Thursday, January 21, 2016

EDGAR ALLAN POE, O EUROPEU (por Marcelo Rayel Correggiari)



Ana Dias é um subdistrito de Itariri, uma espécie de portal entre o fim da Baixada Santista e o início do Vale do Ribeira. Em torno de duas décadas atrás, sem a sanha de celulares, sinais de rede, mensageiros instantâneos e afins, os moradores do vilarejo costumavam a se encontrar no Secos & Morlhados do Seu Zé, talvez o único dali, na praça central. Tempos bons, onde a arte do colóquio, até mesmo do tête-à-tête, era posta em prática com uma desenvoltura inimaginável nesse mundo contemporâneo nosso assolado por certos açodamentos.

Quem sabe as novas gerações, que eventualmente creditariam à origem do frango assado as mágicas bandejas brancas de isopor em gôndolas de supermercado, perderam esse ofício da calma. Havia um certo glamour aconchegante, uma centelha social, certo frisson de espírito, a reunião de uma grande família chamada bairro, nas idas a uma merceraria.

Não que esse hiato geracional tenha aniquilado o encontro. Apenas meu saudosismo fora de hora ao perceber que os mais jovens também possuem seus dispositivos de reunião, mas, convenhamos, sob o mote de “cê é louco, cachoeira!”, tudo fica um pouquinho mais áspero.

Mercado é o espaço onde as pessoas se encontram para efetuarem permutas que vão do escambo a operações mediante pecúnia. Sei que a definição, num primeiro instante, soa bem simplória. Apenas tentei me endereçar ao fundamental da coisa. Bem sabemos que há determinadas moedas-de-troca bem inusitadas e bastante questionáveis. Contudo, esse espaço onde as permutas se efetivam, que inicialmente chamo de mercado, seria acima de tudo um espaço de interação social.

Até a chegada das compras online. Ainda existem interações sociais nesse tipo de transação (talvez seja esse o motivo de mantermos o nome de mercado), mas mediadas por aparelhos. Um blackout (conhecido popularmente como apagão) e a eutanásia se anuncia. É bom não corrermos esse risco da incapacidade de desenvoltura humana na ausência de eletricidade: tome hidrelétrica...

O vendeiro, a mercearia, o secos & molhados. O encontro, as tentativas, as sugestões. A Mercearia abre suas portas para esse contato com a platéia: em oferta o livro, a música, o teatro, o cinema, as artes plásticas e todas as manifestações cujo intuito é elevar a alma.

Não, senhoras e senhores! Não é o Arte 1! É apenas uma singela e modestíssima Mercearia.

Seria de se pensar que ao invés do nome Mercearia tal coluna teria abissal contribuição se batizada SAP (que não seria uma tecla, mas a sigla para Serviço de Atendimento à Platéia). Porque, vão por mim, não está fácil para ninguém.

Dentro dessa entidade quase etérea conhecida como mercado, há determinadas surpresas que são delicamente surpreendentes.

Uma amiga minha (já se vão 30 anos!) dos egressos de 1985 do não menos famoso Barão do Rio Branco entrou em contato comigo recentemente. Sabedora desses meus dedinhos sebosos e asquerosos na Literatura, solicitou minha disponibilidade para auxílio do seu primogênito, integrante do ensino médio privado, nessa nobilíssima área do conhecimento humano e artístico.

Detentora, como sempre foi, de uma alma gigantesca, não tardou em se revelar mãe zelosa e amorosa, atenta a seus rebentos, ao enviar-me imagem do conteúdo programático constante na apostila de estudo dessa renomada instituição de ensino com único intuito de facilitar as coisas.




Leitura mais ou menos atenta:


“(...)* O contexto cultural do Romantismo;
*Características formais e estilísticas do movimento romântico (prosa) na Europa;
*Expoentes românticos na Europa: Mary Shelley, Göethe, Camilo Castelo Branco, Robert Louis Stenvenson, Bram Stocker, Oscar Wilde, Edgar Allan Poe...(…)”

Edgar Allan Poe. Oi?! Edgar Allan Poe, o europeu?! “Olá!” #sqn. Pensei comigo: “Deixo passar batido? Também já cometi gafes muito maiores do que essa na vida...”. Fiquei curioso em assistir a uma das aulas do(a) professor(a) em questão. Por um motivo bem simples: certos autores são classificados em escolas literárias por motivos comerciais e/ou por falta de uma nomenclatura mais adequada para as obras de um determinado escritos.

Por exemplo, não consigo ver alguns escritores, mesmo com todos os formalismos e didatismos disponíveis para o enquadramento, dentro de certas escolas literárias. É o caso de Oscar Wilde, que sempre me soa, seja pelo tecido verbal ou até mesmo por alguma temática, mais contemporâneo do que a própria escola romântica. O mesmo se aplicaria a Poe, cujo o escapismo, a morte como solução do amor impossível, o amor impossível de se concretizar, é melhor arraigado na demência, em algum tipo distúrbio de personalidade ou transtorno psíquico.

Ainda que Poe seja enquadrado na maioria das enciclopédias e livros sobre teoria literária como romantismo americano, é difícil compreender seu escapismo em obras singulares como Berenice e A Queda da Casa de Usher como solução para aquilo que não se materializará jamais. A impressão de se socar uma massa volumosa para dentro de um molde um tanto minúsculo. Sempre parece que não cabe tudo.

Como o(a) aluno(a) é mais treinado para o vestibular do que para ter relação com as nuances do conhecimento (educação), deixemos isso para lá. Bateu curiosidade em assistir a aula, saber como é desenvolvida em sala de aula essa classificação. Enquadremo-nos, assim, ao que pede a Fuvest e, se existir algum(a) aluno(a) interessado(a) em cursar Letras, que tais filigranas sejam pertinentes em locais mais apropriados.

Maior curiosidade quanto à cabeça do jovem em meio a algo cujo formato do objeto não bate com a forma. Ainda que muito apreciado e elogiado por poetas franceses e demais intelectuais daquele país à época, preciso saber qual o livro de geografia que deixei de ler onde Edgar Allan Poe pode facilmente ser identificado como o europeu.

Prometi a mim mesmo que não incorreria no antigo vício de certas pentelhices da minha parte. Portanto, não sei... deixemos isso para lá. Escolas literárias são como uma kombi para Santos continental: mesmo que certo(a) autor(a) não tenha interesse por tal destino, enfia ele(a) na kombi que está tudo certo. O que não pode é autor(a) avulso(a), caminhando a esmo.

O mercado daquela época é diferente do que encontramos hoje em dia...

Sem contar que mercearias são socialmente mais agradáveis do que academias.

Assim, apanho meu casaquinho por conselho da minha querida vó Maria e ordem de vó Tereza, porque quem anda por aí costuma apanhar friagem. Nas ruas e no mundo para trazer, aqui, o que há de mais interessante nos livros, filmes, peças, exposições e comportamentos que só encontramos quando estamos fora de casa.

Vida longa a essa coluna, e um grande ano que se inicia. Vida longa a todos(as)!



Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 47 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e é o mais novo colaborador de
LEVA UM CASAQUINHO



2 comments:

  1. Seja bem vindo, Marcelo. Gostei de ler seu artigo. Que venham outros. Abraço.

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  2. Seja bem vindo, Marcelo. Gostei de ler seu artigo. Que venham outros. Abraço.

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