donatella na medida em que os cataclismas sentimentais vão surgindo. E, por fim, é a forma na qual a união e amizade de ambas se desenrolará em meio ao processo de superação ao abandono social que sentem – já que seus familiares e amigos as refutaram após a decisão da justiça italiana de interná-las em um hospital psiquiátrico – que prevalecerá como o fator mais comovente e decisivo da narrativa, sendo o ponto mais original de tudo que esta nos revelou. Devo falar ainda que, embora haja sim uma idealização de Beatrice e Donatella, elas não são puramente planas: existe uma esfericidade, uma complexidade psicológica que timidamente se revela ao desenrolar da narrativa e cuja o maior sentimento humano que essa esfericidade proporcionará a partir disso acaba colaborando para potencializar os dramas das protagonistas.
Não pense, todavia e infelizmente, que o filme critica o sistema de internação e disciplinarização à força de pessoas com distúrbios mentais. Crítica, de certa forma, o preconceito social acerca disso que socialmente construímos como “loucura” – e o filme se baseará bastante nisso, uma vez que Beatrice e Donatella sofrem esse preconceito – mas ainda assim naturaliza e, por tabela, defende os métodos conservadores há décadas criticados por pensadores da área de psiquiatria como repressivos e desumanos.
LOUCAS DE ALEGRIA
(La Pazza Gioia, 2016, 118 minutos)
Roteiro e Direção
Paolo Virzi
Elenco
Valeria Bruni Tedeschi
Micaela Ramazzotti
Valentina Cornelutti
em cartaz no Cinespaço Miramar Shopping
LOUCOS PARA VER A PLATÉIA RIR...
E CHORAR..
E RIR NOVAMENTE
por Andressa Gomes
para CCine 10
O filme anterior de Paolo Virzi, “O Capital Humano”, muito provavelmente foi o mais repercutido do diretor italiano – o qual já tem mais de três décadas de carreira. Fato é que “O Capital Humano”, cuja estreia se deu em 2013, não podia ser mais pontual: em meio à crise que se estende desde 2008, uma sátira ao capitalismo e à decadência moral provinda dele a partir da busca não só pelo lucro, mas também pelo status social (lembrando, claro, que a Itália compunha o polêmico grupo dos PIIGS, os mais arruinados países da União Europeia pela crise do neoliberalismo). O cinema italiano, por sinal, tem histórico riquíssimo quando falamos de longas que dialogam pronta e acertadamente ao momento sócio-político no qual foi produzido: o neorrealismo em meio ao pós-Guerra e o cinema de Ellio Petri em meio ao auge dos Anos de Chumbo na Itália são exemplos imediatos. Mas Virzì dirigiu também as dramédias “A Primeira Coisa Bela” e “O Crocodilo”, o que nos leva empiricamente à suposição de que é o diretor italiano muito frutífero ao transitar fluidamente entre a tragédia e a comédia, os aliando para formar um cinema cativante.
E, de fato, afirmar isso sobre Virzì não é nada errado. Porém, em seu novo filme “Loucas de Alegria” vemos isso? Antes de tudo, é necessário explicitar o quão constante é a alternância entre momentos de dramas intensos e alguns outros de comédia pastelona, algo proporcionado pela construção das duas protagonistas – as quais sustentam ao mesmo tempo que uma narrativa trágica como pano de fundo, uma interação das mais clássicas possíveis tendo como base a história do cinema pipoca (algo que já comentarei em breve). Mas dessa vez Virzì opta por algo mais melodramático e idealizado, fazendo referência a um cinema mais hollywoodianizado – coisa que fica nítida à citação que faz, por exemplo, à “Thelma & Louise” – e se distanciando assim da arte mais politizada que o consagrou 3 anos atrás. Tendo isso em vista, quanto a reposta que inicia este parágrafo devo dizer que “Loucas de Alegria” tem um efeito romanticamente cativante, embora em alguns poucos momentos não tenha um ritmo tão límpido como os de filmes do Jerry Lewis ou John Landis (dada essa veia americanizada de “Loucas de Alegria”).
O filme narra a história de Beatrice (Valeria Bruni Tedeschi, que já havia trabalhado com Virzì em seu filme anterior) e Donatella (Micaela Ramazzotti), duas pessoas que fogem do hospital psiquiátrico aonde estavam internadas e, a partir de então, tem de lidar com realidades significantemente distintas das quais gostariam de estar vivendo. Beatrice parece ser uma sátira da classe média tradicional de nossos tempos (no mundo, eu diria), com seu ódio e ojeriza notável à população de baixa renda e aos imigrantes refugiados ou pessoas de países não-desenvolvidos que à Europa imigraram em busca de oferta de trabalho, além da necessidade insuportável de Beatrice em ostentar e acumular status social (veja aí que Virzì abandonou a temática de “O Capital Humano”, mas nem tanto). Seria tremenda e exageradamente irônico dizer que “Beatrices” não são imagináveis no Brasil de hoje… Além disse, Beatrice é elétrica, extravagante e gritante, mostrando forte inspiração no estereótipo à “Narcisa Tamborindeguy”, por exemplo. Por outro lado, Donatella é uma pessoa de família periférica, cuja marginalização foi por diversas vezes sentida – não só em uma esfera econômica como também “moral” (repare nas aspas), uma vez que era striper e fugia completamente do arquétipo do “bela, recatada e do lar”. É o total oposto de Beatrice, uma vez que é carrancuda, angustiante, triste, depressiva. Eis a “interação das mais clássicas possíveis” que havia citado, as personas totalmente opostas colocadas pelo acaso em meio a situações bizarras, no estilo O Gordo e o Magro, Gene Wilder e Richard Pryor ou ainda Amy Pohler e Tina Fey.
Ainda falando da dupla de protagonistas, é possível dizer que as atuações de Tedeschi e Ramazzotti são um dos pontos altos do filme, se não o ponto alto. Se o longa gira em torno da romantização das suas tragédias em diálogo com o cativar de seus atos cômicos, é notório que atuações bem sucedidas seriam fundamentais nesse contexto. E a vitalidade de ambas em seus papéis foi suficiente para que, ao fim do filme, ambos os focos tenham sido bem tratados (mais o lado trágico, minoritário no filme, do que o cômico), sendo que o início do longa se foca muito mais em Beatrice mas, aos poucos, nos aproximamos da história de Donatella na medida em que os cataclismas sentimentais vão surgindo. E, por fim, é a forma na qual a união e amizade de ambas se desenrolará em meio ao processo de superação ao abandono social que sentem – já que seus familiares e amigos as refutaram após a decisão da justiça italiana de interná-las em um hospital psiquiátrico – que prevalecerá como o fator mais comovente e decisivo da narrativa, sendo o ponto mais original de tudo que esta nos revelou. Devo falar ainda que, embora haja sim uma idealização de Beatrice e Donatella, elas não são puramente planas: existe uma esfericidade, uma complexidade psicológica que timidamente se revela ao desenrolar da narrativa e cuja o maior sentimento humano que essa esfericidade proporcionará a partir disso acaba colaborando para potencializar os dramas das protagonistas.
Não pense, todavia e infelizmente, que o filme critica o sistema de internação e disciplinarização à força de pessoas com distúrbios mentais. Crítica, de certa forma, o preconceito social acerca disso que socialmente construímos como “loucura” – e o filme se baseará bastante nisso, uma vez que Beatrice e Donatella sofrem esse preconceito – mas ainda assim naturaliza e, por tabela, defende os métodos conservadores há décadas criticados por pensadores da área de psiquiatria como repressivos e desumanos.
LOUCAS DE ALEGRIA
(La Pazza Gioia, 2016, 118 minutos)
Roteiro e Direção
Paolo Virzi
Elenco
Valeria Bruni Tedeschi
Micaela Ramazzotti
Valentina Cornelutti
em cartaz no Cinespaço Miramar Shopping
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