Monday, November 14, 2016

ESCRACHANDO O DEMÔNIO COM UM CHUTE NOS BAGOS #3 (um folhetim de J R Fidalgo)


BOLHAS DE SABÃO ESPIRRANDO MERDA
PARA TODOS OS LADOS
(1ª temporada, episódio 03)


Dias atrás, disse a pessoas como vocês que cada um lida com as coisas do jeito de pode, que consegue.

Uns se dão melhor, outros, mais ou menos. E há sempre os que arrebentam a cara quando, certos de que descobriram a brecha, se lançam contra uma parede dura como rocha.

Ah, e lógico, existem sempre também os que nunca se preocuparam com porra de brecha nenhuma. Mas não é sobre estes últimos que eu quero falar.

Quero falar sobre aqueles que não têm outra alternativa a não ser buscar a brecha.

Não fazem isso porque querem, gostam ou escolheram essa meta na vida. Fazem porque essa é a única maneira de sobreviverem, que dizer, a única maneira de continuarem caminhando sobre o planeta fingindo ser iguais a todo mundo.

Se parassem de se ocupar em buscar a tal brecha, certamente entrariam em colapso total, explodiriam como bolhas de sabão, espirrando merda para todos os lados.

É a busca, a esperança de que a brecha realmente exista e possa ser encontrada que os mantém razoavelmente sociáveis, escapando do risco de serem linchados ou encarcerados em manicômios ou prisões.

Mas, de repente ou aos poucos, você percebe que já não resta muito tempo. É provável que você morra antes de encontrar a brecha.

Resumindo, você toma consciência de que está ficando velho.

E cada um lida com as coisas do jeito que consegue.

Alguns fazem seguidas plásticas no rosto e no corpo. Outros ingerem substâncias que prometem um pouco mais de tempo extra de vida. Outros se convertem a alguma espécie de culto. Enfim, cada um, dependendo de suas condições financeiras, físicas e mentais, procura um caminho que atrase ao máximo o trajeto pelo túnel sem luz no final.

E, claro, nunca podemos esquecer que existem os que não se preocupam com isso e que apenas compram um túmulo e esperam a sua hora chegar pacificamente.

Se há uma coisa que admiro em Mick Jagger é a sua coragem de deixar a pele do rosto cair à vontade, deixar as rugas criarem seus rastros na face. E logo ele, cuja beleza, tanto quanto a voz, foram e são fundamentais para continuar atuando em sua profissão.

Não sei direito por que incluí Jagger nessa conversa, mas acho que no fundo tem tudo a ver com o que estamos discutindo aqui.

Ou seja, o tempo não espera por ninguém e você não pode ter sempre tudo o que você quer, mas, às vezes, se você tentar bastante, você pode conseguir o que você precisa. Obrigado pela atenção e até qualquer dia.



Anos atrás, eu teria pelo menos tentado começar a ler as 63 páginas e meia que os membros do conselho da igreja me encaminharam, estabelecendo rumos e diretrizes do livro que, segundo eles, faria de seu pupilo prodígio o maior líder neopentecostal do país, e talvez do mundo.

Lógico que, como sempre fazia nesses casos, eu abandonaria a coisa depois da décima ou décima-primeira página e acabaria escrevendo o que eu achava que os caras esperavam que eu escrevesse. E em geral dava certo.

Só que, ao pegar todo aquele calhamaço, eu só consegui passar os olhos em diagonal pelas primeiras duas ou três páginas e senti que, se insistisse numa leitura mais aprofundada, ia acabar tendo uma convulsão semelhante às que eu tinha durante os períodos de abstinência do álcool e das drogas.

Escrever aquele negócio, contudo, abria a possibilidade concreta de levantar uma grana suficiente para me manter por mais alguns anos escondido na minha caverna.

Voltei a pegar a brochura, mas a sensação de uma convulsão de aproximando fez com que eu largasse os papéis em cima da mesa e saísse para caminhar na chuva fina que caía lá fora. Ao voltar, sentei no PC sem me secar, procurei uma estação de blues no smartphone, coloquei os fones e pousei os dedos no teclado.

Já que estava lidando com essas coisas de pastores, milagres, revelações e não sei mais o que, por que não tentar deixar que o tal do Espírito Santo me ditasse o que eu devia escrever? E, acima de tudo, eu precisava da porra do dinheiro para prosseguir na minha peregrinação rumo à invisibilidade, seja lá o que isso significasse.

Tipo uma semana depois meu amigo me ligou para saber como andavam “as coisas”. Respondi que há dois dias o Espírito Santo tinha interrompido a comunicação e eu estava esperando um novo contato para poder prosseguir.

Ele disse que estava falando sério e queria saber como ia a porra do livro.

Expliquei que eu ainda estava “pegando a mão”, mas a coisa devia começar a deslanchar logo, pelo menos era o que eu esperava.

Ele perguntou se não havia pelo menos umas folhas pros caras verem.

Afirmei que, em hipótese alguma, ia mandar “a coisa” em pedaços. Só mostraria o livro pros pastores por inteiro, acabado. Antes disso eu não ia mandar merda nenhuma pra eles. Meu amigo começou a gaguejar, dizendo que o pessoal não ia aceitar isso. Eles não iam continuar financiando um projeto no escuro.

Tá certo que os caras eram estranhos, mas não malucos.

Sugeri que ele dissesse aos pastores que eles não precisavam se preocupar porque aquele era meu “método de trabalho” usual e sempre dava certo.

Além disso, o Espírito Santo, desde que comecei a escrever o livro, andava se comunicando diretamente comigo e sua opinião também era a de que o livro só deveria ser conhecido por mais pessoas - além dele, Espírito, e de mim - depois que estivesse pronto.

A mensagem precisava ser passada de uma só vez, para que surtisse o efeito desejado. Enfim, os pastores deveriam “ter fé” em que tudo sairia como o pretendido.

Meu amigo ficou um longo período em silencio do outro lado da linha e desligou o celular.

Mais ou menos três semanas depois, o celular voltou a tocar e meu amigo disse: “Olhe, não me pergunte como. Não sei se fui eu, se foi a sua história maluca sobre o Espírito Santo ou se foi o próprio, o Espírito, quero dizer, mas a questão é que consegui enrolar o pessoal até agora. Mas assim você vai acabar fodedo com tudo, porra. Escreve uma merda qualquer e manda pra eles, só pra ganhar tempo.”

- O livro tá pronto, eu respondi.

- Pronto?, ele gaguejou, como sempre fazia quando seu nível de estresse e pressão sanguínea ultrapassava limites perigosos.

- Vou mandar por e-mail daqui a pouco. - Sério?

- Sério.

Como da vez anterior, ele ficou em silêncio por um logo tempo e desligou.





J R Fidalgo,
um jornalista que tem preguiça de perguntar,
um escritor que não tem saco pra escrever
e um compositor que não sabe tocar.

(mesmo assim escreveu dois romances
e uma quantidade considerável de canções
ao longo dos últimos 40 anos - nota do editor)


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